Nesta época de luta pelos direitos dos homossexuais, em que tantas
conquistas se fazem notar, a ponto dos preconceitos serem considerados
antiquados e muitos atestarem uma evolução no que tange ao olhar da sociedade
em relação aos gays, cabe uma pergunta delicada: vencidos os embates externos
(contra preconceituosos, homofóbicos e dogmáticos), o que dizer então dos
inimigos internos? A luta dos homossexuais seria apenas contra entidades
"lá fora"? Conquistaram os militantes uma assim dita "identidade
gay"? Muitas opiniões sobre este assunto são possíveis. E o que nos diriam
estes que são dois dos mais importantes filósofos franceses da pós-modernidade:
Michel Foucault e Gilles Deleuze?
A partir das perspectivas assimiladas ao longo da obra
foucaultianodeleuziana, podemos também dizer, conforme explica o antropólogo
Felipe Areda, que ninguém "nasce" homem, mas sim que todos nos
tornamos homens, numa busca constante. A dita virilidade masculina representa o
investimento numa rede relacional: busca- se o reconhecimento da masculinidade.
Esta virilidade é uma ética, uma constante inquietude de si. Ao contrário do
que pregam alguns militantes gays, o sexo não nasce feito. Nem mesmo
"nasce-se gay", na medida em que a singularidade homossexual, como
toda e qualquer singularidade humana, demanda contínua construção,
desconstrução, reconstrução. Não se trata, portanto, de lutar por uma
identidade no sentido de "ser idêntico a", ou seja, "seguir um
modelo pré-estabelecido". O pensamento de Foucault e Deleuze opõe-se à idéia
de seguir modelos, sejam eles quais forem, o que termina conduzindo a uma
dolorosa liberdade: a liberdade de um contínuo criar, de responsabilizar-se por
si mesmo, fazendo de si uma obra de arte singular e única. Um total contraponto
à idéia de seguir um modelo pré-estabelecido que tenha a pretensão de
estabelecer uma "identidade". Tal perspectiva é ao mesmo tempo
libertária e angustiante.
É importante salientar que, ainda conforme Areda, se o sexo é definido
como uma divisão entre gêneros, todo sexo e toda sexualidade é heterossexual,
no sentido de que "hetero" significa "diferente", ou
seja, todo relacionamento sexual entabulado com um ser diferente de mim, seja
ele um homem ou uma mulher, será hetero, pois o sujeito se faz homem na medida
em que faz do outro um... outro. Essa divisão, existente no imaginário
masculino, está longe de ser igualitária, ao contrário, é hierarquizada.
Através do ato sexual, os sujeitos são inscritos numa hierarquia, territórios
são demarcados, corpos e sujeitos são heterossexualizados: eu sou o
homem, você é a mulher.
A partir das descrições históricas
do pensador Paul Veyne, ao relatar os hábitos sexuais dos antigos gregos,
podemos afirmar que até mesmo as ditas relações "homo" da antiguidade
estavam longe de serem "relações entre iguais". Elas eram
heterossexuais, na medida em que o homem mais velho, o erastes, exercia sobre o
efebo impúbere, ou eromenos, um poder, e uma hierarquia era estabelecida. Uma
relação "homo", na antiguidade ou na modernidade, num sentido
semântico do termo, envolveria dois sujeitos que fossem considerados iguais
(sejam eles machos ou fêmeas), sem hierarquias de subjugador e subjugado. Seria
isso possível, ou mesmo real, no chamado "mundo gay"? Para responder
a esta pergunta, julgamos necessário antes navegar em outros oceanos
reflexivos.
Ao que parece, segundo Areda, o discurso heteronormativo, esta assim
chamada "matriz hegemônica de inteligibilidade", tem o poder de
penetrar até mesmo o universo gay, atravessando todas as relações e adequando
tudo o que encontra a uma lógica hegemônica. A mesma misoginia que cria o
discurso homofóbico sobrevive nessa divisão tão solidamente estruturada por
discursos culturais dentro dos guetos gays, criando até nos relacionamentos
mais íntimos barreiras identitárias poderosíssimas. A intolerância, pretensamente
apontada pelos militantes gays no que eles chamam de "totalitarismo
heteronormativo", parece ser uma pálida sombra se comparada à intolerância
que subjaz nos próprios guetos homossexuais sob os mais diversos aspectos que
serão expostos ao longo deste artigo: o ódio aos travestis, o desprezo aos
sexualmente passivos, o horror aos afeminados, como se "ser gay"
significasse necessariamente seguir um modelo identitário pré-formado: ser
homossexual é possível, contanto que o sujeito siga a cartilha. E a cartilha
dita que todos sejam másculos e se comportem bem. Não se trata, obviamente, de
uma cartilha escrita, mas fica patente no discurso presente tanto entre
heterossexuais quanto homossexuais, em que se vaticina que "ser gay é
possível, contanto que o cara seja macho e se dê ao respeito".
Vale a pena questionar: existe, de fato, um exemplo de tolerância? Houve
tal exemplo em algum momento da história humana que poderia ser seguido como um
modelo? E o que Foucault, Deleuze e Veyne pensam a respeito de seguir modelos
históricos passados, conforme propõem alguns militantes?
É assaz comum, no que concerne aos argumentos de alguns militantes gays
acerca da homossexualidade, referir-se - ingenuamente - à antiga Grécia como um
exemplo espetacular de civilização tolerante para com a prática homoerótica,
considerando a civilização judaico-cristã como atrasada em relação à realidade
homossexual. A partir desta comparação histórica, evoca-se a idéia de um
relativismo moral e questionam-se as bases do preconceito moderno. Todavia,
muitos militantes parecem ignorar que, no que tange à antiga Grécia, temos
interdições tão claras quanto as interdições atuais, muito embora sejam
interdições diferentes. Conforme discorre Foucault ao longo da sua obra, não é
interessante tomarmos outra época como um modelo, pois não há um valor exemplar
em um período que não seja o nosso próprio. Deleuze valida esta afirmação, ao
sustentar em sua obra Conversações que Foucault detestava retornos: falamos do
que vivemos. A história não diz o que somos, não estabelece a nossa identidade,
diz apenas aquilo que estamos em vias de diferir. Paul Veyne emite um
pensamento similar em O Último Foucault e sua Moral, ao dizer que o
que se opõe ao tempo, assim como à eternidade, é a nossa atualidade.
A pederastia, relação erótica entre um homem adulto, erastes, e um rapaz, o efebo, era praticada por toda a elite na Grécia Antiga. A relação sexual entre pessoas adultas do mesmo sexo, entretanto, era reprovada, pois havia a preocupação com a questão da passividade.
Fazer uma "arqueologia
gay", portanto, não é necessariamente voltar- se para o passado. Deleuze
aponta em Conversações para uma arqueologia do presente, em que tomamos as
coisas para extrair delas as suas visibilidades. Não se trata, em absoluto, de
procurar um modelo dito ideal que sirva como norma moral para os gays, mas - retomando
Nietzsche - descobrir como a operação artística da vontade de potência permite
a invenção de novas possibilidades de vida: um "ser gay" que se
constrói, se inventa, um "ser" enquanto verbo atuante em nosso tempo,
jamais como substantivo-modelo de uma época passada.
Para Foucault, Deleuze e Veyne, não se trata de seguir um modelo, mas de criar um modo de vida gay que admita a pluralidade.
Deste modo, respondemos desde já a pergunta explicitada nos parágrafos
anteriores: não, segundo Foucault, Deleuze e Veyne, não se trata de seguir um
modelo, muito menos um modelo grego antigo, mas de criar um modo de vida gay
que admita a pluralidade, um modo que se recrie continuamente, de forma integra
e autocrítica, buscando maneiras de sabotar qualquer espécie de normatividade.
Esta é uma proposta mais revolucionária do que talvez imaginemos, quando
falamos em "respeito às diferenças".
Deste modo,
respondemos desde já a pergunta explicitada nos parágrafos anteriores: não,
segundo Foucault, Deleuze e Veyne, não se trata de seguir um modelo, muito
menos um modelo grego antigo, mas de criar um modo de vida gay que admita a
pluralidade, um modo que se recrie continuamente, de forma integra e
autocrítica, buscando maneiras de sabotar qualquer espécie de normatividade.
Esta é uma proposta mais revolucionária do que talvez imaginemos, quando
falamos em "respeito às diferenças".
Vale ressaltar que Foucault jamais apresenta uma resposta, uma solução, nem
aponta um caminho que possa ser considerado como "certo" para as
problemáticas gays. Esta resposta cada um deve encontrar por si mesmo, num
ativismo pessoal, numa militância do sujeito. Até mesmo porque, de acordo com o
olhar foucaultiano, não existe escolha certa, e sim uma escolha entre perigos,
onde devemos buscar dos males o menor. Sim, Foucault é pessimista em sua visão,
mas jamais apático. Seu pessimismo deriva da consciência de que toda escolha é
perigosa, e acarreta em efeitos colaterais inevitáveis. Não existe
"caminho melhor" e "caminho pior", para Foucault, e sim
caminhos com problemas diferentes, com perigos diferentes, em que o perigo
principal deve ser identificado.
"Sejamos mais precisos: melhor que de homossexualidade, deveríamos falar de relações entre pessoas do mesmo sexo. Deveríamos, então, empregar o termo homofilia. De fato, sem exacerbar o sentido do paradoxo, poderíamos até mesmo afirmar que a homossexualidade não existe na Grécia". Jean-Philippe Catonné.
É curioso observar que as críticas de muitos homossexuais (alguns destes
críticos inclusive militantes da causa gay) acerca da afeminação de gays
mostrados na TV não é muito diferente das críticas que um homem afeminado
sofreria na antiga Grécia. É extremamente comum, nos tempos modernos, a
afirmação "eu sou gay, mas não sou afeminado e detesto afeminados".
Além disso, saliente- se o fato de que o termo pejorativo "bicha
passiva" é amplamente utilizado por muitos homossexuais para se referir a
outros com sinal de evidente desprezo. Nada disso é muito novo, e quem enxerga
a antiga Grécia como um paraíso da diversidade gay, se equivoca profundamente.
De acordo com Paul Veyne, em sua obra "A Homossexualidade em Roma",
um homófilo pas sivo (diat ithemenos) era alvo de desprezo e de rejeição,
sobretudo por parte do exército. Veyne conta que certa feita um homossexual
passivo foi poupado de ser decapitado, porque o imperador não queria que a
lâmina do gládio do carrasco fosse conspurcada por tão "aviltante
criatura" (sic). A afeminação masculina era vista pelos antigos
greco-romanos como algo desprezível. De modo análogo, muito embora por razões
diferentes, muitos homossexuais modernos parecem sofrer da mesma aversão à
passividade sexual masculina.
A afeminação masculina era algo desprezível para os antigos romanos.
Hoje, os homossexuais sofrem da mesma aversão à passividade sexual.
Fica
evidente que existe um modelo normativo entre os próprios homossexuais, modelo
que se pauta em regras e em "modos de ser" que, longe de criar sujeitos
criativos, cria aquilo que Foucault chama de "clones", ao se referir
aos homens de aparência similar nas paradas gays (na época de Foucault, homens
com fartos bigodes e óculos Ray-ban; modernamente, homens anabolizados e
preferencialmente depilados). Na entrevista "A Amizade como Modo de
Vida" concedida ao jornal Gai Pied em abril de 1981, Foucault usa o termo
"clones bigodudos", para se referir a estes homens "todos
iguais". Estes "clones", ao contrário de criarem a obra de arte
de suas próprias existências, compraram o modelo pré-existente, pré-fabricado,
uma identidade de plástico, uma identidade que busca o idêntico: o modelo, o
molde, o "dever ser".
Os movimentos de militância gay demonstraram por
vezes diversas uma inclinação totalitária. Ao invés de proteger os
homossexuais, lutando pelos justos direitos civis, tais movimentos algumas
vezes pareceram mais empenhados e ocupados em destruir radicalmente tudo o que,
na sociedade, na cultura ou em sujeitos particulares, explicite discordância. A
ideologia torna-se uma arma policial delirante que tenta proibir toda
divergência de opinião, toda repulsa espontânea, todo pensamento que a
desagrade e até mesmo as piadas, que fazem sentido dentro do contexto de uma
comédia, peça ou novela. O que não faltam são ameaças de processo contra
autores que, desejando fazer comédia, criaram um personagem caricato, cômico e
gay.
Ao eliminar
toda diferença, o que sobra? Uma montanha intransponível de concordância e
subserviência à cartilha politicamente correta (e politicamente tirânica). As
próprias atitudes públicas de alguns dos ditos "representantes dos
gays" evidenciam isso. Tais representantes, munidos da mais intensa disposição
de perseguir qualquer opinião que contrarie a deles, dizem falar em nome dos
gays, mas o que isso significa? Não podemos nos furtar a citar o que Deleuze,
em Conversações (p.110) chama de "indignidade de falar pelos outros".
Transportando esta fala para o presente assunto, ousamos perguntar: como é
possível que uma militância que critica a existência de personagens gays
afeminados em novelas e espetáculos se diga porta-voz de todos os gays?
Definitivamente, não. Estes, no máximo, falam em nome de um tipo específico de
gay - especificamente o gay que não fere as suscetibilidades dos
heterossexuais, comportando-se de um modo domesticado, padronizado, que permita
que os homossexuais sejam vistos "como pessoas de respeito" - uma
priorização à moral, mas não uma ética. Nada além de uma subserviência à
normatividade já vigente.
A dignidade de não falar
pelos outros deveria ser parte do intelectual, para Deleuze, que denuncia em
Conversações (p.110): sempre que alguém diz "ninguém pode negar",
"todo mundo há de reconhecer que", eis uma mentira ou um slogan. A
proposta deleuziana-foucaultiana é a de que cada um fale em seu próprio nome.
Não devemos falar em termos de valores universais, mas em nome de nossa própria
competência e situação.Se o grupo não é multivocal, onde está a ética?
Guatarri, com quem Deleuze trabalhou por diversas vezes, enfatizaria a idéia de
"transversalidade", por oposição aos grupos hierarquizados onde temos
um que fala em nome de todos os outros.
"Homofobia" é um termo
para designar o complexo emocional que, no seu entender, seria a causa da
violência criminosa contra homossexuais.
Vale salientar também a apropriação, por parte de algumas militâncias
gays, de termos que são usados com o evidente intuito de exercer poder, de
subjugar. "Homofobia" é um bom exemplo moderno. Segundo Olavo de
Carvalho, este termo foi introduzido pelo psiquiatra George Weinberg, no livro "Society
and the Healthy Homosexual" (New York, St, Martin's Press, 1972)
para designar o complexo emocional que, no seu entender, seria a causa da
violência criminosa contra homossexuais. Observamos, contudo, uma apropriação
deste termo por algumas militâncias gays, que passaram a acusar de
"homofobia" uma série de fatos, atos e discursos de uma maneira
exagerada que nos faz pensar: não seria, na verdade, uma forma de demonstrar
poder? Uma forma clara de tentar intimidar todos aqueles que pensam diferente
destes militantes? À luz do que estudamos sobre relações de poder em Foucault e
Deleuze, ousamos dizer que sim.
Ainda segundo Carvalho,
no livro "A History of Homophobia", o ensaísta Rictor Norton,
um apologista da homossexualidade, é bem franco sob esse aspecto: "Com
muita freqüência, a palavra 'homofobia' é apenas uma metáfora política usada
para punir.". Sob este ponto de vista, o exagero é evidenciado quando os
militantes acusam de "homofobia" toda e qualquer pessoa que não
pregue a cartilha da militância e repita, tal qual foi determinado pelo alto
comando de algumas ONGs e instituições, o que pode e o que não pode ser
expresso como opinião a respeito da vida homossexual.
MILITÂNCIA GAY VERSUS MILITÂNCIA DA
DIVERSIDADE
Uma
cultura homossexual, para Foucault, deveria possibilitar instrumentos para a
polimorfia, a variabilidade, a diversidade, evitando uniformizações e
estabelecimento de regras de conduta. A simples idéia de "programas"
e "proposições" estabelecidas por uma autoridade institucional, ainda
que gay, feita para gays, é um perigo, pois na medida em que um programa se
apresenta, ele estabelece uma lei, um mandamento, e isso bloqueia o fluxo da
livre invenção. Neste sentido, Foucault é categórico ao afirmar que qualquer
programa deve ser vazio (Da Amizade Como Modo de Vida, jornal Gai Pied,
p.38-39). Na medida em que cavamos a história, descobrimos como as coisas foram
historicamente contingentes, mas não necessárias. Qualquer coisa que seja
estabelecida como uma necessidade homossexual deve ser peremptoriamente negada,
pois o que existe (ou o que já existiu) está longe, muito longe de preencher
todos os espaços possíveis.
Segundo
a professora Beatriz Preciato, "O corpo da multidão gay aparece no centro
do que poderíamos chamar, retomando uma expressão de Gilles Deleuze, de um
trabalho de "desterritorialização" da heterossexualidade. Uma
desterritorialização que afeta não apenas o espaço urbano, como também o espaço
corporal. Este processo de "desterritorialização" do corpo implica
uma resistência ao processo de chegar a ser "normal". O fato de que
haja tecnologias precisas de produção de corpos "normais" ou de
normalização dos gêneros não acarreta um determinismo ou um fracasso da
possibilidade de uma ação política. Uma vez que os gays trazem consigo como
resíduo a história das tecnologias de normalização dos corpos, eles também
detêm a possibilidade de intervir nos dispositivos biotecnológicos de produção
de subjetividade sexual".
Deste
modo, segundo Preciato, identificações de teor pejorativo como
"sapatonas" ou "bichas" se converteram em lugares de
produção de identidades de imensa importância, que resistem à normatização, que
desafiam o poder totalitário, das chamadas constantes à "universalização
do modo de ser gay", quer os gays normatizados gostem disso ou não.
Ainda
conforme Preciato, "Influenciadas pela crítica do período pós-colonial, as
teorias gays dos anos 90 têm utilizado os enormes recursos políticos das
identificações de "gueto", identificações que iriam ter um novo valor
político, dado que pela primeira vez os sujeitos do enunciado eram as próprias
"sapatonas", as "bichas de jeito tresloucado", os negros e
os transgêneros. Ainda que muitos insistam numa "guetização"
normatizadora, os movimentos e as teorias gays respondem com estratégias ao
mesmo tempo hiperidentitárias e pós-identitárias., estes movimentos criativos
fazem um uso radical dos recursos políticos da produção performativa das
identidades desviadas."
Destacamos,
por fim, a força de alguns poucos lugares específicos, como a boate "A
Lôca" de São Paulo, um espaço com decoração inspirada em deuses e seres
mitológicos somados a ícones do universo sadomasoquista. "A Lôca" é
referência underground em São Paulo e recebe um público que ilustra a
diversidade e o respeito às diferenças identitárias, sem preconceitos: ao lado
de homens gays musculosos, dançam travestis, "bichas velhas", bissexuais,
lesbian chics, "sapatonas", góticos, e até mesmo heterossexuais sem
preconceito. Internacionalmente, Beatriz Preciato cita a força de movimentos
específicos como as Radical Fairies, grupo que representa as "bichas
loucas" nos EUA, deriva de sua capacidade para se utilizar de suas
posições de sujeitos "abomináveis" (esses "maus sujeitos",
segundo os próprios gays normatizados) para fazer disso lugares de resistência
ao ponto de vista "universal", à história branca, colonial e machista
do ser humano ocidental. E é deste machismo colonialista que os gays precisam
se livrar - não apenas fora de si, mas
Usar o mesmo termo
("homofobia") para definir um skinhead espancador de homossexuais e
uma pessoa que diz ser contra o casamento gay por motivos religiosos parece ser
uma forma injusta e cruel de nivelamento, e mais que isso: uma tentativa explícita
de censurar a opinião das pessoas. De onde nos permitimos pensar: este tipo de
militância gay luta efetivamente pelos direitos dos homossexuais, ou não passa
de uma forma de exercer poder e ditar regras? Não seria esta forma de
militância gay apenas mais uma fórmula ideológica e projeto de poder? Para
Veyne, por exemplo, segundo Yolanda Gloria Gamboa Muñoz em Escolher a Montanha
(p.41) a ideologia é um estilo nobre, porém vago, que idealiza as práticas,
dissimulando os contornos das práticas reais: o que se faz e o que se diz.
Conforme cita Muñoz a respeito de Veyne: "Por isso, em certo momento, ele poderá afirmar que 'a ideologia
não existe'" (Escolher
a Montanha, pg.41, 2005)
Não obstante as declaradas intenções libertadoras da militância gay, um
olhar mais apurado não deixa escapar uma ideologia normatizadora que norteia
tal militância. Um militante da causa gay certa feita comentou, em entrevista,
o seguinte:
"(...) que morreu de vergonha quando a família de seu namorado
assistia à novela e "apareceram as bichas velhas, desmunhecando, fazendo
tiranias e baixarias". "Essa é a imagem que o povo tem da gente, e
lutamos para que nos vejam como somos, homens que gostam de homens e não
malucas desvairadas caricatas". Acusado de "fundamentalista",
por querer processar o autor de televisão, X responde perguntando:
"Defender nossa dignidade é fundamentalismo GLBT?"
Este discurso deixa claro, de forma deveras impressionante, que a fala
militante neste caso prevê regras de conduta, modelos de comportamento e
normatizações para o "ser homossexual" ("ser" enquanto
verbo e não substantivo, vale salientar). Fica evidente, na fala deste dito
representante da causa gay, que um sujeito pode ser homossexual, contanto que
não seja uma "maluca desvairada e caricata" (leia-se: afeminado) e,
ao que parece, ser "velho" é também um demérito, e não uma condição natural
e inevitável da biologia. Tal discurso não dá espaço para a invenção da
homossexualidade a partir de um ativismo constante e auto-questionador,
conforme nos propõe Foucault. Existe, para este tipo de militante, uma forma
ideal de ser homossexual, uma forma que, justamente por ser idealizada, exclui
terminantemente uma realidade: efetivamente, existem homens homossexuais
afeminados, quer gostem disso ou não os gays descolados, modernos e másculos. É
importante salientar que a vergonha que o sujeito disse sentir está atrelada ao
olhar dos heterossexuais sobre a cena: ele não sente vergonha por ver a cena,
ele sente vergonha quando a família (heterossexual) a assiste, ou seja, ainda
necessita da aprovação do status quo heterossexual do qual ele diz ser liberto.
"Lutar para que nos vejam como somos" só faz sentido se esta luta
incluir, conforme salienta Foucault, a diversidade, e também a liberdade
criativa para que nos inventemos continuamente, criando novas formas de
relações e de "ser". Qualquer tentativa de uniformização não passa de
trocar um modelo de regras por outro: no caso, troca-se o modelo normativo
heterossexual por um modelo normativo homossexual completamente infectado pela
misoginia e pelo machismo. E o que significaria "nos ver como
somos?", afinal de contas a pluralidade prevê incontáveis "jeitos de
ser", alguns inclusive que nem foram inventados ainda. O discurso
militante subentende que existe um "como somos" universalmente válido
para os gays do norte, do sul, do leste e do oeste.
Em sua entrevista intitulada "De
l'amitié comme mode de vie", concedida a R. de Ceccaty, J. Danet e J.
le Bitoux para o jornal "Gai Pied" em abril de 1981, Foucault chama a
atenção para o problema da construção da identidade homossexual. O problema,
segundo Foucault, não reside no questionamento "quem sou eu?"
(autoconhecimento), e sim na seguinte questão: quais relações podem ser
estabelecidas, inventadas, multiplicadas, moduladas através da
homossexualidade? Foucault, aqui, enfatiza a importância do "cuidar de si"
sobre o mero "autoconhecimento". Que se destaque aqui a importância
do termo "invenção", ponto chave para o entendimento do pensamento
foucaultiano. A prioridade não está numa descoberta de "quem sou", e
sim uma responsabilidade ética de se inventar, se reinventar, como num
devir-gay. A vida como uma obra de arte.
Deleuze, no que diz respeito à concepção da vida como uma obra de arte,
salienta que a constituição dos estilos de vida (podemos aqui nos referir aos
estilos de vida gay) não é somente estética, é também uma ética, por oposição à
moral. Deleuze detalha esta diferença em sua entrevista a Didier Eribon:
"(...) A diferença é esta: a moral se apresenta como um conjunto de regras
coercitivas de um tipo especial, que consiste em julgar ações e intenções
referindo- as a valores transcendentes (é certo, é errado...); a ética é um
conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em
função dos modos de existência que isso implica." (Deleuze, "A Vida
como Obra de Arte", entrevista concedida ao jornal Le Nouvel Observateur,
em agosto de 1986).
Para Deleuze, constituição dos estilos de vida, como o estilo de vida gay, não é somente estética, mas também ética, por oposição à moral. "A diferença é esta: a moral se apresenta como um conjunto de regras coercitivas de um tipo especial e a ética é um conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em função dos modos de existência que isso implica".
A partir
desta diferenciação entre ética e moral, não nos passa
despercebido, diante da ação e idéias dos gays, que alguns deles - tanto quanto
qualquer heterossexual - parecem estabelecer uma moral, um manual de regras de
como os gays devem ser e se portar, de que é certo ser um gay deste modo, mas é
errado ser de outro modo (ser afeminado; ser espalhafatoso; ser velho). Isso
fica evidente nos preconceitos existentes dentro dos próprios guetos, e na
repulsa a manifestações estéticas femininas dentro dos meios e paradas gays
hipermasculinizadas. O discurso militante enfatiza continuamente "que os
gays devem ser vistos como pessoas de respeito". Mas o que isso significa?
Qual é a "vontade" de verdade suposta por um discurso que se impõe
como "verdadeiro" e que esse discurso só pode ocultar? Podemos ir
além: não seriam os guetos gays verdadeiros internatos, meios de confinamento?
Os próprios homossexuais parecem "se internar", na medida em que
consideram, para usar um termo coloquial, "uma queimação de filme" a
demonstração de afeto homoerótico fora de lugares que não sejam considerados
"apropriados".
Fonte: Revista Filosofia, Alexey
Dodsworth Magnavita.