Chamam-se
pré-socráticos os filósofos gregos anteriores a Sócrates e a
denominação, embora o número de pensadores não seja tão pequeno
e sua vivência tenham distâncias de muitos anos, tem um valor
cronológico inicial de determinar o período representado (séc. 7 a
5 a.C.). Porém, há um conteúdo mais profundo traduzido pela
formação de temas de conteúdo filosófico, os quais posteriormente
são aprimorados e sistematizados. A síntese de passagem se dá com
Sócrates, que por sua vez acrescenta perguntas às preocupações
dos amantes da sabedoria, estabelecendo outro momento do pensamento
ocidental.
Por
partirem da concepção do mundo como ordem natural, a primeira
indagação dos filósofos pré-socráticos é sobre a natureza, seu
conceito e sua determinação. Conforme denomina Aristóteles em sua
Metafísica,
os présocráticos são conhecidos como physikoi,
ou seja, físicos, pesquisadores da physis
(natureza). A expressão é correta, mas presta-se a equívocos se
mal observada. Obviamente, a “física” dos pré-socráticos não
é a física que estudamos hoje nem tem relação direta com a
acepção moderna da palavra, de cunho científico, que é um dos
ramos das ciências exatas e estuda relações entre sistemas
materiais em si e entre estes e campos de força, buscando reconhecer
propriedades e estabelecer leis de comportamento para tais sistemas.
Nada disso.
Para
o grego antigo, a
physis
não se confunde com um objeto que pode ser apropriado pelas ciências
da natureza (que se diferem das ciências do espírito) ou com algo
que pode ser submetido à dominação humana, posto a serviço desta
ou canalizado em termos de técnica, enfim, em algo que se transforma
em expressão da vontade humana de poder. A física dos
pré-socráticos não é uma disciplina que se contrapõe a outra
porque natureza não pode ser reduzida a uma ideia de objeto,
principalmente em termos científicos.
Physis,
traduzida pela palavra natureza por falta de outra mais completa, é
um conceito fundamental do pensamento pré-socrático, contendo a
noção do saber de um ente em sua mais ampla e profunda totalidade.
Em sua expressão original, physis
designa o processo de surgir e desenvolver- se num constante e
permanente movimento vital, confundindo-se com a própria força
motriz de tal movimento. É considerada assim a expressão daquilo
que é primário, fundamental e persistente, opondo-se ao que é
secundário, derivado e transitório. O sentido da palavra é assim
muito mais profundo e, como diz Martin Heidegger
,
ao ser traduzida pelos latinos por “natureza”, distorceu-se seu
conteúdo originário e destruiu-se sua força evocativa.
Physis
significa
vigor dominante (vigente) daquilo que brota e permanece, num
constante brotar e permanecer e pode ser experienciado em toda parte,
mas não se confunde com os fenômenos que hoje chamamos de naturais
e reunimos na expressão natureza. Physis não deve ser tomada como
um fenômeno qualquer, mas como o ser em virtude do qual o ente se
torna o que é e permanece sendo, enquanto durar seu vir-a-ser
(devir), fazendo-se observável como tal.
Os
gregos não conheceram a physis por meio dos fenômenos naturais
somente, mas por uma experiência fundamental advinda e facultada
pela poesia e pelo pensamento, a desvelar o ser, denominado então de
physis.
A partir daí, puderam ter olhos para a natureza em sentido estrito e
para a percepção de sua essência, a qual também denominaram
physis.
Seu melhor significado é de vigor anímico, força primordial,
princípio vigente que compreende a totalidade de tudo o que é,
podendo, portanto, ser apreendida em tudo que acontece. Pensar o todo
do real a partir da physis é pensar a partir daquilo que determina a
realidade e a totalidade do ente, enfim, é o pensar sobre o ser,
logo, ao pensar a physis pensa-se o ser, portanto pensar e ser é o
mesmo, conforme Parmênides (Fragmento III).
Oposição
à physis
A
questão referente à restrição do termo tem sua importância aqui
porque é ela que irá originar a famosa oposição vindoura no
período dos sofistas entre physis
e nomos.
Essa oposição, inclusive, pode fornecer uma trilha de estudo para a
história da filosofia. Mas ela se inicia de um modo diferente. Seu
nascimento se dá com a oposição ao termo tekhné,
que não significa especificamente arte ou técnica, mas antes um
modo de saber, ou seja, um conteúdo de procedimentos que permite a
realização de uma atividade, um saber produtivo no sentido
etimológico da palavra produção (pro-ducere
= conduzir para diante, colocar algo diante de), compreendido este
como aquilo que conduz algo a ser criado, logo outro tipo de vigor,
outro tipo de força vigente que faz algo ser criado, por isso tekhné
pode significar arte ou técnica, como princípio de criação
artístico ou técnico.
Assim,
physis
e tekhné
são dois meios distintos de força vigente de princípio criativo,
de forma de devir, porém o primeiro é de ordem primordial,
originária, enquanto o último possui conotação derivada,
transitória, posto se esgotar quando a coisa já se faz terminada. A
primeira traduz uma força contínua de evolução, enquanto a última
apresenta um sentido mais próximo à permanência.
Por
tekhné
compreende-se
desde o conjunto de procedimentos para fabricação de uma cadeira
até o conteúdo de práticas políticas para se governar uma cidade,
passando ainda pelo conjunto de processos ou habilidades para se
pintar ou desenhar um quadro ou uma obra de arte. Para os antigos,
uma técnica não era boa ou ruim em si mesma, mas a finalidade a que
se prestava era dada pela tradição ou pelo hábito, enfim, por um
conjunto de regras costumeiras, conhecidas por nomos,
que estabeleciam o bom ou o mau de uma técnica. Pode-se perceber,
então, a formação de duas ordens: a ordem da natureza,
compreendida pelo kosmos, e a ordem das práticas ou técnicas, dadas
pelos nomoi (cujo conjunto no interior do grupo sociopolítico forma
o ethos).
Essas
duas dimensões entre as ordens é que possibilitam o posterior
conflito que, principalmente com os sofistas (bem adiante), passa a
ser expresso pela oposição entre physis
e nomos.
Ressalta-se: a ideia de natureza ou de algo natural era entre os
pré-socráticos algo muito mais amplo do que o conceito por nós
hoje trabalhado, consubstanciando-se na investigação sobre o ser
dos entes, ou seja, uma investigação sobre o ser como tal ou como
este aparece (to
physei onta),
a busca do ser o qual se manifesta sempre como ente.
Os
pré-socráticos da Escola de Mileto.
Os
primeiros pré-socráticos surgem ao fim do séc. 7 a.C., por
questões sociais, culturais e econômicas, encontram-se eles na
costa oriental do mar Egeu, na Ásia Menor, numa cidade chamada
Mileto. Por isso a filosofia ali nascente é designada como escola de
Mileto, escola milesiana ou escola jônica e suas figuras
exponenciais são Tales, Anaximandro e Anaxímenes, cuja atividade
ocupa todo o séc. 6 a.C.
Tales
de Mileto:
Esse
pensador, cujos dados são muito escassos, como todos os
pré-socráticos, viveu entre o último terço do séc. 7 e meados do
séc. 6 a.C. Segundo relatos, era um homem de posses, vivia bem e
dedicava-se a inúmeras atividades, podendo ser visto como um
empresário e político da época. Foi considerado um dos sete sábios
da Grécia e era sem dúvida uma das grandes figuras de seu tempo.
Não se recebeu nenhum de seus escritos e sua principal fonte são as
citações de Aristóteles, segundo o qual Tales seria o fundador da
filosofia. Sua importância está fundamentalmente em estabelecer a
ideia de princípio (arkhé),
embora sem uso do termo, o elemento primordial do qual todas as
coisas derivam cuja unidade permite falar-se em totalidade. Há um
todo do qual a unidade é fruto. O princípio básico de Tales é a
água, na verdade um estado de umidade, a qualidade do que é úmido,
fluido, que tem característica de plasma, algo líquido que a tudo
dá forma.
Anaximandro:
Foi
muito provavelmente discípulo de Tales, tendo vivido nos meados do
séc. 6 a.C. Foi matemático, político e autor de um trabalho
denominado Sobre
a natureza (peri physeos)
que não se preservou no tempo. Sabe-se, contudo, que foi ele quem
introduziu o termo princípio (arkhé)
no vocabulário filosófico para designar o primum,
a realidade primeira e última das coisas, em final instância, para
designar a ideia de
physis.
Diferentemente de Tales, porém, o elemento primordial das coisas não
seria a água, mas algo conhecido como apeíron,
vale dizer o infinito ou o ilimitado, na verdade uma combinação dos
dois termos juntos, porque estes isoladamente não fornecem o
conceito completo.
Apeíron
significa aquilo que é privado de peras (a-peiron), i.e., sem
limites ou determinações externas ou de contorno e também sem
limites internos ou de conteúdo. É aquilo que é indeterminado
quantitativamente ao mesmo tempo que é indeterminado
qualitativamente. Enfim, é a totalidade em sua dimensão mais ampla
possível de ser imaginada, provocando por isso mesmo o mais profundo
assombro ou espanto. Desta realidade última nascem todas as coisas e
para ela todas retornam ao fim. Esse é o conceito mais próprio de
princípio, pois aquilo que faz outras coisas se iniciarem não pode
ter começo nem fim, não tendo por isso limites espaciais ou
temporais (não tem começo ou fim no espaço nem no tempo).
Dessa
forma é que o princípio rege todas as coisas, porquanto estas
nascem dele e se encerram nele. O apeíron é o princípio e fim de
todas as coisas, possuindo característica notadamente teleológica
por reger a compreensão e o sentido de existência de todas elas.
Logo, sendo regente, eterno e imutável, o princípio é divino (to
theion, theos).
Anaximandro introduz, assim, diferentemente do pensamento mítico, as
características da divindade como eterna, imortal e infinita,
unificando-as num só elemento: o apeíron.
Não há nenhuma característica espiritual por força de embasamento
pela
physis,
mas não se pode falar em ateísmo (doutrinas ateias ou
materialistas) nos pré-socráticos. A pergunta que resta é: como as
coisas derivam do infinito? Isso se dá por um processo de movimento
ou de destacamento provocado por oposição de “contrários”. O
“contrário” nasce de uma contraposição ao outro; há uma cisão
em opostos da unidade do princípio, rompendo um equilíbrio,
provocando uma “injustiça” (perda do justo no sentido do que bem
medido, proporcionado, encaixado) que somente pode ser restabelecida
pelo tempo.
O
desequilíbrio torna-se um processo de imposição recíproca dos
contrários, um tentando superar o outro. O tempo é o juiz desse
processo, pois é ele que estabelece o limite de sua contradição,
pondo termo ao predomínio de um sobre o outro. O tempo atua como
catalisador da culpa provocada pela oposição, produzindo a expiação
desta e retomando a condição de justo.
Anaxímenes:
Foi
discípulo de Anaximandro, tendo vivido na segunda metade do séc. 6
a.C. Assume como princípio de tudo o ar, embora este tenha uma
conotação de grandeza infinita, mas não indeterminada e,
continuando a ideia de movimento, agrega os conceitos de condensação
e rarefação.
Adotando
o ar como elemento primordial, o filósofo explica o movimento de
criação das coisas, pois sopro (pneuma)
para os antigos traduzia o conceito de alma como algo muito leve,
delicado, gracioso, etéreo, sem peso e o filósofo associa a ideia
de sopro, alma ou espírito à de ar. Esse elemento primordial tinha
seus movimentos de união (condensação) e desunião (rarefação)
produzindo em diversos níveis as realidades das coisas. O ar
condensado forma o vento, as nuvens e, em grau mais denso, a água;
num sentido contrário, quando rarefeito, forma o fogo. O movimento
assim descrito associa a causa dinâmica das coisas a uma noção
mais harmonizada com conceito de princípio, estabelecendo
racionalmente uma diferença qualitativa das coisas numa relação
quantitativa do elemento primordial. Todas as coisas diferem-se entre
si em qualidade por força de um movimento quantitativo do princípio
de tudo.
Fonte:
Revista Filosofia, João
Ibaixe Jr.