A Vida.
Quem
valorizou a descoberta do homem feita pelos sofistas, orientando-a
para os valores universais, segundo a via real do pensamento grego,
foi Sócrates.
Nasceu Sócrates em 470 ou 469 a.C., em Atenas, filho de Sofrônico,
escultor, e de Fenareta, parteira. Aprendeu a arte paterna, mas
dedicou-se inteiramente à meditação e ao ensino filosófico, sem
recompensa alguma, não obstante sua pobreza. Desempenhou alguns
cargos políticos e foi sempre modelo irrepreensível de bom cidadão.
Combateu a Potideia, onde salvou a vida de Alcebíades e em Delium,
onde carregou aos ombros a Xenofonte, gravemente ferido. Formou a sua
instrução sobretudo através da reflexão pessoal, na moldura da
alta cultura ateniense da época, em contato com o que de mais
ilustre houve na cidade de Péricles.
Inteiramente absorvido pela sua vocação, não se deixou distrair
pelas preocupações domésticas nem pelos interesses políticos.
Quanto à família, podemos dizer que Sócrates não teve, por certo,
uma mulher ideal na quérula Xantipa; mas também ela não teve um
marido ideal no filósofo, ocupado com outros cuidados que não os
domésticos.
Quanto à política, foi ele valoroso soldado e rígido magistrado.
Mas, em geral, conservou-se afastado da vida pública e da política
contemporânea, que contrastavam com o seu temperamento crítico e
com o seu reto juízo. Julgava que devia servir a pátria conforme
suas atitudes, vivendo justamente e formando cidadãos sábios,
honestos, temperados - diversamente dos sofistas, que agiam para o
próprio proveito e formavam grandes egoístas, capazes unicamente de
se acometerem uns contra os outros e escravizar o próximo.
Entretanto, a liberdade de seus discursos, a feição austera de seu
caráter, a sua atitude crítica, irônica e a conseqüente educação
por ele ministrada, criaram descontentamento geral, hostilidade
popular, inimizades pessoais, apesar de sua probidade. Diante da
tirania popular, bem como de certos elementos racionários, aparecia
Sócrates como chefe de uma aristocracia intelectual. Esse estado de
ânimo hostil a Sócrates concretizou-se, tomou forma jurídica, na
acusação movida contra ele por Mileto, Anito e Licon: de corromper
a mocidade e negar os deuses da pátria introduzindo outros. Sócrates
desdenhou defender-se diante dos juizes e da justiça humana,
humilhando-se e desculpando-se mais ou menos. Tinha ele diante dos
olhos da alma não uma solução empírica para a vida terrena, e sim
o juízo eterno da razão, para a imortalidade. E preferiu a morte.
Declarado culpado por uma pequena minoria, assentou-se com indômita
fortaleza de ânimo diante do tribunal, que o condenou à pena
capital com o voto da maioria.
Tendo
que esperar mais de um mês a morte no cárcere - pois uma lei vedava
as execuções capitais durante a viagem votiva de um navio a Delos -
o discípulo Criton preparou e propôs a fuga ao Mestre. Sócrates,
porém, recusou, declarando não querer absolutamente desobedecer às
leis da pátria. E passou o tempo preparando-se para o passo extremo
em palestras espirituais com os amigos. Especialmente famoso é o
diálogo sobre a imortalidade da alma - que se teria realizado pouco
antes da morte e foi descrito por Platão no Fédon
com arte incomparável. Suas últimas palavras dirigidas aos
discípulos, depois de ter sorvido tranquilamente
a cicuta, foram: "Devemos
um galo a Esculápio".
É que o deus da medicina tinha-o livrado do mal da vida com o dom da
morte. Morreu Sócrates em 399 a.C. com 71 anos de idade.
Método de Sócrates.
É a parte polêmica. Insistindo no perpétuo fluxo das coisas e na
variabilidade extrema das impressões sensitivas determinadas pelos
indivíduos que de contínuo se transformam, concluíram os sofistas
pela impossibilidade absoluta e objetiva do saber. Sócrates
restabelece-lhe a possibilidade, determinando o verdadeiro objeto da
ciência.
O
objeto da ciência não é o sensível, o particular, o indivíduo
que passa; é o inteligível, o conceito
que
se exprime pela definição. Este conceito ou ideia
geral obtém-se por um processo dialético por ele chamado indução
e que consiste em comparar vários indivíduos da mesma espécie,
eliminar-lhes as diferenças individuais, as qualidades mutáveis e
reter-lhes o elemento comum, estável, permanente, a natureza, a
essência da coisa. Por onde se vê que a indução socrática não
tem o caráter demonstrativo do moderno processo lógico, que vai do
fenômeno à lei, mas é um meio de generalização, que remonta do
indivíduo à noção universal.
Praticamente,
na exposição polêmica e didática destas ideias,
Sócrates adotava sempre o diálogo, que revestia uma dúplice forma,
conforme se tratava de um adversário a confutar ou de um discípulo
a instruir. No primeiro caso, assumia humildemente a atitude de quem
aprende e ia multiplicando as perguntas até colher o adversário
presunçoso em evidente contradição e constrangê-lo à confissão
humilhante de sua ignorância. É a ironia
socrática.
No segundo caso, tratando-se de um discípulo (e era muitas vezes o
próprio adversário vencido), multiplicava ainda as perguntas,
dirigindo-as agora ao fim de obter, por indução dos casos
particulares e concretos, um conceito, uma definição geral do
objeto em questão. A este processo pedagógico, em memória da
profissão materna, denominava ele maiêutica
ou engenhosa obstetrícia do espírito, que facilitava a parturição
das ideias.
Doutrinas Filosóficas.
A
introspecção é o característico da filosofia de Sócrates. E
exprime-se no famoso lema conhece-te
a ti mesmo
- isto é, torna-te consciente de tua ignorância - como sendo o
ápice da sabedoria, que é o desejo da ciência mediante a virtude.
E alcançava em Sócrates intensidade e profundidade tais, que se
concretizava, se personificava na voz interior divina do gênio
ou demônio.
Como
é sabido, Sócrates não deixou nada escrito. As notícias que temos
de sua vida e de seu pensamento, devemo-las especialmente aos seus
dois discípulos Xenofonte e Platão, de feição intelectual muito
diferente. Xenofonte, autor de Anábase,
em seus Ditos
Memoráveis,
legou-nos de preferência o aspecto prático e moral da doutrina do
mestre. Xenofonte, de estilo simples e harmonioso, mas sem
profundidade, não obstante a sua devoção para com o mestre e a
exatidão das notícias, não entendeu o pensamento filosófico de
Sócrates, sendo mais um homem de ação do que um pensador. Platão,
pelo contrário, foi filósofo grande demais para nos dar o preciso
retrato histórico de Sócrates; nem sempre é fácil discernir o
fundo socrático das especulações acrescentadas por ele. Seja como
for, cabe-lhe a glória e o privilégio de ter sido o grande
historiador do pensamento de Sócrates, bem como o seu biógrafo
genial. Com efeito, pode-se dizer que Sócrates é o protagonista de
todas as obras platônicas embora Platão conhecesse Sócrates já
com mais de sessenta anos de idade.
O "Conhece-te
a ti mesmo", lema em que Sócrates cifra toda a sua vida de sábio. O perfeito
conhecimento do homem é o objetivo de todas as suas especulações e
a moral, o centro para o qual convergem todas as partes da filosofia.
A psicologia serve-lhe de preâmbulo, a teodiceia
de estímulo à virtude e de natural complemento da ética. Sócrates professa a espiritualidade e imortalidade da alma,
distingue as duas ordens de conhecimento, sensitivo
e intelectual,
mas não define o livre arbítrio, identificando a vontade com a
inteligência.
Em
teodiceia,
estabelece a existência de Deus:
a)
com o argumento teológico, formulando claramente o princípio: tudo
o que é adaptado a um fim é efeito de uma inteligência;
b)
com o argumento, apenas esboçado, da causa eficiente: se o homem é
inteligente, também inteligente deve ser a causa que o produziu;
c)
com o argumento moral: a lei natural supõe um ser superior ao homem,
um legislador, que a promulgou e sancionou. Deus não só existe, mas
é também Providência, governa o mundo com sabedoria e o homem pode
propiciá-lo com sacrifícios e orações.
Apesar destas doutrinas
elevadas, Sócrates aceita em muitos pontos os preconceitos da
mitologia corrente que ele aspira reformar.
A moral é a parte culminante da sua filosofia. Sócrates ensina a bem pensar
para bem viver. O meio único de alcançar a felicidade ou semelhança
com Deus, fim supremo do homem, é a prática da virtude. A virtude
adquiri-se com a sabedoria ou, antes, com ela se identifica. Esta
doutrina, uma das mais características da moral socrática, é
consequência
natural do erro psicológico de não distinguir a vontade da
inteligência. Conclusão: grandeza moral e penetração
especulativa, virtude e ciência, ignorância e vício são
sinônimos. "Se músico é o que sabe música, pedreiro o que
sabe edificar, justo será o que sabe a justiça".
Sócrates reconhece também, acima das leis mutáveis e escritas, a
existência de uma lei natural - independente do arbítrio humano,
universal, fonte primordial de todo direito positivo, expressão da
vontade divina promulgada pela voz interna da consciência.
Sublime nos lineamentos gerais de sua ética, Sócrates, em prática,
sugere quase sempre a utilidade como motivo e estímulo da virtude.
Esta feição utilitarista empana-lhe a beleza moral do sistema.
Gnosiologia.
O interesse filosófico de Sócrates volta-se para o mundo humano,
espiritual, com finalidades práticas, morais. Como os sofistas, ele
é cético a respeito da cosmologia e, em geral, a respeito da
metafísica; trata-se, porém, de um ceticismo de fato, não de
direito, dada a sua revalidação da ciência. A única ciência
possível e útil é a ciência da prática, mas dirigida para os
valores universais, não particulares. Vale dizer que o agir humano -
bem como o conhecer humano - se baseia em normas objetivas e
transcendentes à experiência. O fim da filosofia é a moral; no
entanto, para realizar o próprio fim, é mister conhecê-lo; para
construir uma ética é necessário uma teoria; no dizer de Sócrates,
a gnosiologia deve preceder logicamente a moral. Mas, se o fim da
filosofia é prático, o prático depende, por sua vez, totalmente,
do teorético, no sentido de que o homem tanto opera quanto conhece:
virtuoso é o sábio, malvado, o ignorante. O moralismo socrático é
equilibrado pelo mais radical intelectualismo, racionalismo, que está
contra todo voluntarismo, sentimentalismo, pragmatismo, ativismo.
A
filosofia socrática, portanto, limita-se à gnosiologia e à ética,
sem metafísica. A gnosiologia
de Sócrates, que se concretizava no seu ensinamento dialógico,
donde é preciso extraí-la, pode-se esquematicamente resumir nestes
pontos fundamentais: ironia,
maiêutica,
introspecção,
ignorância,
indução,
definição.
Antes de tudo, cumpre desembaraçar o espírito dos conhecimentos
errados, dos preconceitos, opiniões; este é o momento da ironia,
isto é, da crítica. Sócrates, de par com os sofistas, ainda que
com finalidade diversa, reivindica a independência da autoridade e
da tradição, a favor da reflexão livre e da convicção racional.
A seguir será possível realizar o conhecimento verdadeiro, a
ciência, mediante a razão. Isto quer dizer que a instrução não
deve consistir na imposição extrínseca de uma doutrina ao
discente, mas o mestre deve tirá-la da mente do discípulo, pela
razão imanente e constitutiva do espírito humano, a qual é um
valor universal. É a famosa maiêutica
de Sócrates, que declara auxiliar os partos
do espírito, como sua mãe auxiliava os partos do corpo.
Esta
interioridade do saber, esta intimidade da ciência - que não é
absolutamente subjetivista, mas é a certeza objetiva da própria
razão - patenteiam-se no famoso dito socrático"conhece-te
a ti mesmo" que,
no pensamento de Sócrates, significa precisamente consciência
racional de si mesmo, para organizar racionalmente a própria vida.
Entretanto, consciência de si mesmo quer dizer, antes de tudo,
consciência da própria ignorância
inicial
e, portanto, necessidade de superá-la pela aquisição da ciência.
Esta ignorância não é, por conseguinte, ceticismo sistemático,
mas apenas metódico, um poderoso impulso para o saber, embora o
pensamento socrático fique, de fato, no agnosticismo filosófico por
falta de uma metafísica, pois, Sócrates achou apenas a forma
conceptual da ciência, não o seu conteúdo.
O
procedimento lógico para realizar o conhecimento verdadeiro,
científico, conceptual é, antes de tudo, a indução:
isto é, remontar do particular ao universal, da opinião à ciência,
da experiência ao conceito. Este conceito é, depois, determinado
precisamente mediante a definição,
representando o ideal e a conclusão do processo gnosiológico
socrático, e nos dá a essência da realidade.
A Moral.
Como
Sócrates é o fundador da ciência em geral, mediante a doutrina do
conceito, assim é o fundador, em particular da ciência moral,
mediante a doutrina de que eticidade significa racionalidade, ação
racional. Virtude é inteligência, razão, ciência, não
sentimento, rotina, costume, tradição, lei positiva, opinião
comum. Tudo isto tem que ser criticado, superado, subindo até à
razão, não descendo até à animalidade - como ensinavam os
sofistas. É sabido que Sócrates levava a importância da razão
para a ação moral até àquele intelectualismo que, identificando
conhecimento e virtude - bem como ignorância e vício - tornava
impossível o livre arbítrio. Entretanto, como a gnosiologia
socrática carece de uma especificação lógica, precisa - afora a
teoria geral de que a ciência está nos conceitos - assim a ética
socrática carece de um conteúdo racional, pela ausência de uma
metafísica. Se o fim do homem for o bem - realizando-se o bem
mediante a virtude, e a virtude mediante o conhecimento - Sócrates
não sabe, nem pode precisar este bem, esta felicidade, precisamente
porque lhe falta uma metafísica. Traçou, todavia, o itinerário,
que será percorrido por Platão e acabado, enfim, por Aristóteles.
Estes dois filósofos, partindo dos pressupostos socráticos,
desenvolverão uma gnosiologia acabada, uma grande metafísica e,
logo, uma moral.
Fonte:
http://www.mundodosfilosofos.com.br.