Apolíneo e dionisíaco.
Em sua obra,
Nietzsche critica a tradição da filosofia ocidental a partir de Sócrates, a
quem acusa de ter negado a intuição criadora da filosofia anterior, pré-socrática.
Nessa análise,
o filósofo alemão, Nietzsche, estabelece a distinção entre dois princípios: o
apolíneo e o dionisíaco, a partir, respectivamente, dos deuses gregos Apolo
(deus da razão, da clareza, da ordem) e Dioniso (deus da aventura, da música,
da fantasia, da desordem).
Para
Nietzsche, esses dois princípios ou dimensões complementares da realidade – o apolíneo
e o dionisíaco – foram separados na Grécia socrática, que, optando pelo culto à
razão, secou a seiva criadora da filosofia, contida na dimensão dionisíaca.
A transvaloração dos valores.
O pensamento
de Nietzsche (1844-1900) orienta-se no sentido de recuperar as forças vitais, instintivas,
subjugadas pela razão durante séculos. Para tanto, critica Sócrates por ter
sido o primeiro a encaminhar a reflexão moral em direção ao controle racional
das paixões. Segundo Nietzsche, a tendência de desconfiança nos instintos
culmina com o cristianismo, que acelera a domesticação do ser humano. Em
diversas obras, como Sobre a genealogia
da moral, Para além do bem e do mal e
Crepúsculo dos ídolos, em estilo apaixonado e mordaz, Nietzsche faz a análise
histórica da moral e denuncia a incompatibilidade entre esta e a vida. Em
outras palavras, sob o domínio da moral, o ser humano se enfraquece,
tornando-se doentio e culpado.
Nietzsche
relembra a Grécia homérica, do tempo das epopéias e das tragédias, momento em
que predominavam o que para ele eram os verdadeiros valores aristocráticos,
quando a virtude reside na força e na potência, como atributo do guerreiro belo
e bom, amado dos deuses. Segundo Homero, entre inimigos não há bom ou mau,
porque ambos são valorosos.
Ao fazer a crítica
da moral tradicional, Nietzsche preconiza a “transvaloração de todos os valores”.
Diz Scarlett Marton:
A noção nietzschiana de valor opera uma subversão crítica:
ela põe de imediato a questão do valor dos valores e esta, ao ser coloca,
levanta a pergunta pela criação dos valores. Se até agora não se pôs em causa o
valor dos valores “bem” e “mal”, é porque se supôs que existiram desde sempre;
instituídos num além, encontravam legitimidade num mundo suprassensível. No
entanto, uma vez questionados, revelam-se apenas “humanos, demasiado humanos”;
em algum momento e em algum lugar, simplesmente foram criados”.
A genealogia da moral.
Se os valores
não existiram desde sempre, mas foram criados, Nietzsche propõe a genealogia como
método de investigação sobre a origem deles. Mostra assim as lacunas, o que não
foi dito ou foi recalcado, permitindo que alguns valores predominassem sobre
outros, tornando-se conceitos abstratos e inquestionáveis.
Pela
genealogia Nietzsche descobre que os instintos vitais foram submetidos e
degeneraram. Procura então ressaltar aqueles valores comprometidos com o “querer-viver”.
Denuncia a falsa moral, “decadente”, “de rebanho”, “de escravos”, cujos valores
seriam a bondade, a humildade, a piedade e o amor ao próximo. Distingue então a
moral de escravos e a moral de senhores.
a) A moral de escravos.
A moral de
escravos é herdeira do pensamento socrático-platônico – que provoca a ruptura
entre o trágico e o racional – e da tradição judaico-cristã, da qual deriva a moral
decadente, porque baseada na tentativa de subjugação dos instintos pela razão. O
homem-fera, animal de rapina, é transformado em animal doméstico ou cordeiro. A
moral plebéia estabelece um sistema de juízos que considera o bem e o mal
valores metafísicos transcendentes, isto é, independentes da situação concreta
(histórica) vivida.
A moral de
escravos nega os valores vitais e resulta na passividade, na procura da paz e
do repouso. O indivíduo se enfraquece e tem diminuída sua potência. A alegria é
transformada em ódio à vida, o ódio dos impotentes. A conduta humana, orientada
pelo ideal ascético, torna-se vítima do ressentimento e da má consciência – o sentimento
de culpa.
O
ressentimento nasce da fraqueza e é nocivo ao fraco. O indivíduo ressentido,
incapaz de esquecer, é como o dispéptico (que digere mal os alimentos – no
texto significa o ressentido “remói” o seu fracasso): fica “envenenado” pela
sua inveja e impotência de vingança. Ao contrário, o indivíduo nobre sabe “digerir”
suas experiências, e esquecer é uma das condições de manter-se saudável.
O sentimento
de culpa é o ressentimento voltado contra si mesmo, daí fazendo nascer a noção
de pecado, que inibe a ação. O ideal ascético nega a alegria da vida e coloca a
mortificação como meio para alcançar a outra vida num mundo superior, do além. As
práticas de altruísmo destroem o amor de si, domesticando os instintos e
produzindo gerações de fracos.
b) A moral de senhores.
A moral “de
senhores” é a moral positiva que visa à conservação da vida e dos seus
instintos fundamentais. É positiva porque baseada no sim à vida, e configura-se
sob o signo da plenitude, do acréscimo. Funda-se na capacidade de criação, de
invenção, cujo resultado é a alegria, consequência da afirmação da potência. O
indivíduo que consegue se superar é o que atingiu o além-do-homem.
O sujeito
além-do-homem é aquele que consegue reavaliar os valores, desprezar os que o
diminuem e criar outros que estejam comprometidos com a vida. Assim diz Roberto
Machado:
É por isso que contra o enfraquecimento do homem, contra a
transformação de fortes em fracos – tema constante da reflexão nietzschiana – é
necessário assumir uma perspectiva além de bem e mal, isto é, “além da moral”. Mas,
por outro lado, para além de bem e mal não significa para além de bom e mau. A
dimensão das forças, dos instintos, da vontade de potência permanece
fundamental. “O que é bom? Tudo que intensifica no homem o sentimento de potência,
a vontade de potência, a própria potência. O que é mau? Tudo que provém da
fraqueza”.
A vontade de potência.
Com o que foi
exposto, talvez se pense que Nietzsche chega ao extremo individualismo e
amoralismo. Muitos inclusive o chamaram de niilista, para acusá-lo de não
acreditar em nada e negar os valores, o que não faz jus ao seu pensamento. Ao
contrário, o filósofo atribuía o niilismo (significa nada) à moral decadente
dos valores tradicionais, que acomodaram o ser humano na mediocridade que tudo
uniformiza.
Destruir
esses valores é a condição para que possam nascer os valores novos do além–do-homem,
o que só pode ser alcançado pela “vontade de poder”. Também essa expressão leva
a confusões: não se trata de poder que domina os outros, mas das forças vitais
recuperadas pelo indivíduo dentro de si “num dionisíaco dizer-sim ao mundo” e
que se encontravam entorpecidas.
Nesse
sentido, o poder é virtude no sentido de força, vigor, capacidade. Portanto,
virtude é autorrealização. Se essa moral valoriza a individualidade, o faz
tanto para si como para os outros, pois cada um pode ser ele mesmo.
Niilismo.
Segundo a análise
de Nietzsche, no momento em que o cristianismo deixou de ser a “única verdade”
para se tornar uma das interpretações possíveis do mundo, toda a civilização
ocidental e seus valores absolutos também foram postos em xeque. Nesse
contexto, ocorre uma escalada do niilismo, que “deve ser entendido como um
sentimento opressivo e difuso, próprio às fases agudas de ocaso de uma cultura.
O niilismo seria a expressão afetiva e intelectual da decadência.
O niilismo
moderno apontado por Nietzsche assenta-se, em grande parte, na ideia da “morte
de Deus”. Em sua obra Gaia ciência, o
filósofo decreta que “Deus está morto”, mas esclarece que quem o matou fomos nós
mesmos, ou seja, trata-se de um acontecimento cultural. Desse modo, teríamos
destruído os fundamentos transcendentais (assentados em Deus) dos valores mais
caros de nossas vidas.
Assim, por
meio do niilismo:
[...] o homem moderno vivencia a perda de sentido dos
valores superiores de nossa cultura. Por essa ótica, niilismo seria o
sentimento coletivo de que nossos sistemas tradicionais de valoração, tanto no
plano do conhecimento quanto no ético-religioso, ou sociopolítico, ficaram sem
consistência e já não podem mais atuar como instâncias doadores de sentido e
fundamento para o conhecimento e a ação.
Apesar desse
niilismo em relação aos valores consagrados da civilização, Nietzsche defendeu
também valores afirmativos da vida, capazes de expandir as energias latentes em
nós.
“Ouse
conquistar a si mesmo” talvez seja a grande indicação nietzschiana àqueles que
buscam viver a “liberdade da razão”, sem conformismo, resignação ou submissão.
Fonte: Filosofando: introdução à Filosofia e Fundamentos de
Filosofia.