Dono
de uma obra contundente na forma e no conteúdo, o pensador alemão,
embora bastante citado, contemporaneidade. Suas ideias, no entanto,
seduzem ávidos por rebeldia ao “status quo”.
Friedrich
Wilhelm Nietzsche
foi praticamente ignorado pelo
seu próprio século - o XIX -, consagrou-se durante o século XX e
tudo indica que sua filosofia vai sobreviver ao século XXI.
Nietzsche nasceu em 1844, faleceu em 1900, mas antecipou os
modernistas do início do século passado e foi, portanto,
vanguardista antes da vanguarda. Em tempos pós-modernos, manteve sua
atualidade oportunamente no vácuo. Infelizmente não desfrutou, em
nada, dessa consagração. Enlouqueceu por volta de 1889, depois de
escrever sua autobiografia, Ecce
Homo, aos 44 anos. Mas foi
brilhante desde cedo. Assumiu a cátedra de filologia, na
Universidade da Basileia (na Suíça), aos 24 anos, antes de se
doutorar. Privou da companhia de algumas das maiores figuras de sua
época, gente como o músico Richard Wagner e o historiador Jacob
Burckhardt.
Filho
de pastor Luterano, Nietzsche foi chamado "Friedrich" por
causa de Frederico IV, um dos reis da Prússia, região onde passou
seus primeiros anos. Revelou muito cedo um talento para as línguas e
para a música, tendo sido convidado para estudar fora de sua cidade
natal, Röcken. Provavelmente por influência paterna, dedicou-se à
teologia durante um semestre, mas veio a perder a fé na religião e
descobriu, aos 20 anos, a filosofia de Artur Schopenhauer, que se
tornaria um de seus mentores. Teria, em seguida, um primeiro encontro
com Wagner, por intermédio de seu orientador em filologia, mas daria
seu primeiro grande salto, como pensador, com quase 30 anos - ao
compor O Nascimento da Tragédia (1872), um de seus primeiros
ensaios, cujo manuscrito seria dado de presente a então esposa de
Wagner, Cosima. Por essa altura, Nietzsche já se apegara aos autores
clássicos gregos, que serviriam de matériaprima recorrente para sua
filosofia.
Viriam
ainda, em forma de ensaio, Schopenhauer como Educador e Richard
Wagner em Bayreuth, da mesma fase. Mas o primeiro livro efetivo de
Nietzsche só veria a luz do dia em 1878 e seria - o, hoje, clássico
- Humano, Demasiado Humano. Depois de se alistar voluntariamente no
exército prussiano, ainda na juventude, e de participar da posterior
guerra franco-prussiana, sua saúde acabaria debilitada, levando
alguns biógrafos a concluir que havia adquirido, nesses conflitos
armados, a sífilis, que supostamente o enlouqueceria dez anos mais
tarde. O fato é que, por conta de mal-estares físicos, Nietzsche
prolongaria, cada vez mais, suas férias e seus períodos de recesso,
a ponto de não conseguir mais trabalhar na universidade, sendo
obrigado a viver de uma pensão e a assumir a condição de "filósofo
independente" - até pela indiferença com que seriam recebidos
seus escritos e pela desconfiança
com que seria visto por seus antigos colegas da filologia.
As
obras
Se a década de 1878 a 1888 foi de crescente
isolamento - incluindo o afastamento "ideológico" de
Wagner depois da ópera Parsifal
[1882]
(“Inocente casto" é o significado original da palavra que dá
título a essa ópera de Richard Wagner. A história da ópera versa
sobre os mitos e lendas referentes, tendo estreado pela primeira vez
à época das Cruzadas. Constituída em três atos, é considerada
por muitos a síntese da alta produção wagneriana no que se refere
ao espetáculo na sua totalidade - poesia, música, teatro e dança)
e os recorrentes conflitos afetivos com sua única irmã, Elisabeth
-, foi igualmente um período de enorme produtividade, tendo
Nietzsche composto, em média, um livro por ano e deixado inacabados
outros cinco, antes do fim. Alternando temporadas em cidades como
Sils-Maria, na Suíça; Turim, na Itália; e Nice, na França,
reagiria inicialmente ao pessimismo de Wagner e Schopenhauer e
desovaria, em 1882, A Gaia Ciência - talvez um título em homenagem
aos tempos em que pensou em largar a filologia e se tornar, por
incrível que pareça, "um homem de ciência".
Depois
de um verão com a musa intelectual Lou Andreas Salomé - um suposto
pedido de casamento dele, uma suposta recusa dela e uma alardeada
tentativa de suicídio -, nasceria o, também, clássico desde o
título, Assim Falava Zaratustra (1883), cuja primeira versão foi
composta em apenas dez dias. Na obra, Nietzsche faria uso de um
antigo profeta persa, Zoroastro (O profeta persa Zoroastro foi o
fundador do zoroastrismo, religião adotada pela dinastia que
governou a Pérsia da primeira vez em que houve um período
independente naquela monarquia. Atribui-se a Zoroastro, ou
Zaratustra, pois teria sido ele o responsável pela conversão de
pessoas do politeísmo ao monoteísmo), para exorcizar o "dualismo"
que, segundo ele, condenara o homem ocidental a oscilar entre o "bem"
e o "mal", quando, antes do cristianismo, o gregos falavam,
apenas, em "bom" e "ruim". Nasceria, ali, o
conhecidíssimo "super-homem" nietzschiano (De acordo com a
concepção do filósofo alemão, superar os valores também era
ultrapassar aquele que obedecia a esses valores. Pois somente com a
superação desses valores construídos pelo ser humano,
demasiadamente humano é que o homem será, enfim, livre - ou, nas
palavras de Nietzsche, homem-potência, super-homem. Portanto, a
moral do super-homem é aquela que nega a moral do escravo), junto ao
desejo do filósofo de superar nossos eternos conflitos morais - algo
que ficaria indubitavelmente expresso no título seguinte, Além do
Bem e do Mal (1886).
Em
Genealogia da Moral (1887), o próximo livro, Nietzsche
reconstituiria o nascimento da moral que culminara na tradição
judaico-cristã (Seja no cinema, seja na literatura, a tradição
judaico-cristã pode ser observada nas mais variadas formas, mas
sempre com o tom moral semelhante. Desse modo, não é pouco
constatar que, em seus textos, Nietzsche observou de maneira aguda a
sua proposição dominante), dominante em seu tempo, e que permanecia
ainda entranhada, no seu ponto de vista, apesar da ascensão da
ciência com Charles Darwin e outros autores. Em meio à descoberta
de Dostoiévski - "o melhor psicólogo que já conheci"
(afirmaria) - e Kierkegaard, comporia, em 1888, O Crepúsculo dos
Ídolos e o, popularíssimo, Anticristo. Como se pressentisse a
urgência de seus últimos momentos de lucidez, Nietzsche emendaria
ainda Ecce Homo (a autobiografia) e proclamaria - depois de uma
década de muito silêncio por parte do establishment filosófico e
de raríssimos discípulos - que "alguns homens nascem
póstumos", evocando, muito possivelmente, Schopenhauer, que se
despediu da vida, e da incompreensão de seus contemporâneos,
saudando os que então nasciam e, com os quais, sua filosofia enfim
viveria.
Outra
leitura, novas intenções
Depois
de seu falecimento, em 1900, Nietzsche veio à tona novamente no
século XX, mas por um motivo errado, que foi a apropriação de sua
filosofia pelo nazismo (Interpretando à sua maneira os conceitos e
postulados nietzschianos, os ideólogos do nazismo não hesitaram em
se apropriar das ideias do filósofo para, a um só tempo, justificar
e fundamentar os teoremas do estado totalitário de Hitler. [...]) -
ideologia pela qual sua irmã nutria simpatias. Os nazistas fizeram
sua própria interpretação do super-homem nietzschiano, adequando-o
ao conceito de eugenia (superioridade de uma determinada "raça")
e pensando justificar seu antissemitismo. Nietzsche, pessoalmente,
nunca foi um antissemita (e brigaria com Wagner também por isso) -
ainda que, como filósofo, tenha combatido a já referida moral
judaico-cristã, sendo, nesse caso, uma objeção em termos de
ideias, não esperando servir, obviamente, como salvo-conduto para o
genocídio e para os campos de concentração.
Contudo,
o apelo de obras como O Anticristo ecoaria pelo século XX afora, com
o avanço crescente da ciência, as revoluções nos costumes
(feminismo, aqui, incluso) e até os embates com o fundamentalismo
religioso. Nietzsche, com sua formação oriunda do luteranismo,
conhecia a doutrina tão profundamente que poderia criticá-la "de
dentro pra fora", não como um ateu contemporâneo, mas como um
"descrente fervoroso" (nas palavras bem achadas de um de
seus comentadores). Inicialmente influenciado por Ludwig Feuerbach (O
filósofo alemão Ludwig Feuerbach exerceu grande influência no
pensamento de outro pensador alemão, Karl Marx. Na obra "Sobre
Filosofia e Cristianismo", Feuerbach reflete acerca da alienação
provocada pela religião, que, por sua vez, projeta os princípios do
ideal humano em um ser supremo), Nietzsche combateria o cristianismo
por, entre outras coisas, inventar "pecados capitais" que
atentavam contra nossos instintos, transformando a religião cristã
numa inimiga aguerrida
do corpo humano.
Além
do bem e do mal
O elitismo pregado por sua filosofia - além de cair bem, mais uma
vez, para os seguidores de Hitler - ecoou mesmo depois da Segunda
Guerra, por ser também um contraponto ao socialismo, aos ideais "de
esquerda" e ao "revolucionário" desejo de igualdade,
que Nietzsche considerava pernicioso. Buscaria, nos gregos e nos
romanos, uma afirmação dos "melhores", já que, por o
cristianismo nascer no seio de um povo originalmente escravo, o povo
judeu, enaltecia, justamente, os perseguidos, os vencidos, os
desfavorecidos... Uma religião - e, mais profundamente, uma moral -
que tinha por base esses valores desembocaria, ainda que de maneira
indireta, nos imperativos categóricos de Kant (com raiz nos dez
mandamentos de Moisés) e no princípio de negatividade da filosofia
de Schopenhauer.
Em
resumo, o homem é, por natureza, "infeliz" ou "mau",
tendo, como alternativa, a "santidade" ou, no máximo, a
salvação post-mortem. Era o que afirmava a doutrina paulina da
graça, que permeava ainda Kant, e da qual nem Schopenhauer
conseguiria se livrar, mesmo com um insight tão transformador quanto
o da "vontade" (que se tornaria, em Freud, o inconsciente,
o id, nosso lado irracional e irredutível). Nietzsche, ao contrário,
queria uma afirmação da vida, um retorno à natureza, um amor ao
próprio destino (amor fati), que a tragédia grega clássica
enaltecia e que havia ficado, injustificadamente, para trás com o
racionalismo desde Sócrates, Platão e Aristóteles...
Nietzsche
"rezaria" no altar de Dionísio e declararia, por
conseguinte, que o "pensamento" deveria aprender a
"dançar". Seu apoio irrestrito a Baco (a versão romana de
Dionísio) e à livre interpretação de sua expressão "além
do bem e do mal" cairia como uma luva sobre as ideologias
libertárias dos 1900. "Se Deus está morto, então tudo é
permitido" - a frase não é nem de Nietzsche e nem mesmo de
Dostoiévski, a quem ficou associada, mas quem não a escutou,
durante todo o século XX, ao menos uma vez na vida?
O
perspectivismo de Nietzsche, outro contraponto aos "absolutos"
de Kant, afirmando que as visões particulares de mundo permeavam
tudo, inclusive o conhecimento objetivo, caiu, desta vez, como uma
luva no colo de artistas e até de charlatães que, no embalo do
pós-modernismo, propuseram um "relativismo" exacerbado
que, infelizmente ainda hoje, tudo justifica. Sem absolutos, não há
valores possíveis, artisticamente falando, portanto, não existem
mais os ditames do "gosto" e, então, "tudo"
passa a ser "arte", até penico de Duchamp. Levando esse
raciocínio para outros domínios, poderíamos, inclusive, evocar o
politicamente correto, que teve sua utilidade social,
mas que travou a linguagem e, igualmente, o debate de ideias.
O
"eterno retorno"
Nietzsche, como tantos outros filósofos mais
conhecidos, é mais citado do que lido - e seus escritos, em caráter
extraordinário, permitem isso. Dono de um estilo poderoso, o autor
do Zaratustra
não foi modesto e se comparou a Goethe e a Lutero
(Embora polêmico, o filme Lutero
(2003, Alemanha), dirigido por Eric Till e estrelado por Joseph
Fiennes, mostra um pouco dos motivos da divisão da Igreja e da
mudança provocada pelo monge que se rebelou contra os ditames da
Igreja Católica ao fundar a primeira Igreja Protestante e, com isso,
estabelecer uma cisão que permanece até a atualidade), dois mestres
do idioma alemão. Fora a capacidade verbal, mais do que reconhecida
(até por seus detratores), Nietzsche, devido à sua condição
física (que não lhe permitia longos períodos de concentração),
optou pela forma do aforismo e, levando adiante a tradição
perpetrada por Schopenhauer, facilitou a difusão de seu pensamento
em forma de frases - justo numa época em que os índices de leitura
ou são baixos ou indicam forte dispersão.
Como
que preso ao seu próprio mito de "eterno retorno",
Nietzsche, para completar, fascina adolescentes e jovens rebeldes há
gerações - pela fúria de seus argumentos, pela sua inclinação
aparentemente subversiva e pelo combate solitário a "verdades
estabelecidas". Vale lembrar, ainda, que Nietzsche inaugurou a
prática do "ad hominem", ou seja, do ataque à pessoa do
autor (e não necessariamente às suas ideias), o que o aproxima,
evidentemente, de nossos polemistas (Quem lê os blogs e os
virulentos debates que ocorrem na cena intelectual brasileira está,
de certa forma, prestando alguma homenagem ao estilo nietzscheano,
uma vez que um dos artifícios usados para desqualificar os
argumentos do adversário é atacar sua conduta, personalidade e não
necessariamente suas ideias. O jornalista Paulo Francis, um dos
principais polemistas brasileiros das décadas de 1980 e 1990,
escreveu sobre um determinado adversário: "Eu sou bom; ele,
não"). Nietzsche é, logicamente, muito mais profundo do que
sua imagem contemporânea, de "darling" da filosofia,
preferido de quem "pensa ma non troppo", porém não
consegue, por enquanto,
escapar disso - até porque, dessa publicidade involuntária,
sobrevive, igualmente, sua verdadeira filosofia.
Fonte:
Revista Filosofia, Julio Daio Borges.