É
necessário deixar bem claro, nesta tentativa de conceituar o mito,
que o mesmo não tem aqui a conotação usual de fábula, lenda,
invenção, ficção, mas a acepção que lhe atribuíam e ainda
atribuem as sociedades arcaicas, as impropriamente denominadas
culturas primitivas, onde mito é o relato de um acontecimento
ocorrido no tempo primordial, mediante a intervenção de entes
sobrenaturais. Em outros termos, mito, é o relato de uma história
verdadeira, ocorrida nos tempos dos princípios, quando com a
interferência de entes sobrenaturais, uma realidade passou a
existir, seja uma realidade total, o cosmo, ou tão-somente um
fragmento, um monte, uma pedra, uma ilha, uma espécie animal ou
vegetal, um comportamento humano. Mito é, pois, a narrativa de uma
criação: conta-nos de que modo algo, que não era, começou a ser.
De
outro lado, o mito é sempre uma representação coletiva,
transmitida através de várias gerações e que relata uma
explicação do mundo. Mito é, por conseguinte, a parole, a palavra
"revelada", o dito. E, desse modo, se o mito pode se
exprimir ao nível da linguagem, "ele é, antes de tudo, uma
palavra que circunscreve e fixa um acontecimento". "O mito
é sentido e vivido antes de ser inteligido e formulado. Mito é a
palavra, a imagem, o gesto, que circunscreve o acontecimento no
coração do homem, emotivo como uma criança, antes de fixar-se como
narrativa".
O
mito expressa o mundo e a realidade humana, mas cuja essência é
efetivamente uma representação coletiva, que chegou até nós
através de várias gerações. E, na medida em que pretende explicar
o mundo e o homem, isto é, a complexidade do real, o mito não pode
ser lógico: ao revés, é ilógico e irracional. Abre-se como uma
janela a todos os ventos; presta-se a todas as interpretações.
Decifrar o mito é, pois, decifrar-se. E, como afirma Roland Barthes,
o mito não pode, consequentemente, "ser um objeto, um conceito
ou uma ideia: ele é um modo de significação, uma forma".
Assim, não se há de definir o mito "pelo objeto de sua
mensagem, mas pelo modo como a profere". É bem verdade que a
sociedade industrial usa o mito como expressão de fantasia, de
mentiras, daí mitomania, mas não é este o sentido que
hodiernamente se lhe atribui.
O
mesmo Roland Barthes, aliás, procurou reduzir, embora
significativamente, o conceito de mito, apresentando-o como qualquer
forma substituível de uma verdade. Uma verdade que esconde outra
verdade. Talvez fosse mais exato defini-lo como uma verdade profunda
de nossa mente. É que poucos se dão ao trabalho de verificar a
verdade que existe no mito, buscando apenas a ilusão que o mesmo
contém. Muitos vêem no mito tão somente os significantes, isto é,
a parte concreta do signo. É mister ir além das aparências e
buscar-lhe os significados, quer dizer, a parte abstrata, o sentido
profundo.
Talvez
se pudesse definir mito, dentro do conceito de Carl Gustav Jung, como
a conscientização de arquétipos do inconsciente coletivo, quer
dizer, um elo entre o consciente e o inconsciente coletivo, bem como
as formas através das quais o inconsciente se manifesta.
Compreende-se por inconsciente coletivo a herança das vivências das
gerações anteriores. Desse modo, o inconsciente coletivo
expressaria a identidade de todos os homens, seja qual for a época e
o lugar onde tenham vivido.
Arquétipo,
do grego "arkhétypos", etimologicamente, significa modelo
primitivo, idéias inatas. Como conteúdo do inconsciente coletivo
foi empregado pela primeira vez por Yung. No mito, esses conteúdos
remontam a uma tradição, cuja idade é impossível determinar.
Pertencem a um mundo do passado, primitivo, cujas exigências
espirituais são semelhantes às que se observam entre culturas
primitivas ainda existentes. Normalmente, ou didaticamente, se
distinguem dois tipos de imagens:
a)
imagens (incluídos os sonhos) de caráter pessoal, que remontam a
experiências pessoais esquecidas ou reprimidas, que podem ser
explicadas pela anamnese individual;
b)
imagens (incluídos os sonhos) de caráter impessoal, que não podem
ser incorporados à história individual. Correspondem a certos
elementos coletivos: são hereditárias.
A
palavra textual de Jung ilustra melhor o que expôs: "Os
conteúdos do inconsciente pessoal são aquisições da existência
individual, ao passo que os conteúdos do inconsciente coletivo são
arquétipos que existem sempre a priori.
Embora
se tenha que admitir a importância da tradição e da dispersão por
migrações, casos há e muito numerosos em que essas imagens
pressupõem uma camada psíquica coletiva: é o inconsciente
coletivo. Mas, como este não é verbal, quer dizer, não podendo o
inconsciente se manifestar de forma conceitual, verbal, ele o faz
através de símbolos. Atente-se para a etimologia de símbolo, do
grego "sýmbolon", do verbo "symbállein",
"lançar com", arremessar ao mesmo tempo, "com-jogar".
De início, símbolo era um sinal de reconhecimento: um objeto
dividido em duas partes, cujo ajuste e confronto permitiam aos
portadores de cada uma das partes se reconhecerem. O símbolo é,
pois, a expressão de um conceito de equivalência. Assim, para se
atingir o mito, que se expressa por símbolos, é preciso fazer uma
equivalência, uma "con-jugação", uma "re-união",
porque, se o signo é sempre menor do que o conceito que representa,
o símbolo representa sempre mais do que seu significado evidente e
imediato.
Em
síntese, os mitos são a linguagem imagística dos princípios.
"Traduzem" a origem de uma instituição, de um hábito, a
lógica de uma gesta, a economia de um encontro. Na expressão de
Goethe, os mitos são as relações permanentes da vida.
Se
mito é, pois, uma representação coletiva, transmitida através de
várias gerações e que relata uma explicação do mundo, então o
que é mitologia? Se mitologema é a soma dos elementos antigos
transmitidos pela tradição e mitema as unidades constitutivas
desses elementos, mitologia é o "movimento" desse
material: algo de estável e mutável simultaneamente, sujeito,
portanto, a transformações. Do ponto de vista etimológico,
mitologia é o estufo dos mitos, concebidos como história
verdadeira.
Quanto
à religião, do latim "religione", a palavra possivelmente
se prende ao verbo "religare", ação de ligar.
Religião
pode, assim, ser definida como o conjunto das atitudes e atos pelos
quais o homem se prende, se liga ao divino ou manifesta sua
dependência em relação a seres invisíveis tidos como
sobrenaturais. Tomando-se o vocábulo num sentido mais estrito,
pode-se dizer que a religião para os antigos é a reatualização e
a ritualização do mito. O rito possui, "o poder de suscitar
ou, ao menos, de reafirmar o mito".
Através
do rito, o homem se incorpora ao mito, beneficiando-se de todas as
forças e energias que jorraram nas origens. A ação ritual realiza
no imediato uma transcendência vivida. O rito toma, nesse caso, "o
sentido de uma ação essencial e primordial através da referência
que se estabelece do profano ao sagrado". Em resumo: o rito é a
“praxis” (prática) do mito. É o mito em ação. O mito
rememora, o rito comemora.
Rememorando
os mitos, reatualizando-os, renovando-os por meio de certos rituais,
o homem torna-se apto a repetir o que os deuses e os heróis fizeram
"nas origens", porque conhecer os mitos é aprender o
segredo da origem das coisas. "E o rito pelo qual se exprime (o
mito) reatualiza aquilo que é ritualizado: re-criação, queda,
redenção". E conhecer a origem das coisas - de um objeto, de
um nome, de um animal ou planta - "equivale a adquirir sobre as
mesmas um poder mágico, graças ao qual é possível dominá-las,
multiplicá-las ou reproduzi-las à vontade". Esse retorno às
origens, por meio do rito, é de suma importância, porque "voltar
às origens é readquirir as forças que jorraram nessas mesmas
origens". Não é em vão que na Idade Média muitos cronistas
começavam suas histórias com a origem do mundo. A finalidade era
recuperar o tempo forte, o tempo primordial e as bênçãos que
jorraram “illo tempore”.
Além
do mais, o rito, reiterando o mito, aponta o caminho, oferece um
modelo exemplar, colocando o homem na contemporaneidade do sagrado. É
o que nos diz, com sua autoridade, Mircea Eliade: "Um objeto ou
um ato não se tornam reais, a não ser na medida em que repetem um
arquétipo. Assim a realidade se adquire exclusivamente pela
repetição ou participação; tudo que não possui um modelo
exemplar é vazio de sentido, isto é, carece de realidade".
O
rito, que é o aspecto litúrgico do mito, transforma a palavra em
verbo, sem o que ela é apenas lenda, "legenda", o que deve
ser lido e não mais proferido.
À
ideia de reiteração prende-se a ideia de tempo. O mundo
transcendente dos deuses e heróis é religiosamente acessível e
reatualizável, exatamente porque o homem das culturas primitivas não
aceita a irreversibilidade do tempo: o rito abole o tempo profano,
cronológico, é linear e, por isso mesmo, irreversível (pode-se
"comemorar" uma data histórica, mas não fazê-la voltar
no tempo), o tempo mítico, ritualizado, é circular, voltando sempre
sobre si mesmo. É precisamente essa reversibilidade que liberta o
homem do peso do tempo morto, dando-lhe a segurança de que ele é
capaz de abolir o passado, de recomeçar sua vida e recriar seu
mundo. O profano é tempo da vida; o sagrado, o "tempo" da
eternidade.
A
"consciência mítica", embora rejeitada no mundo moderno,
ainda está viva e atuante nas civilizações denominadas primitivas:
"O mito, quando estudado ao vivo, não é uma explicação
destinada a satisfazer a uma curiosidade científica, mas uma
narrativa que faz reviver uma realidade primeva, que satisfaz as
profundas necessidades religiosas, aspirações morais, a pressões e
a imperativos de ordem social e mesmo a exigências práticas. Nas
civilizações primitivas, o mito desempenha uma função
indispensável: ele exprime, exalta e codifica a crença; salvaguarda
e impõe os princípios morais; garante a eficácia do ritual e
oferece regras práticas para a orientação do homem. O mito é um
ingrediente vital da civilização humana; longe de ser uma fabulação
vã, ele é, ao contrário, uma realidade viva, à qual se recorre
incessantemente; não é, absolutamente, uma teoria abstrata ou uma
fantasia artística, mas uma verdadeira codificação da religião
primitiva e da sabedoria prática".
Fonte: www.mundodosfilosofos.com.br