Quando buscamos os fundamentos da
filosofia ocidental, três filósofos ocupam o lugar mais elevado:
Sócrates, Platão e Aristóteles. Dificilmente poderíamos
estabelecer alguma hierarquia de valor entre eles, afirmar qual deles
é maior ou teve maior relevância para nós. O que parece claro é
que, tendo vivido em épocas bastante próximas, cada qual galgou
degraus a partir do caminho aberto pelo anterior. Assim, Sócrates
teria sido um precursor, apontando paisagens até então
desconhecidas no horizonte filosófico. Platão, considerado seu
discípulo, bem viu as indicações do mestre e foi além.
Aristóteles, aluno por mais de vinte anos na escola fundada por
Platão, a Academia, afasta-se do mestre e trilha seus próprios
caminhos. Não há como mostrar em poucas linhas todos os pontos
centrais nestes filósofos, e menos ainda precisar as diferenças
entre eles. No entanto, é possível, se escolhermos um ponto de
vista determinado, observar as diferenças de enfoque propostas por
cada um deles. Aqui, vamos observar como cada um se aproximou daquilo
que talvez seja o centro da Filosofia: o conhecimento. Vamos ver de
que modo cada filósofo procura dar conta da possibilidade de ciência
(epistéme).
A
figura emblemática da Filosofia é, sem dúvida, Sócrates. Torna-se
o signo marcante da divisão do mundo filosófico em eras: pré e pós
Sócrates. Antes dele não havia, então, Filosofia? Sem dúvida que
sim. Tudo parece ter começado com Tales, tido como um dos sete
sábios da Grécia. Vieram outros tantos: Anaximandro, Heráclito,
Parmênides, Empédocles, Anaxágoras... E, contudo, Sócrates é o
grande marco: seus precursores ganharam o rótulo de pré-socráticos,
e o mundo ocidental nunca mais seria o mesmo depois de sua vinda. Mas
que teria ele feito para ganhar tamanho destaque? Quem foi, afinal,
Sócrates?
Dizer
quem foi
exatamente Sócrates talvez não seja possível. Estima-se que tenha
nascido por volta de 470 a.C. e morrido em 399 a.C., condenado à
morte pelos juízes de Atenas, mas como não deixou obras escritas,
tudo que sabemos a seu respeito tem origem nos trabalhos de outros.
Como fontes principais, temos as “apologias de Sócrates”, um
gênero literário bastante em voga na época, escritas por
admiradores e seguidores de Sócrates. Há, porém, um importante
comediógrafo contemporâneo de Sócrates, Aristófanes, que nos
deixou em sua peça As nuvens
um retrato bastante irônico de Sócrates, onde este é apresentado
de maneira ridícula e é equiparado aos sofistas. Sócrates é
figura controversa em Atenas: amado por uns, por discípulos e amigos
fiéis que o seguem até a morte, mas odiado por muitos, a tal ponto
de ser condenado à morte.
Comecemos
pelo Sócrates que aparece em As nuvens,
comédia apresentada em 423 a.C., mais de 20 anos antes de sua morte.
O Sócrates apresentado ali é um físico, voltado a indagações
sobre a natureza, como, por exemplo, quantas vezes uma pulga salta o
tamanho de seus próprios pés. E é também um sofista, alguém que
ensina a transformar um discurso fraco em forte, de modo a ganhar
qualquer causa num tribunal, ou seja, alguém muito pouco preocupado
com a verdade e a justiça. Nada tão distante do Sócrates oferecido
por Platão, inimigo dos sofistas e amante da verdade! Entretanto,
talvez haja aí algo historicamente plausível, pois uma boa comédia
deveria ter, dentro dos padrões da poesia grega, uma certa
verossimilhança. Os gregos, afinal, não tinham a nossa noção de
ficção, mas operavam com o conceito de mímesis,
de imitação. O que talvez possamos supor é que, ao menos para os
olhos do povo, Sócrates era um filósofo da natureza, tal qual seus
antecessores “pré-socráticos” e, além disso, era tido como um
sofista, um homem empenhado nos debates.
Se
levarmos isso em conta, fica mais fácil entender o processo e o
julgamento de Sócrates. Vejamos como se passam as coisas na obra de
Platão, a Apologia
de Sócrates.
Quem se encarrega da defesa é o próprio Sócrates, apresentando-se
não como um grande orador, mas como alguém que diz o justo, o
verdadeiro. Ao caracterizar seus adversários, reconhece dois tipos:
os mais antigos – numa clara alusão a Aristófanes – e os mais
jovens. Seus primeiros adversários seriam, assim, todos aqueles que
compactuam com uma mentalidade profundamente arraigada na cidade,
para quem Sócrates seria acusado de “investigar indevidamente o
que se passa embaixo da terra e no céu, deixar bons os argumentos
ruins, e induzir os outros a fazerem o mesmo”. Ora, nada mais
falso, alega Sócrates, afirmando não ter jamais procurado ensinar
alguém, nem ter recebido dinheiro em pagamento – ao contrário dos
sofistas, que cobram para ensinar. Por que, então, as calúnias?
Aqui vem o trecho mais famoso, e por onde Sócrates tornou- se
imortal: se os sofistas são grandes sábios, portadores de um
conhecimento sobre-humano, Sócrates nada mais é que homem, mas,
dentre estes, é portador da mais alta sabedoria, da única
propriamente humana. Que sabedoria é esta?
Sócrates
conta que seu amigo de infância Querefonte consultou certa vez o
oráculo de Delfos para saber se haveria alguém mais sábio do que
Sócrates. Não há, é a resposta da divindade. Ora, Sócrates não
podia atinar com o significado destas palavras, pois não se
considerava sábio. No entanto, não é da natureza divina mentir;
que significaria, então? Começou a buscar incessantemente um homem
que fosse considerado sábio. Primeiro interrogou um político, mas
percebeu que este se considerava sábio sem, de fato, sê-lo.
Procurou demonstrar ao seu interlocutor que ele não era realmente
sábio, mas foi em vão, o homem mantinha- se seguro de sua
sabedoria. Tudo que Sócrates obteve foi o ódio por parte desse
político. Tirou, porém, para si, um resultado: percebeu ser mais
sábio que o homem, pois, se aquele acreditava saber, ele ao menos,
sabia não saber.
E
assim foi
repetindo o processo com outros políticos, depois com outros homens
considerados sábios pela cidade, os poetas. Percebeu que não era
por possuírem sabedoria que faziam seus poemas, mas por inspiração;
tal como os adivinhos, dizem coisas belas, mas não sabem o que
dizem. Passou, então, para a classe dos artesãos, que ao menos
tinham um conhecimento sobre sua arte. Estes, porém, assim como os
anteriores, julgavam que, por terem conhecimento acerca de sua
profissão, também saberiam sobre outros assuntos. Todos, enfim,
julgavamse sábios e não reconheciam não saber. Ora, o que é
preferível: saber que nada sabe ou enganar-se achando saber aquilo
que não sabe? Sócrates opta por sua sabedoria e reconhece-se sábio:
sabe que não sabe. Põe-se, a partir daí, numa verdadeira missão a
serviço da divindade. É sua tarefa examinar qualquer pessoa que
pareça sábia e mostrar-lhe sua ignorância. Eis como Sócrates
angariou o ódio da cidade em geral e preparou o caminho para sua
execução.
A
ciência deve procurar reconhecer a “qüididade”, isto é, a
definição de todos os seres, investigar o que faz com que “um
isto” seja isto e não aquilo.
A
Apologia
de Sócrates
não termina aqui. Sua defesa continua, agora, dirigindo- se aos mais
jovens, que o acusaram de corromper os moços e de não acreditar nos
deuses da cidade. Sócrates não se arrepende de seus atos e explica
por quê. Sempre praticou a justiça, apesar dos perigos de morte que
corria, pois seus inimigos certamente acabariam por levá-lo a um
processo fatal. Um homem não deve pesar as possibilidades de vida ou
de morte, mas pesar se age com justiça ou não. Quanto à morte, não
temos elementos para decidir se será um bem ou um mal. Só nos cabe
julgar nossos próprios atos. “Temer
a morte é o mesmo que supor-se sábio quem não o é, porque é
supor que sabe o que não sabe. Ninguém sabe o que é a morte, nem
se, porventura, será para o homem o maior dos bens; todos a temem,
como se soubessem ser ela o maior dos males.(...) Sei, porém, que é
mau e vergonhoso praticar o mal, desobedecer a um melhor do que eu,
seja deus, seja homem; por isso, na alternativa com males que conheço
como tais, jamais fugirei de medo do que não sei se será um bem.
(29a)”. É essa integridade de Sócrates que acabará por
condená-lo à morte. Não pode aceitar uma absolvição que exija o
abandono de sua tarefa. Não poderá viver se não for perambulando
pela cidade, fazendo perguntas e persuadindo todos a se preocupar não
com as riquezas, mas com o aperfeiçoamento da alma. Sua condenação
é um mal, não para ele, mas para a cidade, ingrata com uma dádiva
da divindade.
Para
Aristóteles, há formas universais existentes nas coisas. Com o
pensamento fazemos generalizações e
apreendemos algo universal nos vários objetos corporais.
apreendemos algo universal nos vários objetos corporais.
Mas
a fama de Sócrates não vem apenas da lendária frase “Só sei que
nada sei”. Ele é também a principal personagem da maioria dos
diálogos de Platão. Em sua juventude, Platão escreveu vários
diálogos que apresentam este Sócrates interrogador. Conversando com
as mais variadas figuras de Atenas, ora um general, ora um sofista,
ora um poeta, Sócrates vai sempre interrogando, buscando responder à
pergunta socrática: “O que é?”, por exemplo, no Hípias
maior,
pergunta a um sofista o que é a beleza, ou melhor, o que é o
próprio belo, o belo em si. O que Sócrates busca é o belo pelo
qual as coisas belas são belas. Seu interlocutor, porém, incapaz de
compreender a pergunta, responde sempre mostrando coisas belas: o
belo é uma linda jovem, o belo é o ouro, o belo é uma vida feliz.
O mesmo acontece em outro diálogo, o
Laques,
em que um general é incapaz de responder o que é a coragem, não
percebe o que é que, estando em todos os atos corajosos, é o mesmo.
Também no Protágoras,
novamente o interlocutor é incapaz de dizer o que é a virtude, ou
no Eutífrão, um sacerdote é incapaz de responder o que é a
piedade. Todos os diálogos socráticos são aporéticos. Não há
resposta, não chegamos ao que seja a virtude, a piedade, a beleza ou
a coragem. De algum modo, ainda que possam trazer consigo uma
doutrina não de Sócrates, mas platônica, os diálogos socráticos
preservam um pouco da imagem histórica de Sócrates, um homem sempre
interrogando, sempre mostrando aos interlocutores que estes no fundo
não sabem. Um homem que também não sabe, mas sabe que não sabe, e
por isso pergunta.
Qual
é então sua filosofia?
O
que é que prega o Sócrates dos diálogos de juventude de Platão?
Não se trata de uma filosofia positiva, mas de uma exigência.
Sócrates exige que seu interlocutor encontre um certo caráter
genérico capaz de explicar a multiplicidade de exemplares. É
preciso encontrar, por exemplo, o caráter genérico comum a todos os
atos piedosos, e mais, esse caráter genérico deve explicar por que
os atos piedosos são piedosos. É preciso encontrar a própria
piedade, o próprio belo, etc. Seus interlocutores têm muita
dificuldade para compreendê-lo. Hípias
responde-lhe que o próprio belo é uma jovem bela. Não consegue
perceber que o próprio belo é aquilo que está presente numa jovem
bela e que a faz ser bela. Em resumo, é dupla a exigência
socrática: encontrar uma certa unidade na multiplicidade (o Belo
presente nos muitos belos) e encontrar nessa unidade a causa da
multiplicidade (o Belo como causa dos belos).
Não
é pouco. Essa exigência socrática levará Platão a desenvolver
sua teoria das Formas. Aristóteles também não a perde de vista e
louva Sócrates (Metafísica,
XIII, 1078 b27-30) por ter buscado a presença do universal na
definição. Sem esse “próprio”, dirá Platão, sem a definição
universal, dirá Aristóteles, não há possibilidade de epistéme,
de ciência. Platão tentará satisfazer a exigência socrática. Mas
é árdua sua tarefa, pois não pode deixar de lado as conseqüências
extraídas de duas filosofias anteriores, pré-socráticas: de
Heráclito e de Parmênides. Para Heráclito, o mundo está em
perpétuo estado de fluxo, nunca entramos duas vezes no mesmo rio
(são sempre novas águas), “somos e não somos”. Se a noção de
ser em Heráclito é bastante fraca, Parmênides, ao contrário,
funda o conceito de ser: é ou não é; se algo é, é. O Ser de
Parmênides é eterno, uno, indivisível, imóvel. E Platão extrai
algumas conseqüências destas doutrinas e terá que dar conta delas.
Concorda com Heráclito: é fato que este mundo visível, sensível,
está sempre mudando; não há como encontrar um certo “mesmo” em
tudo isso. Por outro lado, é preciso concordar com Parmênides
quando se examina determinados tipos de seres: a coragem, por
exemplo, é um certo ser que jamais será não corajoso; se a coragem
é, ela é sempre coragem.
Qual
é o grande problema que surge do confronto entre Heráclito e
Parmênides? Se Heráclito for levado às últimas conseqüências,
não há possibilidade de ciência. No Teeteto,
Platão expõe isso: o sofista Protágoras expressa um relativismo
derivado de uma leitura extremada de Heráclito: o ser se reduz ao
que aparece para alguém. Para Protágoras, “o homem é a medida de
todas as coisas, das que são, que são, das que não são, que não
são” (152 a). O que é o vento? Se, para mim, ele aparece como
frio, então ele é frio para mim. O homem é a medida para si do que
lhe aparece. Não há, dentro desse quadro, a possibilidade de algo
em si mesmo, algo que seja ele próprio, independente de outrem.
Outra conseqüência dramática da fi- losofia de Heráclito seria a
impossibilidade de linguagem: se tudo está em perpétuo fluxo, as
próprias coisas não possuem um ser que permaneça estável e do
qual eu possa dizer algo. Platão reconhece todos esses problemas. Se
o conhecimento for o conhecimento do mundo sensível, então é
preciso extrair todas as conseqüências da doutrina de Heráclito:
não há mais ser (pois o ser seria algo em constante mutação) e
nem haveria mais como dizer o ser (pois como dizer algo que nesse
instante é, mas já em seguida não é?).
Uma
conseqüência dramática da filosofia de Heráclito seria a
impossibilidade de linguagem: se tudo está em perpétuo fluxo, as
próprias coisas não possuem um ser que permaneça estável e do
qual eu possa dizer algo. Platão reconhece todos esses problemas.
Parmênides
usa artifícios poéticos e da lógica numa época em que esta ainda
não tinha a força argumentativa que terá a seguir.
Da
Natureza, de Parmênides.
Os
corcéis que me transportam, tanto quanto o ânimo me impele,
conduzem-me, depois de me terem dirigido pelo caminho famoso da
divindade, que leva o homem sabedor por todas as cidades.
Por aí me levaram, por aí mesmo me levaram os habilíssimos corcéis, puxando o carro, enquanto as jovens mostravam o caminho. O eixo silvava nos cubos como uma siringe, incandescendo (ao ser movido pelas duas rodas que vertiginosamente o impeliam de um lado e de outro), quando se apressaram as jovens filhas do sol a levar-me, abandonando a região da Noite para a luz, libertando com as mãos a cabeça dos véus que a escondiam. Aí está o portal que separa os caminhos da Noite e do Dia, encimado por um dintel e um umbral de pedra; o portal, etéreo, fechado por enormes batentes, dos quais a Justiça vingadora detém as chaves que os abrem e fecham. A ela se dirigiram as jovens, com doces palavras, persuadindo-a habilmente a erguer para elas por um instante a barra do portal. E ele abriu-se, revelando um abismo hiante, enquanto fazia girar, um atrás do outro, os estridentes gonzos de bronze, fixados com pregos e cavilhas. Por aí, através do portal, as jovens guiaram com celeridade o carro e os corcéis. E a deusa acolheu-me de bom grado, mão na mão
direita tomando, e com estas palavras se me dirigiu: “Ó jovem, acompanhante de aurigas imortais,
tu, que chegas até nós transportado pelos corcéis, Salve! Não foi um mau destino que te induziu a viajar por este caminho – tão fora do trilho dos homens – mas o Direito e a Justiça. Terás, pois, de tudo aprender: o coração inabalável da realidade fidedigna e as crenças dos mortais, em que não há confiança genuína. Mas também isso aprenderás: como as aparências têm de aparentemente ser, passando através de t
Por aí me levaram, por aí mesmo me levaram os habilíssimos corcéis, puxando o carro, enquanto as jovens mostravam o caminho. O eixo silvava nos cubos como uma siringe, incandescendo (ao ser movido pelas duas rodas que vertiginosamente o impeliam de um lado e de outro), quando se apressaram as jovens filhas do sol a levar-me, abandonando a região da Noite para a luz, libertando com as mãos a cabeça dos véus que a escondiam. Aí está o portal que separa os caminhos da Noite e do Dia, encimado por um dintel e um umbral de pedra; o portal, etéreo, fechado por enormes batentes, dos quais a Justiça vingadora detém as chaves que os abrem e fecham. A ela se dirigiram as jovens, com doces palavras, persuadindo-a habilmente a erguer para elas por um instante a barra do portal. E ele abriu-se, revelando um abismo hiante, enquanto fazia girar, um atrás do outro, os estridentes gonzos de bronze, fixados com pregos e cavilhas. Por aí, através do portal, as jovens guiaram com celeridade o carro e os corcéis. E a deusa acolheu-me de bom grado, mão na mão
direita tomando, e com estas palavras se me dirigiu: “Ó jovem, acompanhante de aurigas imortais,
tu, que chegas até nós transportado pelos corcéis, Salve! Não foi um mau destino que te induziu a viajar por este caminho – tão fora do trilho dos homens – mas o Direito e a Justiça. Terás, pois, de tudo aprender: o coração inabalável da realidade fidedigna e as crenças dos mortais, em que não há confiança genuína. Mas também isso aprenderás: como as aparências têm de aparentemente ser, passando através de t
Mas,
do ser imutável de Parmênides, Platão extrai outras conseqüências:
se há algo realmente imutável, é somente este que pode ser
conhecido. Para Platão, o conhecimento deve ser algo absolutamente
imutável, ou não será mais conhecimento e sim simples opinião.
Mas se o mundo sensível é o mundo da mutabilidade, onde nada
permanece sendo sempre o que é, não é possível mesmo haver
conhecimento deste mundo. Como resolver o impasse? Não haverá algo
que seja eterno, imutável, e que viabilize assim a possibilidade de
conhecimento? É dentro desse quadro problemático que Platão
elabora sua teoria das Formas ou Idéias, apresentada principalmente
em seus diálogos de maturidade: o Fédon,
a República,
o Banquete
e o Fedro. Procurará, por meio das Formas, dar conta da
possibilidade de existência de um certo ser imutável que permita um
conhecimento imutável.
Se
é preciso explicar
por que as coisas belas são belas, a participação nas Formas é a
resposta de Platão: a razão de algo ser belo é porque participa do
Belo em si. Há um Belo em si, uma Forma que não é visível pelos
sentidos, mas que se faz presente em cada uma das coisas belas. As
coisas belas participam da Forma do Belo. Esta é a verdadeira causa
da beleza sensível. Platão concede assim o máximo de ser, de
“essência” (ousía,
em grego) às coisas que são em si mesmas, àquilo que existe em si.
Não são coisas deste mundo visível, mas são seres aos quais é
possível aceder pela via do pensamento. Estes seres em si, as Formas
ou Idéias, são a causa da existência das coisas visíveis. Com
isso, satisfaz a dupla exigência socrática: a Forma é aquela tão
procurada unidade na multidão de exemplares e é também a causa de
existência dos múltiplos seres. As Formas (do Belo, do Bom, do
Grande, etc.) explicam por que os milhares de entes do mundo sensível
podem ser belos, bons, grandes, etc. A Forma em si é eterna, não
está sujeita ao perpétuo fluxo das coisas visíveis. O Belo é e
será sempre belo. E assim, Platão resolve o problema derivado da
filosofia de Heráclito: as coisas belas podem deixar de ser belas;
há até mesmo uma relatividade entre os conceitos de belo, já que
algo pode ser belo para mim e não para outro. Mas o Belo em si é
absoluto e eterno. As coisas belas participam dele e é só nessa
medida que são belas. Por isso, não pode haver ciência das coisas
sujeitas ao perpétuo fluxo; ora elas são, ora não são. Não há
como conhecer o ser próprio das coisas sensíveis. Só as Formas,
por serem imutáveis, podem ser conhecidas.
Como
conceber as Formas? Somente pela via do pensamento, já que os órgãos
dos sentidos são falíveis e, portanto, fonte de erro. É preciso,
diz Platão, afastar-se do corpo para que se possa contemplar a
imutabilidade das Formas. Nosso filósofo cria uma marcante dualidade
entre corpo e alma que vingará na filosofia ocidental e influenciará
fortemente o cristianismo. O corpo é inferior em ser à alma, que em
muitos momentos é identificada ao próprio homem. Quem somos? A
alma. E é pela alma que acedemos às realidades superiores. “Nesta
vida, o que faz com que cada um de nós seja o que é nada mais é do
que a alma, enquanto o corpo é para nós a imagem concomitante. Está
certo quem diz que o corpo sem vida não é senão a imagem do morto
e que o eu real de cada um de nós, que chamamos de alma imortal
parte para prestar contas perante outros deuses, uma perspectiva a
ser encarada com coragem pelos bons, mas com supremo terror pelos
maus”.
(Leis, XII, 959 b).
Como
somos a alma, e não o corpo, a morte é bem-vinda, já que
desvencilhados do corpo, estaremos em melhores condições de acesso
às Formas, ao que é em si. Estes são os ensinamentos de Sócrates
– agora um Sócrates absolutamente platônico, não mais histórico
–no Fédon.
Ali, em seu último dia de vida, na prisão, ensina os amigos
presentes a não temer a morte; aspirar à contemplação de
realidades mais elevadas é um desejo natural de quem tem um
temperamento filosófico. Tampouco devem prantear-lhe o corpo morto,
pois ele mesmo, Sócrates, não estará mais ali, mas em outro lugar.
Aristóteles
apontará
uma série de problemas e mesmo erros na doutrina platônica. Mas não
seríamos justos com Platão se não mencionássemos que o próprio
filósofo já havia detectado algumas aporias em sua filosofia, que
foram apresentadas no diálogo Parmênides.
Vamos, porém, saltar esse passo e observar o que Aristóteles tem
contra Platão. Para Aristóteles, uma boa explicação deve ser
simples, econômica. Ora, a teoria das Formas complica o conhecimento
das causas. Para explicar “estes seres aqui”, este mundo que nos
cerca, Platão teria recorrido a entidades supra-sensíveis. A
diferença básica entre os dois filósofos reside no ponto de vista
de cada um em relação à “essência”, à ousía.
Segundo Platão, as coisas deste mundo sensível têm pouco ser, são
inferiores na escala hierárquica do ser. Ora, para Aristóteles, as
coisas deste mundo aqui é que têm de fato ser. Ele inverte a ordem
proposta por Platão. Se antes as coisas sensíveis tinham ser porque
participavam do ser mais elevado das Formas, agora, com Aristóteles,
o ser mais elevado encontra-se nas próprias coisas.
Na
sua Metafísica,
I, 9, Aristóteles apresenta diversos argumentos contra a doutrina
das Formas. Diz ele: as Formas “chegam a eliminar justamente os
princípios cuja existência nos importa mais do que a própria
existência das Idéias”. O que importa, então, é “isto aqui”.
São “estas coisas daqui” que não podem ter seu ser suprimido,
como quer a teoria das Formas. Além disso, se as Formas são a
própria essência das coisas, como é possível que existam
separadas das coisas? Têm que estar nas próprias coisas. Com as
Formas platônicas, estaria eliminada toda possibilidade de
conhecimento das coisas sensíveis, pois o que se poderia conhecer
não seriam as coisas mesmas, mas as Formas separadas, transcendentes
à própria coisa. A doutrina de Platão teria ainda falhado ao não
dar conta dos diversos modos com que dizemos que uma coisa é. Por
isso, acabou concedendo mais ser a algo que teria menos ser. Por
exemplo, se dissermos “Maria é bela”, devemos notar que o ser
“Maria” é mais ser do que “bela”. É Maria que existe antes
de ser bela. Já o ser “bela” é um certo tipo de ser que deve
sua existência a Maria. Bela é um predicado de Maria, essa sim a
verdadeira ousía, a “substância”, para usar um termo consagrado
na terminologia aristotélica.
Os
tópicos, de Aristóteles.
Nosso
tratado se propõe encontrar um método de investigação graças ao
qual possamos raciocinar, partindo de opiniões geralmente aceitas,
sobre qualquer problema que nos seja proposto, e sejamos também
capazes, quando replicamos a um argumento, de evitar dizer alguma
coisa que nos cause embaraços. Em primeiro lugar, pois, devemos
explicar o que é o raciocínio e quais são as suas variedades, a
fim de entender o raciocínio dialético: pois tal é o objeto de
nossa pesquisa no tratado que temos diante de nós.
Ora,
o raciocínio é um argumento em que, estabelecidas certas coisas,
outras coisas diferentes se deduzem necessariamente das primeiras.
(a) O raciocínio é uma “demonstração” quando as premissas das
quais parte são verdadeiras e primeiras, ou quando o conhecimento
que delas temos provém originariamente de premissas primeiras e
verdadeiras: e, por outro lado (b), o raciocínio é “dialético”
quando parte de opiniões geralmente aceitas. São “verdadeiras”
e “primeiras” aquelas coisas nas quais acreditamos em virtude de
nenhuma outra coisa que não seja elas próprias; pois, no tocante
aos primeiros princípios da ciência, é descabido buscar mais além
o porquê e as razões dos mesmos; cada um dos primeiros princípios
deve impor a convicção da sua verdade em si mesmo e por si mesmo.
São, por outro lado, opiniões “geralmente aceitas” aquelas que
todo mundo admite, ou a maioria das pessoas, ou os filósofos em
outras palavras: todos, ou a maioria, ou os mais notáveis e
eminentes.
É
grande a lista de problemas observados por Aristóteles, mas a
ruptura entre os dois filósofos é de base. O ser que importa é o
ser das coisas sensíveis, e são estas coisas que, na hierarquia dos
seres, são mais elevadas. Mas, de alguma maneira, Aristóteles
concorda com Platão. O conhecimento deve ser de conteúdos
imutáveis. Como, então, conhecer o mundo sensível, que é o reino
do mutável? Será preciso dar alguma estabilidade para o mundo
sensível para que este possa, afinal, ser conhecido. Se for possível
encontrar um certo ser estável nas coisas, será possível haver
ciência dos corpos sensíveis.
O
conceito de epistéme,
ciência, é fundado por Platão. Contudo, do ponto de vista do
platonismo, se as coisas sensíveis estão em perpétuo estado de
fluxo, a ciência deve vir de algo que não seja o sensível. Por
isso, para fundamentar a possibilidade da epistéme,
Platão elabora o conceito de Forma, com o qual seria possível
apreender-se as coisas que são, de maneira imutável e necessária.
Há seres não sensíveis, acredita Platão, que podem ser objeto de
conhecimento num sentido rigoroso. Assim, responde à exigência
socrática acerca de “o que é”, acerca da universalidade.
Aristóteles
herda de Platão esse anseio por satisfazer a noção de epistéme,
que deve tratar sempre de conteúdos imutáveis de conhecimento.
Afasta-se, porém, do mestre ao rejeitar a existência de idéias ou
formas apartadas da matéria, existentes por si. Confere ousía
às próprias coisas, não às formas platônicas. É impossível
aceitar que as formas tenham existência separada da coisa, se elas
são a ousía das coisas, entende Aristóteles. Ousía aplica-se às
coisas sensíveis, ao domínio da natureza.
Mas
Aristóteles concorda com a existência dos universais – razão,
aliás, do elogio que faz a Sócrates, que teria se empenhado pela
busca desses universais. Esses, porém, não existem por si, de modo
imaterial, mas encontram-se nas coisas, e tomamos conhecimento deles
através do intelecto, por um processo de abstração. Desse modo,
Aristóteles considera que as coisas sensíveis são compostas de
matéria e forma. As formas aristotélicas, ainda que possam ser
abstraídas da matéria e pensadas à parte, só existem de fato
quando unidas à matéria. Matéria e forma estão indissoluvelmente
ligadas na constituição da substância e só podem ser separadas no
pensamento. Ao contrário de Platão, Aristóteles não considera
possível “reduzir todas as coisas às Formas e eliminar a matéria”
(Met. VII, 1036 b23), pois “tudo que seja algo determinado possui
matéria” (Met. VII, 11, 1037 a2). Entretanto, Aristóteles exclui
a matéria da definição de substância, pois a matéria é algo
indeterminado. Somente a forma pode ser definida e é por meio dela
que será possível a ciência. Assim, a ciência aristotélica é
dos objetos sensíveis, mas daquilo que neles é eterno, imutável: a
forma. A epistéme
deve capturar predicados universais, eternos e imutáveis.
Aristóteles
satisfaz a exigência socrática de buscar o universal nos vários
particulares – coisa que Platão,
de alguma maneira, também já havia conseguido.
de alguma maneira, também já havia conseguido.
Há,
pois, para Aristóteles, formas universais existentes nas coisas. Com
o pensamento fazemos generalizações e apreendemos algo universal
nos vários objetos corporais. As substâncias físicas são sempre
individuais, mas o pensamento é capaz, por um processo de abstração,
de apreender o universal nelas, apreender sua definição. Há várias
árvores, cada qual diferente das outras, mas a forma “árvore”
pode ser apreendida a partir de uma abstração e com isso pode ser
dada uma definição de árvore, pode-se estabelecer “o que é”
árvore. A forma “árvore” não é algo exterior, transcendente
às várias árvores da natureza, mas é imanente a cada árvore e
causa de ser de cada uma delas.
As
substâncias físicas são individuais, mas o pensamento é capaz,
por meio da abstração, de apreender o universal nelas. Por exemplo,
há várias árvores, cada qual diferente das outras, mas a forma
“árvore” pode ser apreendida a partir de uma abstração e com
isso pode ser dada uma definição de árvore, pode-se estabelecer “o
que é” uma árvore.
A
ciência deve, então, procurar reconhecer a “qüididade” (“o
que é”) e a definição de todos os seres, investigar o que faz
com que “um isto” seja isto e não aquilo. Deste modo,
finalmente, será possível responder à pergunta “o que é” em
termos particulares, mas, ao mesmo tempo, dando uma resposta
universal, da qual seja possível haver ciência. Assim, Aristóteles
satisfaz a exigência socrática de buscar o universal nos vários
particulares – coisa que Platão, de alguma maneira, também já
havia conseguido –, mas vai além e consegue fundamentar a ciência
das coisas sensíveis, a ciência da natureza.
Fonte:
Revista Filosofia, Maria Eduarda Martins de Oliveira.