“Imagina, pois, que acontece uma coisa deste gênero, ou em vários navios ou num só: o capitão, superior em tamanho e em força a todos os que se encontram na embarcação, mas um tanto surdo e com a vista a condizer, e conhecimentos náuticos da mesma extensão; os marinheiros em luta uns contra os outros, por causa do leme, entendendo cada um deles que deve ser o piloto, sem ter jamais aprendido a arte de navegar nem poder indicar o nome do mestre nem a data do seu aprendizado, e ainda por cima asseverando que não é arte que se aprenda, e estando prontos a reduzir a bocados quem declarar sequer que se pode aprender; estão sempre a assediar o capitão, a pedir-lhe o leme e a fazer tudo para que este lhes seja entregue; algumas vezes, se não são eles que o convencem, mas sim outros, matam-nos, a esses, ou atiram-nos pela borda fora; reduzem à impotência o honesto capitão com drogas, a embriaguez ou qualquer outro meio; tomam conta do navio, apoderam-se da sua carga, bebem e regalam-se a comer, navegando como é natural que o faça gente dessa espécie; ainda por cima, elogiam e chamam marinheiros, pilotos e peritos na arte de navegar a quem tiver a habilidade de os ajudar a obter o comando, persuadindo ou forçando o capitão; a quem assim não fizer, apodam-no de inútil, e nem sequer percebem que o verdadeiro piloto precisa de se preocupar com o ano, as estações, o céu, os astros, os ventos e tudo o que diz respeito à sua arte, se quer de facto ser comandante do navio, a fim de o governar, quer alguns o queiram quer não — pois julgam que não é possível aprender essa arte e estudo, e ao mesmo tempo a de comandar uma nau. Quando se originam tais acontecimentos nos navios, não te parece que o verdadeiro piloto será apodado de palrador, lunático e inútil pelos navegantes de embarcações assim aparelhadas?” Platão, A República, pp. 275-6.
A oposição de
Platão à democracia explora outra tensão que aparentemente existe
na teoria democrática. Tal como “monarquia” significa “governo
pelo monarca”, “democracia” quer dizer “governo pelo demos”.
Mas o que é o demos? Em grego clássico tanto pode ser
entendido como “o povo” ou “a populaça”. No segundo sentido,
então, a democracia é o governo pela populaça: o governo da ralé,
do vulgo, dos sujos, dos inaptos.
Mas este insulto à
democracia é um mero preliminar para os principais argumentos
antidemocráticos de Platão. A sua arma básica é a chamada
“analogia das profissões”. O argumento é muito simples. Se
estivéssemos doentes, e precisássemos de nos aconselhar com alguém
em matéria de saúde, procuraríamos um especialista — o médico.
Por outras palavras, quereríamos consultar alguém que tenha tido
formação específica para desempenhar a tarefa. A última coisa que
desejaríamos seria reunir uma multidão e pedir aos presentes que
elegessem, através de voto, o remédio certo.
A saúde do estado
tem tanta ou mais importância que a saúde de um dado indivíduo.
Tomar decisões políticas — decisões no interesse do estado —
requer reflexão e competência na matéria. Segundo Platão, é
função que se deveria deixar aos especialistas. Permitir que o povo
decida é como navegar em alto mar consultando os passageiros,
ignorando ou desprezando aqueles que são verdadeiramente competentes
na arte da navegação. Tal como um navio assim comandado se
transviará e irá a pique, também — diz Platão — o navio do
estado naufragará.
Mas onde estão os
governantes especializados? Neste ponto, a resposta de Platão é
simples e, para muitos dos seus prováveis leitores, lisonjeira. A
sociedade justa é impossível, a menos que os reis se tornem
filósofos ou os filósofos se tornem reis. A formação filosófica,
afirma Platão, é uma qualificação necessária para governar. Com
tornar-se filósofo, Platão não quer dizer que basta passar uns
anos a ler e a pensar acerca da filosofia. Ele divisa um plano para
toda uma vida de ensino aplicável aos “guardiães”, que inclui,
nos primeiros anos, não apenas competências de literacia, mas
também educação musical, matemática, militar e física. A
filosofia não é estudada senão aos trinta anos. A cinco anos de
filosofia seguem-se, então, quinze de serviço militar e àqueles
que ultrapassam este período com distinção é só então permitido
dedicarem-se permanentemente à filosofia; serenidade apenas
interrompida para se tomar o lugar nos “assuntos fatigantes da
política”.
Estaríamos a
desviar-nos demasiado do nosso tema se considerássemos estes e
outros aspectos de A República, de Platão, com grande
pormenor. Especialmente, não podemos alongar-nos na natureza e
conteúdo do conhecimento que Platão pretende que os seus guardiães
possuam. Mas recordemos a analogia das profissões. O governo, como a
medicina, a navegação ou mesmo a agricultura, é uma competência.
É necessária formação especial e nem todos são naturalmente
capazes de adquirir sequer essa competência. A medicina deve ser
deixada aos especialistas, e a formação clínica administrada
apenas aos mais aptos — e o mesmo acontece com o governo e a
formação para governar. Qualquer outro sistema conduzirá a piores
resultados e a consulta da populaça redundará em desastre.
À primeira vista, o
argumento de Platão contra a democracia parece devastador. Se
governar é uma arte, e uma arte apenas dominada por poucos, então a
democracia parece obviamente absurda e irracional. O defensor da
democracia tem de encontrar uma resposta para a analogia das
profissões. Mas terá esta algum ponto fraco?
Problemas com os guardiães.
O primeiro reparo a
fazer-se é que o próprio sistema de Platão é uma forma de
ditadura e, tal como há argumentos gerais que podem usar-se na
oposição a qualquer sistema de democracia, também há argumentos
gerais que se podem usar contra a ditadura. Mesmo que admitamos que
ao educar os guardiães Platão está a criar uma classe de
governantes especializados, não se segue daí que devamos
outorgar-lhes o poder de governar as nossas vidas.
Não se quer dizer
com isto que nunca devamos submeter-nos a especialistas, mas que
atribuir poderes não controlados a especialistas é atrair a
catástrofe. Podemos escolher seguir o conselho de um médico, ou
consultar um arquitecto, mas quem se sentiria satisfeito se as ordens
do médico tivessem força de lei, ou se os arquitetos atribuíssem
casas às pessoas? Por mais competentes que estas pessoas sejam no
desempenho das suas tarefas, por que deveríamos deixar que tomassem
decisões por nós? Também poderiam ser competentes noutra coisa: a
enriquecer.
Esta objecção é
antiga. O que impede o guardião — o rei-filósofo — de virar a
situação a seu favor? Não é grande conforto dizerem-nos que o
governante é um especialista. Se considerarmos provável que os
nossos governantes sejam corruptos, poderemos preferi-los
incompetentes. Dessa forma, pelo menos, talvez a corrupção seja
menos prejudicial. No sistema de Platão, interroga a objecção,
quem guarda os guardiães?
Platão não deixou
passar esta dificuldade. A sua resposta consiste em afirmar que os
guardiães devem ser colocados numa posição na qual as
oportunidades de corrupção sejam minimizadas. Assim, por exemplo,
os reis-filósofos não poderiam possuir propriedade privada. Por
conseguinte, pareceria não haver motivo para o tipo de corrupção a
que assistimos tão frequentemente no mundo moderno: uma família ou
clique dominantes que enriquecem às custas do seu povo. Isto,
claramente, não seria possível, no sistema de Platão — desde que
se conseguisse pôr em prática a proibição de detenção de
propriedade privada.
Mas, admitindo que se
conseguia pôr em prática, parecemos ter recuado para a dificuldade
oposta. Se a vida do guardião não conhece grandes riquezas, por que
razão aceitaria ele governar? Tal como Platão descreve os
guardiães, são filósofos que prefeririam passar o tempo a ler, a
conversar e a pensar sobre filosofia. Por que iriam conceder o seu
tempo a outras tarefas? Platão responde, de certa forma, pela
negativa. Os guardiães concordam em governar, não pelas
compensações intrínsecas ou externas do cargo, mas porque, de
outra forma, seriam governados por outros. Ao invés de permitirem
que outras pessoas — pior ainda, que todas as outras pessoas
— governem, aceitam relutantemente este dever necessário.
Ainda assim, se os
guardiães decidirem violar as leis respeitantes à propriedade
privada, ou mesmo alterar as leis através de procedimentos
adequados, quem terá autoridade e poder para os impedir de fazer
isso? Assim, não podemos sentir-nos perfeitamente tranquilos com as
leis de Platão destinadas a evitar a corrupção. Se a resposta a
isto for que uma formação filosófica adequada torna a pessoa
resistente à tentação, poderemos redarguir que o escrutínio
público completo e adequado, perante um eleitorado com poder, é um
remédio de muito maior confiança.
Outro motivo de
preocupação é a forma como os guardiães são nomeados. Platão
crê que é possível escolher guardiães potenciais em tenra idade e
depois submetê-los a rigores vários que permitirão a seleção
dos melhores. Isto parece perfeitamente possível: pensemos na forma
como os generais sobem os vários escalões num exército. Mas, no
caso dos guardiães, podemos ainda perguntar-nos se o seu direito a
governar seria alguma vez aceite pela população como um todo.
Afinal de contas, a maior parte das pessoas não colheu o benefício
de uma educação filosófica.
Se juntarmos todas
estas objecções, o que obtemos? Na verdade, não muito mais do que
o pensamento de que nos sentimos desconfortáveis com a ideia do
sistema de Platão. A sociedade platônica não oferece garantias de
que os guardiães serão sempre capazes de resistir à tentação. E
pode muito bem ser que o povo não aceite a sua governação. Mas
estes problemas com as propostas de Platão dificilmente constituirão
uma defesa vibrante da democracia. Talvez a resposta se encontre
noutro sistema não democrático. Uma vez mais, se governar é uma
arte, que só poucos conseguem dominar, será certamente absurdo
entregar a tomada de decisões políticas à ralé.
Conhecimentos e interesses.
Outro tipo de
argumento poderá ajudar-nos a avançar. Platão afirma que os
governantes precisam de conhecimentos especializados. Mas estes
conhecimentos são passíveis de ser adquiridos? Se a ideia de
governantes especializados for, na verdade, ilusória, a oposição
de Platão à democracia parecerá dissolver-se no ar.
Alguns críticos
disseram que devemos ter muito cuidado com a afirmação de que
poderia haver governantes especializados que possuiriam um nível
especial de conhecimentos. Afinal de contas, observa-se
frequentemente, ninguém pode estar absolutamente certo de coisa
alguma. Praticamente todas as afirmações de conhecimento — seja
ele político, científico ou filosófico — são falíveis. E,
assim, se entregarmos as decisões sobre qualquer assunto nas mãos
dos chamados especialistas, estamos a iludir-nos relativamente às
suas capacidades.
Embora seja muitas
vezes fonte de enorme satisfação depreciar as pretensões de
sabedoria de alguém que ocupa uma posição de autoridade qualquer,
esta resposta não nos leva muito longe. Na verdade, o facto — se
realmente se trata de um facto — de ninguém poder ter a certeza em
relação ao que quer que seja não contradiz a ideia mais mundana de
que algumas pessoas são melhores juízes do que outras. Por exemplo,
como muitos outros, eu próprio sinto grande cepticismo relativamente
às afirmações de conhecimento manifestadas pelos médicos. Mas se
eu pensasse ter a perna partida, seria a um médico que recorreria,
apesar de estar firmemente convencido de que os médicos cometem
muitas vezes erros, incluindo alguns bastante graves. Mas é razoável
supor que quem não tem formação em medicina (por exemplo, os
falsos médicos, por vezes denunciados na imprensa sensacionalista)
fariam ainda pior. Assim, apesar de não existir um conhecimento
infalível, não se pode disso depreender que todas as pessoas têm a
mesma competência — ou ausência dela — em todos os ramos do
saber. Tentar derrotar desta forma a analogia das profissões
equivale a afirmar que, na verdade, não há profissões. Ora, isto é
demasiado implausível.
Mas não poderia
dar-se o caso de não existir um conhecimento especializado aplicável
à governação, apesar de haver conhecimento especializado noutros
assuntos? Também isto é pouco credível. Os governantes atuais
precisam de possuir um conhecimento bastante subtil de economia,
psicologia e motivação humana. Precisam de ter (embora nem sempre
tenham) grande inteligência, uma enorme capacidade de trabalho,
excelente memória, uma capacidade extraordinária de lidar com o
pormenor e habilidade nas relações com outras pessoas. É absurdo
pensar que ninguém é potencialmente melhor governante que outrem.
Pode defender-se razoavelmente que a governação é, pelo menos em
boa parte, uma profissão.
Ainda assim, há algo
nesta objecção que pode empurrar-nos numa direção mais profícua.
Talvez se possa dizer qualquer coisa mais sobre a ideia de que há
algo de especial na tomada de decisões políticas que a torna
diferente de uma votação de mão erguida para determinar a
amputação ou não de um membro enfermo. Para desenvolver esta linha
de pensamento, devemos analisar mais detidamente a natureza da
votação num sistema democrático. Platão sugere que se vota para
expressar uma opinião acerca daquilo que será melhor para o estado
como um todo. Esta constitui, obviamente, uma função da votação.
Mas Platão parece presumir que a votação não passa disto e o seu
argumento limita-se à afirmação de que é melhor deixar as
decisões deste tipo aos especialistas. Contudo, se conseguirmos
demonstrar que votar é mais do que expressar meramente uma opinião
sobre o bem colectivo, talvez se torne possível avançar uma defesa
mais robusta da democracia.
Recordemos um dos
pressupostos apresentados no início deste capítulo: os governos
democráticos governam para o povo, ou seja, no interesse dos
governados. Embora Platão se oponha à democracia, partilha a ideia
de que os governantes devem trabalhar no interesse do povo. O que ele
nega é que a forma de alcançar isto seja através de um sistema de
governação pelo povo. Uma tentativa de defender a democracia
consiste em tentar argumentar que a posição de Platão não é
sustentável. A governação para o povo tem de ser uma governação
pelo povo.
Mas porquê? Platão
advoga essencialmente um sistema de ditadura benevolente. Contudo,
mesmo que o ditador queira servir os interesses do povo, como poderá
conhecê-los? Numa democracia, as pessoas revelam os seus interesses,
segundo parece, através da votação: votam pelo que querem. Daí
que votar seja mais do que um processo de tomada de decisão. É uma
forma de revelar ou expressar a própria informação que a decisão
precisa de ter em conta: o que as pessoas querem. Sem o recurso a um
processo eleitoral qualquer, como se pode conhecer isso?
Platão poderia
responder que os guardiães são não apenas benevolentes, mas também
especialistas. Possuem sabedoria e conhecimentos. Os reis de Platão
não são os tiranos ocos e ignorantes que, de tempos a tempos, se
veem no mundo moderno. São filósofos. Mas, para responder a
Platão, será que o conhecimento filosófico lhes dá realmente
meios para conhecerem os interesses do povo? A lógica e a metafísica
não nos dizem o que querem as pessoas. O mesmo se aplica à ética e
mesmo à filosofia política. O conhecimento filosófico e a
informação factual parecem duas coisas completamente distintas.
Mas será verdade que
a tomada de decisões políticas deva ter em conta o que as pessoas
querem? Talvez deva considerar os interesses das pessoas —
aquilo que é melhor para elas. E poder-se-á dizer que os interesses
das pessoas são, na verdade, o tipo de conhecimento contemplado numa
educação filosófica? Talvez todos tenham os mesmos interesses.
Nesse caso, os subtis poderes analíticos dos filósofos colocam-nos
na melhor das posições para conhecer os interesses das pessoas. No
entanto, fosse o que fosse que Platão pensava acerca disto, e
independentemente daquilo que for verdadeiro no sentido metafísico
mais profundo, em termos práticos tem certamente de ser falso que
tenhamos todos os mesmos interesses. Imaginemos que se considera a
construção de uma nova estrada. Algumas pessoas terão interesse na
construção da estrada. Outras terão o interesse oposto: por
exemplo, o proprietário de uma loja localizada na atual estrada.
Algumas pessoas terão interesse em que a estrada siga determinado
traçado, outras preferirão um traçado diferente. A construção de
uma estrada afetará as pessoas de muitas maneiras diferentes.
Portanto, haverá interesses múltiplos, e antagônicos, a
considerar. A leitura de obras filosóficas não fornecerá a solução
deste problema.
Por outro lado, um
exemplo deste gênero poderá fazer-nos levantar dúvidas em relação
à democracia. Como se deveria decidir, entre as várias preferências
e interesses rivais em jogo? Pode muito bem acontecer que, existindo
mais de duas opções (a estrada pode ser construída obedecendo a
vários traçados diferentes), nenhuma opção recolha um apoio
maioritário. Mas mesmo que uma delas o obtenha, é óbvio que
devamos aceitar a preferência da maioria? Talvez isto seja muito
injusto para a minoria (recordemos o elemento madisoniano da
proteção democrática das minorias). Certamente que precisamos é
de uma governação por parte de alguém que conheça todos os
interesses relevantes e que, com a sabedoria de Salomão, tome a
decisão mais justa e mais sensata. Isto ainda se torna mais
necessário se aceitarmos a ideia de Hume, mencionada no Capítulo 2,
de que as pessoas avaliam muitas vezes incorretamente os seus
interesses quando há discrepância entre os interesses de longo
prazo e aqueles de curto prazo. Assim, quando muito, temos um
argumento a favor das sondagens de opinião pormenorizadas junto das
pessoas, mas não necessariamente um argumento a favor da democracia.
Na verdade, a posição
é bastante pior para a democracia do que parece até ao momento.
Platão afirma que precisamos de governantes especializados. O
defensor da democracia responde que os especialistas precisam de
conhecer os interesses do povo e só o voto os revela. A resposta a
isto é que não só é falso que apenas o voto revele os interesses
do povo como também a sondagem de opinião poderá ser mais eficaz
nesse propósito. Outro problema, mais inquietante, é que nunca
podemos ter a certeza de que um voto democrático nos diga seja o que
for sobre as preferências ou interesses das pessoas.
Para compreender
isto, consideremos um exemplo assaz prosaico. Suponhamos que um grupo
de pessoas discorda quanto ao facto de poder ser permitido fumar num
local público que estas partilham e controlam — talvez uma
residência de estudantes. Suponhamos igualmente que todas concordam
em acatar a decisão da maioria. Significará isto que vence a
permissão para fumar se, e apenas se, uma maioria preferir que se
possa fumar num local público? À primeira vista, parece óbvio que
sim mas, com alguma reflexão, percebe-se que não é obrigatório
que assim seja. É verdade que algumas pessoas votarão como se
estivessem a responder à pergunta “Prefere que se fume ou não?”.
Estas pessoas votarão efetivamente de acordo com as suas
preferências. Mas outras votarão como se a pergunta a que respondem
fosse “Pensa que se deve permitir que se fume?”. Assim,
alguns fumadores votarão por forma a negar o seu próprio prazer,
afirmando que é errado os fumadores submeterem os outros aos efeitos
adversos do seu comportamento. Também alguns não fumadores votarão
contra as suas próprias preferências, argumentando que fumar é uma
decisão do foro pessoal. Por outras palavras, estas pessoas votam de
uma forma desinteressada e, portanto, não revelam os seus interesses
através do seu voto.
Tendo isto em vista,
não é seguro presumir que a democracia é uma forma de tornar
conhecidos os interesses ou preferências individuais. Algumas
pessoas votarão de acordo com o que mais querem. Outras deixam de
lado os seus próprios interesses ou preferências e votam segundo
critérios morais. Nunca se pode ter a certeza daquilo que motiva os
elementos de um eleitorado — na verdade, eles próprios podem não
estar certos disso.
Qual é a
consequência deste facto? Se as pessoas nem sempre votam de acordo
com as suas preferências, não podemos apresentar o processo
eleitoral como algo que revela automaticamente as preferências da
maioria. Então, o que revela o voto? Se as pessoas votam seguindo
diversas motivações — algumas segundo as suas preferências,
outras de acordo com a preocupação que sentem pelo bem comum — o
resultado não nos diz senão que uma maioria de pessoas votou a
favor de uma opção, em detrimento de outra. Não podemos afiançar
que uma maioria de pessoas crê que a opção vencedora está de
acordo com os seus interesses e também não podemos dizer que uma
maioria de pessoas acredita que a decisão é para o bem comum. Em
suma, o voto determinado por diversas motivações é uma confusão.
E, o que é pior, nas condições atuais parece constituir a norma.
O voto e o bem comum.
O problema do voto
determinado por diversas motivações parece obrigar-nos a decidir o
tipo de motivação que os eleitores deveriam ter. Se conseguimos ter
a certeza de que os eleitores terão, na prática, esse tipo de
motivação é outra questão, porventura mais difícil. Mas
consideremos em primeiro lugar a questão teórica.
Se não quisermos
aceitar a votação com diversas motivações, parece que nos restará
escolher entre dois modelos: um no qual os eleitores votam de acordo
com as suas preferências e outro no qual os eleitores votam de
acordo com as suas ideias ou opiniões sobre o bem comum. Vimos que o
problema com o primeiro destes modelos era a sondagem de opinião
poder constituir um modo muito mais sensível de obter a informação
necessária. Mas talvez a segunda ideia — de que todas as pessoas
deviam votar de acordo com as suas ideias do bem comum — possa ser
utilizada em defesa da democracia.
Contudo, se partirmos
do princípio que as pessoas votarão de acordo com as suas ideias do
bem comum, precisaremos de um novo argumento a favor da democracia. O
último argumento era que, sem voto, os governantes não saberiam
dizer o que as pessoas pretendem. Mas se as pessoas votarem de acordo
com as suas ideias do bem comum, o voto também não nos vai dizer
isto. Dir-nos-á apenas aquilo que a maioria pensa ser o bem comum, e
não a preferência real da maioria.
Mas isto sugere uma
defesa diferente da democracia. Se permitirmos que as pessoas votem
de acordo com a sua ideia do bem comum, e seguirmos a decisão da
maioria, teremos certamente grandes possibilidades de estarmos
certos. O argumento a favor da democracia é que agora esta parece
uma excelente forma de descobrir o bem comum.
Infelizmente, este
argumento parece entregar a resposta de bandeja a Platão. Por que
razão é de esperar que o voto da populaça seja melhor do que
deixar o assunto nas mãos de especialistas com formação
específica? Já agora, podíamos pedir à população em geral que
governasse navios, tomasse decisões clínicas, guardasse rebanhos, e
por aí fora. Que razão pode haver para pensar que as pessoas farão
melhor do que os especialistas?
Por surpreendente que
seja, há mesmo uma razão. O filósofo e especialista político
francês Marie Jean Antoine Nicolas Caritat, Marquês de Condorcet
(1743-94), desenvolveu uma interessantíssima argumentação
matemática que parece demonstrar as vantagens de permitir que as
pessoas se expressem através do voto sobre aquilo que consideram ser
o bem comum. Condorcet observou que se presumirmos que as pessoas, em
média, têm uma probabilidade superior a cinquenta por cento de dar
a resposta correta, permitir a decisão por maioria tornar-se-á uma
forma excelente de chegar ao resultado certo. Se votarem muitas
pessoas, a probabilidade de conseguir o resultado certo tenderá para
a certeza. Num eleitorado composto por dez mil pessoas, cada uma
delas com probabilidade superior de estar certa do que de estar
errada, é praticamente certo que a decisão tomada pela maioria
constituirá o resultado correto.
A argumentação de
Condorcet poderá parecer uma resposta mais do que suficiente a
Platão. Mas é essencial observar que só funciona mediante a
reunião de duas condições. Primeira, o indivíduo médio terá de
ter uma probabilidade superior a cinquenta por cento de estar certo
(e o próprio Condorcet mostrou-se muito pessimista em relação a
isto, quando a votação é feita em grande escala). Segunda, cada
indivíduo tem de estar motivado para votar segundo a sua ideia do
bem comum, e não de acordo com os seus interesses particulares. Se o
segundo pressuposto não se verificar, regressamos à confusão
daquilo a que chamei voto com diversas motivações. Se o primeiro
pressuposto não se verificar, o caso piora ainda mais. Se as pessoas
tiverem, em média, mais probabilidade de estar erradas do que
certas, será quase certo que o voto da maioria conduzirá ao
resultado errado.
Por conseguinte, só
temos uma resposta a Platão se as duas condições se verificarem.
Verificar-se-ão? Um filósofo que tinha uma firme compreensão
intuitiva desta questão foi Rousseau (apesar de ter publicado as
suas principais obras sobre a democracia vinte anos antes de
Condorcet ter apresentado a sua argumentação matemática).
Efetivamente, é razoável considerar O Contrato Social de
Rousseau uma tentativa — entre outras coisas — de revelar as
condições em que a democracia seria superior ao sistema de
guardiães. Mas, antes de considerarmos a posição de Rousseau em
pormenor, há outra resposta a Platão — complementar — que
devemos analisar.
Os valores da democracia.
Até agora
ocupamo-nos da questão de saber se, para atingir um determinado
objectivo, a democracia é ou não melhor do que o sistema de
guardiães de Platão. Em particular, reduzimos agora isto à questão
de saber se a democracia é ou não capaz de alcançar o bem comum.
Mas há algo de estranho nesta investigação. Muitas pessoas
afirmariam que devemos favorecer a democracia mesmo que se venha a
verificar que os sistemas democráticos são piores do que outros no
alcance do bem comum. Por outras palavras, até ao momento vimos
apenas se existe uma justificação instrumental para a democracia:
será um modo de alcançar algo que valorizamos? Mas talvez
devêssemos considerar outra questão. Existirá algo intrinsecamente
bom na democracia? Ou seja, poderá a democracia ser boa (até certo
ponto, pelo menos) ainda que nem sempre consiga alcançar as
consequências desejadas?
O desenvolvimento
desta reflexão pode levar-nos a pensar novamente na analogia das
profissões. A analogia das profissões baseia-se na ideia de que a
governação é uma arte, uma arte que visa alcançar determinado
objectivo externo. De acordo com Platão, a democracia só poderá
justificar-se se atingir consequências desejáveis. Mas, como
sabemos, nós valorizamos as artes não apenas pelos seus resultados,
mas, pelo menos às vezes, por si próprias também. Poderá parecer
bastante singelo recorrer a uma tal analogia neste contexto, mas
pensemos no exercício de uma arte como passatempo. Mesmo que o
passatempo de um indivíduo seja muito prático, como a carpintaria,
o passatempo raramente é avaliado com base na sua eficácia para
alcançar determinado objectivo. Pode ser uma mesa muito bonita mas,
quando se atribui um custo ao tempo gasto na sua realização, com
certeza que se percebe que há mesas melhores e mais baratas nos
grandes armazéns. Os passatempos permitem que as pessoas enriqueçam
e testem as suas capacidades físicas e mentais e desenvolvem o seu
sentido de auto-estima. E este tipo de valor é independente do valor
dos bens que poderão ser produzidos.
Isto conduz à ideia
de que a democracia não deve ser avaliada simplesmente em termos do
sucesso que tem na obtenção do bem comum, apesar de isso ser também
importante. Assim, devemos analisar de novo a analogia das
profissões. Platão compara a governação à navegação: comandar
o navio do estado. Se deixarmos a navegação entregue à populaça,
podemos imaginar o tipo de caos que daí advirá: “navegando como é
natural que o faça gente dessa espécie”, diz Platão. Nunca
chegaremos aonde queremos.
Mas será necessário
que a navegação possua sempre um propósito claro de chegada
eficiente a um destino predeterminado? Consideremos, por exemplo, uma
viagem pedagógica. Nesse caso, todos deverão ter a possibilidade de
tomar o leme do navio. Na verdade, por que razão uma viagem no navio
do estado não poderá ser feita “navegando como é natural que o
faça gente dessa espécie”? Que há de errado nisso, pelo menos se
todos se divertirem e chegarem sãos e salvos a bom porto?
O ponto sério e
importante a reter aqui é que pode haver valores envolvidos na
tomada de decisões políticas diferentes do valor de atingir
determinados objetivos. Os defensores da democracia dirão que esta
tem valor não apenas — ou não necessariamente — porque nela se
tomam decisões melhores do que noutros tipos de estado, mas porque
há algo valioso nos próprios processos democráticos. Considera-se
geralmente que a democracia dá expressão a dois valores que nos são
caros: liberdade e igualdade. A liberdade, tal como é entendida
neste caso, prende-se com a possibilidade de as pessoas terem uma
palavra a dizer na tomada de decisões políticas, em especial,
relativamente a decisões que as afetam. A igualdade reside nesta
liberdade ser concedida a todos. Para Rousseau, o problema da ordem
política é “encontrar uma forma de associação que defenda e
proteja, com toda a força comum, a pessoa e os bens de cada
associado, e na qual cada um, embora em união com todos, possa ainda
assim obedecer apenas a si próprio e permanecer tão livre quanto
antes” (O Contrato Social, livro I, cap. 6, p. 191). É
notável que Rousseau pense poder resolver este problema. Como pode
um sistema político permitir que “cada associado […] [obedeça]
apenas a si próprio”? É chegada a altura de considerarmos
Rousseau e vermos como este filósofo se propõe defender a
democracia, tanto em termos instrumentais (como forma de alcançar o
bem comum), como por si mesma (como expressão de liberdade e
igualdade).
Fonte:
www.criticanarede.com