quarta-feira, 30 de maio de 2012

Nietzsche – Filosofando.


Apolíneo e dionisíaco.
Em sua obra, Nietzsche critica a tradição da filosofia ocidental a partir de Sócrates, a quem acusa de ter negado a intuição criadora da filosofia anterior, pré-socrática.
Nessa análise, o filósofo alemão, Nietzsche, estabelece a distinção entre dois princípios: o apolíneo e o dionisíaco, a partir, respectivamente, dos deuses gregos Apolo (deus da razão, da clareza, da ordem) e Dioniso (deus da aventura, da música, da fantasia, da desordem).
Para Nietzsche, esses dois princípios ou dimensões complementares da realidade – o apolíneo e o dionisíaco – foram separados na Grécia socrática, que, optando pelo culto à razão, secou a seiva criadora da filosofia, contida na dimensão dionisíaca.
A transvaloração dos valores.
O pensamento de Nietzsche (1844-1900) orienta-se no sentido de recuperar as forças vitais, instintivas, subjugadas pela razão durante séculos. Para tanto, critica Sócrates por ter sido o primeiro a encaminhar a reflexão moral em direção ao controle racional das paixões. Segundo Nietzsche, a tendência de desconfiança nos instintos culmina com o cristianismo, que acelera a domesticação do ser humano. Em diversas obras, como Sobre a genealogia da moral, Para além do bem e do mal e Crepúsculo dos ídolos, em estilo apaixonado e mordaz, Nietzsche faz a análise histórica da moral e denuncia a incompatibilidade entre esta e a vida. Em outras palavras, sob o domínio da moral, o ser humano se enfraquece, tornando-se doentio e culpado.
Nietzsche relembra a Grécia homérica, do tempo das epopéias e das tragédias, momento em que predominavam o que para ele eram os verdadeiros valores aristocráticos, quando a virtude reside na força e na potência, como atributo do guerreiro belo e bom, amado dos deuses. Segundo Homero, entre inimigos não há bom ou mau, porque ambos são valorosos.
Ao fazer a crítica da moral tradicional, Nietzsche preconiza a “transvaloração de todos os valores”. Diz Scarlett Marton:
A noção nietzschiana de valor opera uma subversão crítica: ela põe de imediato a questão do valor dos valores e esta, ao ser coloca, levanta a pergunta pela criação dos valores. Se até agora não se pôs em causa o valor dos valores “bem” e “mal”, é porque se supôs que existiram desde sempre; instituídos num além, encontravam legitimidade num mundo suprassensível. No entanto, uma vez questionados, revelam-se apenas “humanos, demasiado humanos”; em algum momento e em algum lugar, simplesmente foram criados”.
A genealogia da moral.
Se os valores não existiram desde sempre, mas foram criados, Nietzsche propõe a genealogia como método de investigação sobre a origem deles. Mostra assim as lacunas, o que não foi dito ou foi recalcado, permitindo que alguns valores predominassem sobre outros, tornando-se conceitos abstratos e inquestionáveis.
Pela genealogia Nietzsche descobre que os instintos vitais foram submetidos e degeneraram. Procura então ressaltar aqueles valores comprometidos com o “querer-viver”. Denuncia a falsa moral, “decadente”, “de rebanho”, “de escravos”, cujos valores seriam a bondade, a humildade, a piedade e o amor ao próximo. Distingue então a moral de escravos e a moral de senhores.
a) A moral de escravos.
A moral de escravos é herdeira do pensamento socrático-platônico – que provoca a ruptura entre o trágico e o racional – e da tradição judaico-cristã, da qual deriva a moral decadente, porque baseada na tentativa de subjugação dos instintos pela razão. O homem-fera, animal de rapina, é transformado em animal doméstico ou cordeiro. A moral plebéia estabelece um sistema de juízos que considera o bem e o mal valores metafísicos transcendentes, isto é, independentes da situação concreta (histórica) vivida.
A moral de escravos nega os valores vitais e resulta na passividade, na procura da paz e do repouso. O indivíduo se enfraquece e tem diminuída sua potência. A alegria é transformada em ódio à vida, o ódio dos impotentes. A conduta humana, orientada pelo ideal ascético, torna-se vítima do ressentimento e da má consciência – o sentimento de culpa.
O ressentimento nasce da fraqueza e é nocivo ao fraco. O indivíduo ressentido, incapaz de esquecer, é como o dispéptico (que digere mal os alimentos – no texto significa o ressentido “remói” o seu fracasso): fica “envenenado” pela sua inveja e impotência de vingança. Ao contrário, o indivíduo nobre sabe “digerir” suas experiências, e esquecer é uma das condições de manter-se saudável.
O sentimento de culpa é o ressentimento voltado contra si mesmo, daí fazendo nascer a noção de pecado, que inibe a ação. O ideal ascético nega a alegria da vida e coloca a mortificação como meio para alcançar a outra vida num mundo superior, do além. As práticas de altruísmo destroem o amor de si, domesticando os instintos e produzindo gerações de fracos.
b) A moral de senhores.
A moral “de senhores” é a moral positiva que visa à conservação da vida e dos seus instintos fundamentais. É positiva porque baseada no sim à vida, e configura-se sob o signo da plenitude, do acréscimo. Funda-se na capacidade de criação, de invenção, cujo resultado é a alegria, consequência da afirmação da potência. O indivíduo que consegue se superar é o que atingiu o além-do-homem.
O sujeito além-do-homem é aquele que consegue reavaliar os valores, desprezar os que o diminuem e criar outros que estejam comprometidos com a vida. Assim diz Roberto Machado:
É por isso que contra o enfraquecimento do homem, contra a transformação de fortes em fracos – tema constante da reflexão nietzschiana – é necessário assumir uma perspectiva além de bem e mal, isto é, “além da moral”. Mas, por outro lado, para além de bem e mal não significa para além de bom e mau. A dimensão das forças, dos instintos, da vontade de potência permanece fundamental. “O que é bom? Tudo que intensifica no homem o sentimento de potência, a vontade de potência, a própria potência. O que é mau? Tudo que provém da fraqueza”.
A vontade de potência.
Com o que foi exposto, talvez se pense que Nietzsche chega ao extremo individualismo e amoralismo. Muitos inclusive o chamaram de niilista, para acusá-lo de não acreditar em nada e negar os valores, o que não faz jus ao seu pensamento. Ao contrário, o filósofo atribuía o niilismo (significa nada) à moral decadente dos valores tradicionais, que acomodaram o ser humano na mediocridade que tudo uniformiza.
Destruir esses valores é a condição para que possam nascer os valores novos do além–do-homem, o que só pode ser alcançado pela “vontade de poder”. Também essa expressão leva a confusões: não se trata de poder que domina os outros, mas das forças vitais recuperadas pelo indivíduo dentro de si “num dionisíaco dizer-sim ao mundo” e que se encontravam entorpecidas.
Nesse sentido, o poder é virtude no sentido de força, vigor, capacidade. Portanto, virtude é autorrealização. Se essa moral valoriza a individualidade, o faz tanto para si como para os outros, pois cada um pode ser ele mesmo.
Niilismo.
Segundo a análise de Nietzsche, no momento em que o cristianismo deixou de ser a “única verdade” para se tornar uma das interpretações possíveis do mundo, toda a civilização ocidental e seus valores absolutos também foram postos em xeque. Nesse contexto, ocorre uma escalada do niilismo, que “deve ser entendido como um sentimento opressivo e difuso, próprio às fases agudas de ocaso de uma cultura. O niilismo seria a expressão afetiva e intelectual da decadência.
O niilismo moderno apontado por Nietzsche assenta-se, em grande parte, na ideia da “morte de Deus”. Em sua obra Gaia ciência, o filósofo decreta que “Deus está morto”, mas esclarece que quem o matou fomos nós mesmos, ou seja, trata-se de um acontecimento cultural. Desse modo, teríamos destruído os fundamentos transcendentais (assentados em Deus) dos valores mais caros de nossas vidas.
Assim, por meio do niilismo:
[...] o homem moderno vivencia a perda de sentido dos valores superiores de nossa cultura. Por essa ótica, niilismo seria o sentimento coletivo de que nossos sistemas tradicionais de valoração, tanto no plano do conhecimento quanto no ético-religioso, ou sociopolítico, ficaram sem consistência e já não podem mais atuar como instâncias doadores de sentido e fundamento para o conhecimento e a ação.
Apesar desse niilismo em relação aos valores consagrados da civilização, Nietzsche defendeu também valores afirmativos da vida, capazes de expandir as energias latentes em nós.
“Ouse conquistar a si mesmo” talvez seja a grande indicação nietzschiana àqueles que buscam viver a “liberdade da razão”, sem conformismo, resignação ou submissão.
Fonte: Filosofando: introdução à Filosofia e Fundamentos de Filosofia.