A
ideia grega de Paideia
estava ligada a um ideal de formação educacional, que procurava
desenvolver o homem em todas as suas potencialidades, de tal maneira
que pudesse ser um melhor cidadão. Definir o que significa esse
termo é uma tarefa ingrata e sua interpretação tem variado com o
passar do tempo, se vinculando ao tipo de sociedade que se quer
desenvolver (ou preservar).
Hoje vivemos em um mundo cada vez mais integrado economicamente,
assim, é muito importante questionar os aspectos totalitários
presentes no conceito clássico de Paideia que aparecia junto com a
divisão de gregos (os que eram considerados iguais e tinham direitos
políticos, já que eram reconhecidos como cidadãos) e os bárbaros
(que eram excluídos e tomados como inferiores).
Se a educação está estritamente vinculada aos valores que uma
sociedade sustenta, seus preconceitos aparecerão na organização de
seu currículo, no sistema educacional, na própria arquitetura dos
espaços destinados à educação etc. Isso nos traz diversas
questões: o que é privilegiado nas escolas e nos conteúdos
educacionais como natural/ normal? "Quem" é privilegiado?
Por quê? Como esses privilégios se perpetuam? Qual a relação
desses privilégios com a manutenção da estrutura de poder e
autoridade na sociedade?
As "fronteiras da civilização" não deixaram de existir
em nossa sociedade e aceitar algum ideal de homogeneização
normatizadora é algo que pode trazer resultados nefastos. Neste
texto vamos descrever três perspectivas acerca da Paideia grega e
sua posição em relação à educação; a seguir, vamos tentar
desenvolver um olhar panorâmico sobre como esse conceito se
desenvolveu ao longo da história e, por fim, questionar como ele
pode ser útil em nossa sociedade atual.
TRÊS VISÕES DA PAIDEIA NA GRÉCIA ANTIGA
O filósofo japonês Morimichi Kato descreve três perspectivas
diferentes em relação ao ideal de Paideia grega e, a partir delas,
desenvolve uma narrativa para pensar o significado desse termo em
relação à verdade e à educação do homem. Essa divisão é
utilizada por ele não para pensar esse termo em uma perspectiva
histórica, mas sim, para desenvolver um questionamento sobre sua
dimensão filosófica.
Heráclito
e Parmênides fundariam uma primeira perspectiva em relação à
Paideia,
marcada pelo autoritarismo de quem defende uma ideia de verdade
absoluta e atemporal, que só poderia ser alcançada por alguns
poucos homens. Esses sábios teriam a capacidade de distinguir o que
é aparência e o que é Realmente Real (Parmênides), ou alcançariam
um saber em relação à razão que superaria a mutabilidade e a luta
de contrários (Heráclito). A autoridade que possui o saber, então,
pode dizer/ensinar a Verdade.
A segunda perspectiva, mais "democrática", foi
desenvolvida pelos sofistas. Pensadores como Górgias e Protágoras
ridicularizaram a ideia de Parmênides de uma verdade absoluta,
atemporal e imutável. A ideia de que "o homem é a medida de
todas as coisas", desenvolvida por Protágoras, apontaria para
uma posição relativista na qual existiriam tantas verdades quanto
perspectivas humanas. Com os sofistas teríamos o desenvolvimento de
um aspecto pragmatista da Paideia, já que a tarefa dos educadores
seria a de ensinar as verdades que trariam maiores vantagens para os
estudantes em suas comunidades.
A visão dialógica desenvolvida por Sócrates seria a terceira forma
de percepção da Paideia. Ela surgiu em confronto com a visão
relativista dos sofistas e apareceu nos primeiros diálogos de Platão
e em parte de seus escritos de meia idade. Esses diálogos são
chamados de aporéticos (por não apresentarem nenhuma teoria de modo
afirmativo). Diferente do caminho individual para a verdade descrito
por Parmênides, a proposta socrática seria interpessoal, dialógica
e não tem como objetivo alcançar um tipo de verdade atemporal. A
perspectiva dialógica socrática teria três pressupostos: 1) a
verdade é um solo comum entre os homens; 2) ela não pode ser
revelada completamente aos homens; e 3) no entanto, ela é
parcialmente acessível ao homem. A Paideia socrática consistiria,
então, em uma busca intersubjetiva. (Aporéticos Neles, Sócrates
emprega um método de perguntas e respostas chamado de elenchus,
através do qual os que dialogam colocariam suas crenças em jogo,
tentando conseguir uma maior coerência entre si. Em sua forma
característica (descrita por Gregory Vlastos): "Sócrates
extrai uma resposta A para uma questão que ele coloca para um
interlocutor, Sócrates então extrai admissões posteriores do
interlocutor que acarretam a falsidade de A. A implicação é aceita
por ambos, e (quase sempre) ambos concordam que isto mostra (ou até
mesmo prova) que A é falsa" (Davidson, Donald. O conceito
socrático de verdade. Disponível em:
http://ghiraldelli.files.wordpress.com/2008/07/davidson_conceitosocratico.pdf).
Kato não menciona a ideia de elenchus em sua narrativa por
considera-lo demasiadamente vago como método, mas parece pressupor
sua estrutura.)
A PAIDEIA AO LONGO DA HISTÓRIA
A metáfora central da Filosofia Ocidental é a Alegoria da Caverna
descrita por Platão em sua República, mostra Richard Rorty no texto
"Freud nocauteia Platão". A influência cada vez maior de
Parmênides sobre Platão o levou a desenvolver sua teoria das formas
e do sumo bem, desprezando o caminho dialógico socrático em favor
de uma concepção que busca redenção em uma verdade absoluta e
atemporal. A ideia do filósofo como alguém que tem um acesso
especial à verdade e que deve/pode corrigir o olhar dos demais foi
aperfeiçoada por Agostinho, Espinosa, Hegel etc. Resumindo: uma
perspectiva autoritária foi a matriz de fundamentação de nossa
visão de saber/poder.
A perspectiva da educação medieval foi marcada por essa visão
autoritária que delegava o saber para autoridades estabelecidas:
Aristóteles, os pais da Igreja, a Bíblia. Comentar essas obras e
tentar as entender (sem questioná-las) era o modo em que se
desenvolvia a educação. Com o Renascimento, esses "livros
sagrados" e sua autoridade incontestável entraram em questão,
no entanto, a busca por uma verdade absoluta continuou sendo
preservada assumindo diferentes formas.
Somente no século 19, quando Nietzsche anunciou "a morte de
Deus" a procura por uma verdade redentora foi colocada em
questão. Nietzsche diagnosticou nessa busca o ressentimento dos
oprimidos que teriam na posse da sabedoria atemporal uma forma de
poder. Depois disso, cada vez mais se desenvolveu uma perspectiva
relativista em relação à educação e à verdade.
Kato pondera que sua descrição é demasiadamente genérica e deixa
de mencionar muitas e importantes exceções, contudo, tem por
objetivo destacar que a ideia de uma Paideia dialógica nunca
conseguiu ser hegemônica depois de Platão. Ela só volta a acenar
no século 20, na visão hermenêutica de Gadamer, que toma o diálogo
socrático como modelo para estender nosso entendimento acerca de
diferentes textos e culturas.
A
PAIDEIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
A
imposição de uma perspectiva global e a multiplicação de
fronteiras e lugares tomados como estando "fora da civilização",
aumenta a tendência para camuflar com o relativismo posições que
repõem a divisão grega entre cidadãos civilizados e bárbaros sem
direitos. A percepção das diferenças e a guerra entre os lugares
abrem espaço para que o etnocentrismo xenófobo pareça uma posição
justificada. Isso acontece tanto nas fronteiras das grandes cidades,
quanto em presídios à margem da legalidade (Abu Graib, Guantánamo
etc).
Para se construir uma comunidade global é necessário retomar a
Paideia dialógica como esboçada por Sócrates. Só assim poderemos
aprender a respeitar as diferenças e aceitar o diálogo como caminho
para fundir horizontes culturais e aumentar nossa identificação
moral.
Nesse sentido multicultural, é interessante a observação de Kato
de que o conceito confuciano de aprendizagem (xue), como um processo
interminável de alargamento de nossos horizontes, poderia ser
comparado de modo frutífero com a Paideia socrática. Contudo,
lembra Kato, que essa perspectiva foi reificada como um saber
livresco que se tornou autoritarismo, justificando a manutenção da
hierarquia social.
Outra observação importante é a de que, ao negarmos espaço para a
ideia autoritária de verdade absoluta, não negamos automaticamente
os saberes platônicos e neoplatônicos, que podem ser tomados em uma
dimensão conversacional e continuarem sendo interessantes. Nesse
sentido, a ideia de dignidade humana presente no conceito de amor
cristão pode ser útil na construção de diálogos multiculturais.
Da mesma forma, a narrativa de Kato deixa de lado certas
características que podem ser encontradas no discurso socrático,
como a aversão a estrangeiros, a identificação de virtude e
conhecimento e a possibilidade de certo tipo de introspecção que
nos daria a medida para julgar a nós mesmos e aos outros. Esses
aspectos "iluministas" encontrados na perspectiva socrática
deveriam ser deixados de lado.
Para Kato, uma perspectiva socrática deve destacar a importância de
ouvir o que o outro diz. Tanto para os autoritários, quanto para os
relativistas, falar seria mais importante do que ouvir. Os primeiros
consideram que quem ouve é imaturo e se coloca na posição de
discípulo. Os segundos tomam a fala como meio de impor retoricamente
seu ponto de vista como melhor que o dos demais. Ouvir o outro não é
uma atividade passiva, já que faz parte de uma interação na qual
ambos tentam conjuntamente aumentar a coerência entre suas crenças,
na medida em que existe interesse em compreender o outro.
A Paideia socrática nos traz uma perspectiva que aceita a finitude e
a incompletude, com um "profundo reconhecimento de nossas
limitações culturais e humanas (que deve ser aceito como um fato) e
a fé em um solo comum que abriga diferentes credos culturais (o que,
embora seja impossível de se provar logicamente, torna-se plausível
em uma procura comum), nos quais nos abrimos para outras vozes, que
nos fazem, antes de tudo, ouvintes e aprendizes".
Fonte:
Revista Filosofia, Marcos Carvalho Lopes.