A aprovação pelo parlamento holandês
da eutanásia está provocando acaloradas discussões também entre nós. A questão
é polêmica e permite múltiplas posições. Queremos apresentar uma das posições,
compartilhada por significativo grupo de teólogos cristãos. Embora não gozem de
unanimidade, representam uma contribuição a ser considerada.
Há de se partir do fato de que a
morte pertence à vida. E a vida pertence à eternidade que é a realização plena
das virtualidades da vida. Como somos responsáveis pela nossa vida assim
devemos ser responsáveis também pela nossa morte.
Temos direito a uma vida digna e
também o direito de uma morte digna. Esse direito muitas vezes nos é negado
pelo fato de sermos obrigados a ficar atrelados a aparelhos e a medicamentos
que nos prolongam a vida no sentido meramente vegetativo (chamamos a isso
distanásia), o que é insuficiente para a integralidade da vida minimamente
humana.
A vida como auto-organização da
matéria comparece como o fruto mais elevado da evolução e, numa perspectiva
espiritual, representa o maior dom de Deus. Mesmo assim, como seres éticos,
somos responsáveis pelo começo da vida e também responsáveis pelo fim da vida.
Outrora, as Igrejas relutavam em
acolher o planejamento familiar, pois imaginavam, erroneamente, que seria
interferir no desígnio de Deus de introduzir vidas no mundo. Hoje, as mesmas
igrejas ensinam o planejamento familiar responsável. Ensinam, outrossim, que
todo ser humano tem o direito de morrer humanamente. Cabe ao próprio ser
humano, mortalmente doente, decidir de forma qualificada sobre o prolongamento
ou não de seu estado irreversível. Na sua impossibilidade, ocupam o seu lugar
os familiares e os médicos.
Isso implica que o médico fará tudo
para curar o paciente e proporcionar os remédios para aliviar-lhe a dor. Não
significa que deva recorrer a tratamentos extraordinários para prolongar a vida
ou postergar a morte, sobretudo, em situações limite. Uma terapia só tem
sentido quando se ordena à reabilitação e à restituição das funções essenciais
e vitais e não simplesmente garantir uma vida vegetativa. Importa “deixar
morrer”, o que não é a mesma coisa que “fazer morrer”.
O cuidado pelo doente não deve ser
apenas coisa dos médicos e enfermeiros, mas também dos familiares, dos
conselheiros espirituais (sacerdotes, pastores, rabinos, pais ou mães de santo
etc) e dos amigos próximos.
Devem ser respeitadas as convicções
e as crenças religiosas do paciente, especialmente ao sentido que dá à vida e à
morte. Caso contrário, lhe fazemos violência, sempre, entretanto, no
pressuposto de que a vida é o bem supremo em nome do qual nenhuma visão,
ideologia ou convicção religiosa contrária, possa prevalecer.
Para o cristianismo - a religião da
maioria do povo brasileiro - a morte não é um fim, mas um peregrinar para a
Fonte originária de toda vida. Não é um diluir-se na poeira cósmica mas um cair
nos braços do Pai e Mãe eternos que têm infinita saudade de seus filhos e
filhas peregrinantes. Estamos sempre nascendo e com a morte acabamos de nascer.
Destarte, a morte perde seu caráter de brutal interrupção do ciclo da vida para
se transfigurar numa passagem bem aventurada para a plenitude da vida.
São Francisco, o primeiro depois do
Único, morreu cantando, agradecendo a vida por tudo o que ela lhe proporcionara.
Morrer é então fechar os olhos para ver melhor, como disse José Marti, o maior
dos cubanos. Ver o sentido do universo e o nosso lugar no conjunto de todos os
seres, carregados pelo Mistério no qual mergulharemos.
Tais visões ajudam a humanizar a
morte e a desdramatizar os casos terminais. Pois não vivemos para morrer, como
dizem os existencialistas, mas morremos para ressuscitar, para viver mais e
melhor, como crêem os cristãos.
Fonte: www.leonardoboff.com