terça-feira, 29 de maio de 2012

Nietzsche para além do século XX.

Dono de uma obra contundente na forma e no conteúdo, o pensador alemão, embora bastante citado, contemporaneidade. Suas ideias, no entanto, seduzem ávidos por rebeldia ao “status quo”.
Friedrich Wilhelm Nietzsche foi praticamente ignorado pelo seu próprio século - o XIX -, consagrou-se durante o século XX e tudo indica que sua filosofia vai sobreviver ao século XXI. Nietzsche nasceu em 1844, faleceu em 1900, mas antecipou os modernistas do início do século passado e foi, portanto, vanguardista antes da vanguarda. Em tempos pós-modernos, manteve sua atualidade oportunamente no vácuo. Infelizmente não desfrutou, em nada, dessa consagração. Enlouqueceu por volta de 1889, depois de escrever sua autobiografia, Ecce Homo, aos 44 anos. Mas foi brilhante desde cedo. Assumiu a cátedra de filologia, na Universidade da Basileia (na Suíça), aos 24 anos, antes de se doutorar. Privou da companhia de algumas das maiores figuras de sua época, gente como o músico Richard Wagner e o historiador Jacob Burckhardt.
Filho de pastor Luterano, Nietzsche foi chamado "Friedrich" por causa de Frederico IV, um dos reis da Prússia, região onde passou seus primeiros anos. Revelou muito cedo um talento para as línguas e para a música, tendo sido convidado para estudar fora de sua cidade natal, Röcken. Provavelmente por influência paterna, dedicou-se à teologia durante um semestre, mas veio a perder a fé na religião e descobriu, aos 20 anos, a filosofia de Artur Schopenhauer, que se tornaria um de seus mentores. Teria, em seguida, um primeiro encontro com Wagner, por intermédio de seu orientador em filologia, mas daria seu primeiro grande salto, como pensador, com quase 30 anos - ao compor O Nascimento da Tragédia (1872), um de seus primeiros ensaios, cujo manuscrito seria dado de presente a então esposa de Wagner, Cosima. Por essa altura, Nietzsche já se apegara aos autores clássicos gregos, que serviriam de matériaprima recorrente para sua filosofia.
Viriam ainda, em forma de ensaio, Schopenhauer como Educador e Richard Wagner em Bayreuth, da mesma fase. Mas o primeiro livro efetivo de Nietzsche só veria a luz do dia em 1878 e seria - o, hoje, clássico - Humano, Demasiado Humano. Depois de se alistar voluntariamente no exército prussiano, ainda na juventude, e de participar da posterior guerra franco-prussiana, sua saúde acabaria debilitada, levando alguns biógrafos a concluir que havia adquirido, nesses conflitos armados, a sífilis, que supostamente o enlouqueceria dez anos mais tarde. O fato é que, por conta de mal-estares físicos, Nietzsche prolongaria, cada vez mais, suas férias e seus períodos de recesso, a ponto de não conseguir mais trabalhar na universidade, sendo obrigado a viver de uma pensão e a assumir a condição de "filósofo independente" - até pela indiferença com que seriam recebidos seus escritos e pela desconfiança com que seria visto por seus antigos colegas da filologia.
As obras
Se a década de 1878 a 1888 foi de crescente isolamento - incluindo o afastamento "ideológico" de Wagner depois da ópera Parsifal [1882] (“Inocente casto" é o significado original da palavra que dá título a essa ópera de Richard Wagner. A história da ópera versa sobre os mitos e lendas referentes, tendo estreado pela primeira vez à época das Cruzadas. Constituída em três atos, é considerada por muitos a síntese da alta produção wagneriana no que se refere ao espetáculo na sua totalidade - poesia, música, teatro e dança) e os recorrentes conflitos afetivos com sua única irmã, Elisabeth -, foi igualmente um período de enorme produtividade, tendo Nietzsche composto, em média, um livro por ano e deixado inacabados outros cinco, antes do fim. Alternando temporadas em cidades como Sils-Maria, na Suíça; Turim, na Itália; e Nice, na França, reagiria inicialmente ao pessimismo de Wagner e Schopenhauer e desovaria, em 1882, A Gaia Ciência - talvez um título em homenagem aos tempos em que pensou em largar a filologia e se tornar, por incrível que pareça, "um homem de ciência".
Depois de um verão com a musa intelectual Lou Andreas Salomé - um suposto pedido de casamento dele, uma suposta recusa dela e uma alardeada tentativa de suicídio -, nasceria o, também, clássico desde o título, Assim Falava Zaratustra (1883), cuja primeira versão foi composta em apenas dez dias. Na obra, Nietzsche faria uso de um antigo profeta persa, Zoroastro (O profeta persa Zoroastro foi o fundador do zoroastrismo, religião adotada pela dinastia que governou a Pérsia da primeira vez em que houve um período independente naquela monarquia. Atribui-se a Zoroastro, ou Zaratustra, pois teria sido ele o responsável pela conversão de pessoas do politeísmo ao monoteísmo), para exorcizar o "dualismo" que, segundo ele, condenara o homem ocidental a oscilar entre o "bem" e o "mal", quando, antes do cristianismo, o gregos falavam, apenas, em "bom" e "ruim". Nasceria, ali, o conhecidíssimo "super-homem" nietzschiano (De acordo com a concepção do filósofo alemão, superar os valores também era ultrapassar aquele que obedecia a esses valores. Pois somente com a superação desses valores construídos pelo ser humano, demasiadamente humano é que o homem será, enfim, livre - ou, nas palavras de Nietzsche, homem-potência, super-homem. Portanto, a moral do super-homem é aquela que nega a moral do escravo), junto ao desejo do filósofo de superar nossos eternos conflitos morais - algo que ficaria indubitavelmente expresso no título seguinte, Além do Bem e do Mal (1886).
Em Genealogia da Moral (1887), o próximo livro, Nietzsche reconstituiria o nascimento da moral que culminara na tradição judaico-cristã (Seja no cinema, seja na literatura, a tradição judaico-cristã pode ser observada nas mais variadas formas, mas sempre com o tom moral semelhante. Desse modo, não é pouco constatar que, em seus textos, Nietzsche observou de maneira aguda a sua proposição dominante), dominante em seu tempo, e que permanecia ainda entranhada, no seu ponto de vista, apesar da ascensão da ciência com Charles Darwin e outros autores. Em meio à descoberta de Dostoiévski - "o melhor psicólogo que já conheci" (afirmaria) - e Kierkegaard, comporia, em 1888, O Crepúsculo dos Ídolos e o, popularíssimo, Anticristo. Como se pressentisse a urgência de seus últimos momentos de lucidez, Nietzsche emendaria ainda Ecce Homo (a autobiografia) e proclamaria - depois de uma década de muito silêncio por parte do establishment filosófico e de raríssimos discípulos - que "alguns homens nascem póstumos", evocando, muito possivelmente, Schopenhauer, que se despediu da vida, e da incompreensão de seus contemporâneos, saudando os que então nasciam e, com os quais, sua filosofia enfim viveria.
Outra leitura, novas intenções
Depois de seu falecimento, em 1900, Nietzsche veio à tona novamente no século XX, mas por um motivo errado, que foi a apropriação de sua filosofia pelo nazismo (Interpretando à sua maneira os conceitos e postulados nietzschianos, os ideólogos do nazismo não hesitaram em se apropriar das ideias do filósofo para, a um só tempo, justificar e fundamentar os teoremas do estado totalitário de Hitler. [...]) - ideologia pela qual sua irmã nutria simpatias. Os nazistas fizeram sua própria interpretação do super-homem nietzschiano, adequando-o ao conceito de eugenia (superioridade de uma determinada "raça") e pensando justificar seu antissemitismo. Nietzsche, pessoalmente, nunca foi um antissemita (e brigaria com Wagner também por isso) - ainda que, como filósofo, tenha combatido a já referida moral judaico-cristã, sendo, nesse caso, uma objeção em termos de ideias, não esperando servir, obviamente, como salvo-conduto para o genocídio e para os campos de concentração.
Contudo, o apelo de obras como O Anticristo ecoaria pelo século XX afora, com o avanço crescente da ciência, as revoluções nos costumes (feminismo, aqui, incluso) e até os embates com o fundamentalismo religioso. Nietzsche, com sua formação oriunda do luteranismo, conhecia a doutrina tão profundamente que poderia criticá-la "de dentro pra fora", não como um ateu contemporâneo, mas como um "descrente fervoroso" (nas palavras bem achadas de um de seus comentadores). Inicialmente influenciado por Ludwig Feuerbach (O filósofo alemão Ludwig Feuerbach exerceu grande influência no pensamento de outro pensador alemão, Karl Marx. Na obra "Sobre Filosofia e Cristianismo", Feuerbach reflete acerca da alienação provocada pela religião, que, por sua vez, projeta os princípios do ideal humano em um ser supremo), Nietzsche combateria o cristianismo por, entre outras coisas, inventar "pecados capitais" que atentavam contra nossos instintos, transformando a religião cristã numa inimiga aguerrida do corpo humano.
Além do bem e do mal
O elitismo pregado por sua filosofia - além de cair bem, mais uma vez, para os seguidores de Hitler - ecoou mesmo depois da Segunda Guerra, por ser também um contraponto ao socialismo, aos ideais "de esquerda" e ao "revolucionário" desejo de igualdade, que Nietzsche considerava pernicioso. Buscaria, nos gregos e nos romanos, uma afirmação dos "melhores", já que, por o cristianismo nascer no seio de um povo originalmente escravo, o povo judeu, enaltecia, justamente, os perseguidos, os vencidos, os desfavorecidos... Uma religião - e, mais profundamente, uma moral - que tinha por base esses valores desembocaria, ainda que de maneira indireta, nos imperativos categóricos de Kant (com raiz nos dez mandamentos de Moisés) e no princípio de negatividade da filosofia de Schopenhauer.
Em resumo, o homem é, por natureza, "infeliz" ou "mau", tendo, como alternativa, a "santidade" ou, no máximo, a salvação post-mortem. Era o que afirmava a doutrina paulina da graça, que permeava ainda Kant, e da qual nem Schopenhauer conseguiria se livrar, mesmo com um insight tão transformador quanto o da "vontade" (que se tornaria, em Freud, o inconsciente, o id, nosso lado irracional e irredutível). Nietzsche, ao contrário, queria uma afirmação da vida, um retorno à natureza, um amor ao próprio destino (amor fati), que a tragédia grega clássica enaltecia e que havia ficado, injustificadamente, para trás com o racionalismo desde Sócrates, Platão e Aristóteles...
Nietzsche "rezaria" no altar de Dionísio e declararia, por conseguinte, que o "pensamento" deveria aprender a "dançar". Seu apoio irrestrito a Baco (a versão romana de Dionísio) e à livre interpretação de sua expressão "além do bem e do mal" cairia como uma luva sobre as ideologias libertárias dos 1900. "Se Deus está morto, então tudo é permitido" - a frase não é nem de Nietzsche e nem mesmo de Dostoiévski, a quem ficou associada, mas quem não a escutou, durante todo o século XX, ao menos uma vez na vida?
O perspectivismo de Nietzsche, outro contraponto aos "absolutos" de Kant, afirmando que as visões particulares de mundo permeavam tudo, inclusive o conhecimento objetivo, caiu, desta vez, como uma luva no colo de artistas e até de charlatães que, no embalo do pós-modernismo, propuseram um "relativismo" exacerbado que, infelizmente ainda hoje, tudo justifica. Sem absolutos, não há valores possíveis, artisticamente falando, portanto, não existem mais os ditames do "gosto" e, então, "tudo" passa a ser "arte", até penico de Duchamp. Levando esse raciocínio para outros domínios, poderíamos, inclusive, evocar o politicamente correto, que teve sua utilidade social, mas que travou a linguagem e, igualmente, o debate de ideias.
O "eterno retorno"
Nietzsche, como tantos outros filósofos mais conhecidos, é mais citado do que lido - e seus escritos, em caráter extraordinário, permitem isso. Dono de um estilo poderoso, o autor do Zaratustra não foi modesto e se comparou a Goethe e a Lutero (Embora polêmico, o filme Lutero (2003, Alemanha), dirigido por Eric Till e estrelado por Joseph Fiennes, mostra um pouco dos motivos da divisão da Igreja e da mudança provocada pelo monge que se rebelou contra os ditames da Igreja Católica ao fundar a primeira Igreja Protestante e, com isso, estabelecer uma cisão que permanece até a atualidade), dois mestres do idioma alemão. Fora a capacidade verbal, mais do que reconhecida (até por seus detratores), Nietzsche, devido à sua condição física (que não lhe permitia longos períodos de concentração), optou pela forma do aforismo e, levando adiante a tradição perpetrada por Schopenhauer, facilitou a difusão de seu pensamento em forma de frases - justo numa época em que os índices de leitura ou são baixos ou indicam forte dispersão.
Como que preso ao seu próprio mito de "eterno retorno", Nietzsche, para completar, fascina adolescentes e jovens rebeldes há gerações - pela fúria de seus argumentos, pela sua inclinação aparentemente subversiva e pelo combate solitário a "verdades estabelecidas". Vale lembrar, ainda, que Nietzsche inaugurou a prática do "ad hominem", ou seja, do ataque à pessoa do autor (e não necessariamente às suas ideias), o que o aproxima, evidentemente, de nossos polemistas (Quem lê os blogs e os virulentos debates que ocorrem na cena intelectual brasileira está, de certa forma, prestando alguma homenagem ao estilo nietzscheano, uma vez que um dos artifícios usados para desqualificar os argumentos do adversário é atacar sua conduta, personalidade e não necessariamente suas ideias. O jornalista Paulo Francis, um dos principais polemistas brasileiros das décadas de 1980 e 1990, escreveu sobre um determinado adversário: "Eu sou bom; ele, não"). Nietzsche é, logicamente, muito mais profundo do que sua imagem contemporânea, de "darling" da filosofia, preferido de quem "pensa ma non troppo", porém não consegue, por enquanto, escapar disso - até porque, dessa publicidade involuntária, sobrevive, igualmente, sua verdadeira filosofia.
Fonte: Revista Filosofia, Julio Daio Borges.