quarta-feira, 23 de maio de 2012

Os pré-socráticos e a phýsis.

Chamam-se pré-socráticos os filósofos gregos anteriores a Sócrates e a denominação, embora o número de pensadores não seja tão pequeno e sua vivência tenham distâncias de muitos anos, tem um valor cronológico inicial de determinar o período representado (séc. 7 a 5 a.C.). Porém, há um conteúdo mais profundo traduzido pela formação de temas de conteúdo filosófico, os quais posteriormente são aprimorados e sistematizados. A síntese de passagem se dá com Sócrates, que por sua vez acrescenta perguntas às preocupações dos amantes da sabedoria, estabelecendo outro momento do pensamento ocidental.
Por partirem da concepção do mundo como ordem natural, a primeira indagação dos filósofos pré-socráticos é sobre a natureza, seu conceito e sua determinação. Conforme denomina Aristóteles em sua Metafísica, os présocráticos são conhecidos como physikoi, ou seja, físicos, pesquisadores da physis (natureza). A expressão é correta, mas presta-se a equívocos se mal observada. Obviamente, a “física” dos pré-socráticos não é a física que estudamos hoje nem tem relação direta com a acepção moderna da palavra, de cunho científico, que é um dos ramos das ciências exatas e estuda relações entre sistemas materiais em si e entre estes e campos de força, buscando reconhecer propriedades e estabelecer leis de comportamento para tais sistemas. Nada disso.
Para o grego antigo, a physis não se confunde com um objeto que pode ser apropriado pelas ciências da natureza (que se diferem das ciências do espírito) ou com algo que pode ser submetido à dominação humana, posto a serviço desta ou canalizado em termos de técnica, enfim, em algo que se transforma em expressão da vontade humana de poder. A física dos pré-socráticos não é uma disciplina que se contrapõe a outra porque natureza não pode ser reduzida a uma ideia de objeto, principalmente em termos científicos.
Physis, traduzida pela palavra natureza por falta de outra mais completa, é um conceito fundamental do pensamento pré-socrático, contendo a noção do saber de um ente em sua mais ampla e profunda totalidade. Em sua expressão original, physis designa o processo de surgir e desenvolver- se num constante e permanente movimento vital, confundindo-se com a própria força motriz de tal movimento. É considerada assim a expressão daquilo que é primário, fundamental e persistente, opondo-se ao que é secundário, derivado e transitório. O sentido da palavra é assim muito mais profundo e, como diz Martin Heidegger , ao ser traduzida pelos latinos por “natureza”, distorceu-se seu conteúdo originário e destruiu-se sua força evocativa.
Physis significa vigor dominante (vigente) daquilo que brota e permanece, num constante brotar e permanecer e pode ser experienciado em toda parte, mas não se confunde com os fenômenos que hoje chamamos de naturais e reunimos na expressão natureza. Physis não deve ser tomada como um fenômeno qualquer, mas como o ser em virtude do qual o ente se torna o que é e permanece sendo, enquanto durar seu vir-a-ser (devir), fazendo-se observável como tal.
Os gregos não conheceram a physis por meio dos fenômenos naturais somente, mas por uma experiência fundamental advinda e facultada pela poesia e pelo pensamento, a desvelar o ser, denominado então de physis. A partir daí, puderam ter olhos para a natureza em sentido estrito e para a percepção de sua essência, a qual também denominaram physis. Seu melhor significado é de vigor anímico, força primordial, princípio vigente que compreende a totalidade de tudo o que é, podendo, portanto, ser apreendida em tudo que acontece. Pensar o todo do real a partir da physis é pensar a partir daquilo que determina a realidade e a totalidade do ente, enfim, é o pensar sobre o ser, logo, ao pensar a physis pensa-se o ser, portanto pensar e ser é o mesmo, conforme Parmênides (Fragmento III).
Oposição à physis
A questão referente à restrição do termo tem sua importância aqui porque é ela que irá originar a famosa oposição vindoura no período dos sofistas entre physis e nomos. Essa oposição, inclusive, pode fornecer uma trilha de estudo para a história da filosofia. Mas ela se inicia de um modo diferente. Seu nascimento se dá com a oposição ao termo tekhné, que não significa especificamente arte ou técnica, mas antes um modo de saber, ou seja, um conteúdo de procedimentos que permite a realização de uma atividade, um saber produtivo no sentido etimológico da palavra produção (pro-ducere = conduzir para diante, colocar algo diante de), compreendido este como aquilo que conduz algo a ser criado, logo outro tipo de vigor, outro tipo de força vigente que faz algo ser criado, por isso tekhné pode significar arte ou técnica, como princípio de criação artístico ou técnico.
Assim, physis e tekhné são dois meios distintos de força vigente de princípio criativo, de forma de devir, porém o primeiro é de ordem primordial, originária, enquanto o último possui conotação derivada, transitória, posto se esgotar quando a coisa já se faz terminada. A primeira traduz uma força contínua de evolução, enquanto a última apresenta um sentido mais próximo à permanência.
Por tekhné compreende-se desde o conjunto de procedimentos para fabricação de uma cadeira até o conteúdo de práticas políticas para se governar uma cidade, passando ainda pelo conjunto de processos ou habilidades para se pintar ou desenhar um quadro ou uma obra de arte. Para os antigos, uma técnica não era boa ou ruim em si mesma, mas a finalidade a que se prestava era dada pela tradição ou pelo hábito, enfim, por um conjunto de regras costumeiras, conhecidas por nomos, que estabeleciam o bom ou o mau de uma técnica. Pode-se perceber, então, a formação de duas ordens: a ordem da natureza, compreendida pelo kosmos, e a ordem das práticas ou técnicas, dadas pelos nomoi (cujo conjunto no interior do grupo sociopolítico forma o ethos).
Essas duas dimensões entre as ordens é que possibilitam o posterior conflito que, principalmente com os sofistas (bem adiante), passa a ser expresso pela oposição entre physis e nomos. Ressalta-se: a ideia de natureza ou de algo natural era entre os pré-socráticos algo muito mais amplo do que o conceito por nós hoje trabalhado, consubstanciando-se na investigação sobre o ser dos entes, ou seja, uma investigação sobre o ser como tal ou como este aparece (to physei onta), a busca do ser o qual se manifesta sempre como ente.
Os pré-socráticos da Escola de Mileto.
Os primeiros pré-socráticos surgem ao fim do séc. 7 a.C., por questões sociais, culturais e econômicas, encontram-se eles na costa oriental do mar Egeu, na Ásia Menor, numa cidade chamada Mileto. Por isso a filosofia ali nascente é designada como escola de Mileto, escola milesiana ou escola jônica e suas figuras exponenciais são Tales, Anaximandro e Anaxímenes, cuja atividade ocupa todo o séc. 6 a.C.
 Tales de Mileto:
Esse pensador, cujos dados são muito escassos, como todos os pré-socráticos, viveu entre o último terço do séc. 7 e meados do séc. 6 a.C. Segundo relatos, era um homem de posses, vivia bem e dedicava-se a inúmeras atividades, podendo ser visto como um empresário e político da época. Foi considerado um dos sete sábios da Grécia e era sem dúvida uma das grandes figuras de seu tempo. Não se recebeu nenhum de seus escritos e sua principal fonte são as citações de Aristóteles, segundo o qual Tales seria o fundador da filosofia. Sua importância está fundamentalmente em estabelecer a ideia de princípio (arkhé), embora sem uso do termo, o elemento primordial do qual todas as coisas derivam cuja unidade permite falar-se em totalidade. Há um todo do qual a unidade é fruto. O princípio básico de Tales é a água, na verdade um estado de umidade, a qualidade do que é úmido, fluido, que tem característica de plasma, algo líquido que a tudo dá forma.
Anaximandro:
Foi muito provavelmente discípulo de Tales, tendo vivido nos meados do séc. 6 a.C. Foi matemático, político e autor de um trabalho denominado Sobre a natureza (peri physeos) que não se preservou no tempo. Sabe-se, contudo, que foi ele quem introduziu o termo princípio (arkhé) no vocabulário filosófico para designar o primum, a realidade primeira e última das coisas, em final instância, para designar a ideia de physis. Diferentemente de Tales, porém, o elemento primordial das coisas não seria a água, mas algo conhecido como apeíron, vale dizer o infinito ou o ilimitado, na verdade uma combinação dos dois termos juntos, porque estes isoladamente não fornecem o conceito completo.
Apeíron significa aquilo que é privado de peras (a-peiron), i.e., sem limites ou determinações externas ou de contorno e também sem limites internos ou de conteúdo. É aquilo que é indeterminado quantitativamente ao mesmo tempo que é indeterminado qualitativamente. Enfim, é a totalidade em sua dimensão mais ampla possível de ser imaginada, provocando por isso mesmo o mais profundo assombro ou espanto. Desta realidade última nascem todas as coisas e para ela todas retornam ao fim. Esse é o conceito mais próprio de princípio, pois aquilo que faz outras coisas se iniciarem não pode ter começo nem fim, não tendo por isso limites espaciais ou temporais (não tem começo ou fim no espaço nem no tempo).
Dessa forma é que o princípio rege todas as coisas, porquanto estas nascem dele e se encerram nele. O apeíron é o princípio e fim de todas as coisas, possuindo característica notadamente teleológica por reger a compreensão e o sentido de existência de todas elas. Logo, sendo regente, eterno e imutável, o princípio é divino (to theion, theos). Anaximandro introduz, assim, diferentemente do pensamento mítico, as características da divindade como eterna, imortal e infinita, unificando-as num só elemento: o apeíron. Não há nenhuma característica espiritual por força de embasamento pela physis, mas não se pode falar em ateísmo (doutrinas ateias ou materialistas) nos pré-socráticos. A pergunta que resta é: como as coisas derivam do infinito? Isso se dá por um processo de movimento ou de destacamento provocado por oposição de “contrários”. O “contrário” nasce de uma contraposição ao outro; há uma cisão em opostos da unidade do princípio, rompendo um equilíbrio, provocando uma “injustiça” (perda do justo no sentido do que bem medido, proporcionado, encaixado) que somente pode ser restabelecida pelo tempo.
O desequilíbrio torna-se um processo de imposição recíproca dos contrários, um tentando superar o outro. O tempo é o juiz desse processo, pois é ele que estabelece o limite de sua contradição, pondo termo ao predomínio de um sobre o outro. O tempo atua como catalisador da culpa provocada pela oposição, produzindo a expiação desta e retomando a condição de justo.
Anaxímenes:
Foi discípulo de Anaximandro, tendo vivido na segunda metade do séc. 6 a.C. Assume como princípio de tudo o ar, embora este tenha uma conotação de grandeza infinita, mas não indeterminada e, continuando a ideia de movimento, agrega os conceitos de condensação e rarefação.
Adotando o ar como elemento primordial, o filósofo explica o movimento de criação das coisas, pois sopro (pneuma) para os antigos traduzia o conceito de alma como algo muito leve, delicado, gracioso, etéreo, sem peso e o filósofo associa a ideia de sopro, alma ou espírito à de ar. Esse elemento primordial tinha seus movimentos de união (condensação) e desunião (rarefação) produzindo em diversos níveis as realidades das coisas. O ar condensado forma o vento, as nuvens e, em grau mais denso, a água; num sentido contrário, quando rarefeito, forma o fogo. O movimento assim descrito associa a causa dinâmica das coisas a uma noção mais harmonizada com conceito de princípio, estabelecendo racionalmente uma diferença qualitativa das coisas numa relação quantitativa do elemento primordial. Todas as coisas diferem-se entre si em qualidade por força de um movimento quantitativo do princípio de tudo.
Fonte: Revista Filosofia, João Ibaixe Jr.