Pense
nas seguintes situações. Algumas pessoas arriscam suas vidas numa escalada,
tendo em vista desfrutar de uma bela paisagem ou pelo prazer de vencer
desafios. Outras serão capazes de atos de solidariedade envolvendo grande
sacrifício, como o de dividir seu alimento com outra pessoa, mesmo tendo muito
pouco. Isso nos leva a crer que, em se tratando do ser humano, a mera
sobrevivência e bem estar do corpo parecem não ter a última palavra. Não raramente
falamos que “a mente deve controlar o corpo” ou que “o ser humano deve ser
definido pelas suas crenças, desejos e sentimentos e não por suas
características físicas, como cor de pele, gênero e assim por diante”.
Afirmamos também que é “a posse da razão que nos distingue dos outros animais”
e que “não basta ter um corpo saudável, é preciso cultivar também a mente”.
Quando
queremos nos referir a uma dimensão do ser humano diferente da dimensão física
ou corpórea, usamos os termos “alma”, “mente” ou “razão”, tanto em nossa
linguagem cotidiana quanto na filosófica. O uso que se faz desses termos é
bastante variado: 1- o termo “alma” está associado principalmente à ideia de
vida. Desde os primórdios do pensamento humano, nos mitos, a alma é vista como
o que vivifica a matéria, e a morte é pensada como separação entre a alma e o
corpo. O termo psyche, em grego, que traduzimos por alma, significa
“sopro” e também “princípio vital”. A alma, assim concebida, não é
necessariamente imaterial: enquanto “sopro”, a alma pode ser imaginada como uma
espécie de corpo mais tênue. A ideia de que a alma persiste depois da morte do
corpo é encontrada em muitas religiões; 2- já o termo mente usualmente se
refere à dimensão da interioridade, aos pensamentos, ideias, opiniões e emoções
(medo, alegria) das pessoas; 3- por fim, o termo “razão”, na maior parte das
vezes significa o que, no ser humano, se opõe às paixões ou aos desejos, que
seriam mais imediatamente ligados às necessidades do corpo. Essas distinções,
porém, não são rígidas.
Da
parte de pessoas curiosas, é comum se perguntarem se a alma existe ou se o que
existe é simplesmente o corpo, sobre as características da alma ou da mente
(material ou imaterial?) e sobre suas relações com o corpo (que parte do ser
humano o comanda, a razão ou os instintos?). Questões como estas são feitas
especialmente pelos filósofos: alguns desenvolverão argumentos para provar que
existe, para além da matéria, a alma imaterial e imortal – defendendo,
portanto, uma posição dualista. Outros tentarão provar que o que
chamamos de alma, ou de mente, é, na verdade, uma função ou aspecto do corpo –
defendendo uma posição monista.
Apresentaremos
aqui, a respeito do corpo e da alma, as ideias de alguns importantes
representantes dos diferentes momentos históricos da filosofia.
1- A
FILOSOFIA ANTIGA: Os materialistas e Platão
Alguns
dos primeiros filósofos gregos, denominados pré-socráticos, construíram teorias
que explicavam as várias dimensões da realidade a partir de um princípio
material, como a água ou o ar, ou os quatro elementos (água, ar, terra e fogo).
Segundo Leucipo e Demócrito (sec. IV a. C.), a realidade se compõe de átomos,
minúsculas partículas indivisíveis, e do vazio entre eles. O vazio possibilita
o movimento dos átomos e tudo o que existe origina-se a partir da união e da
separação de átomos semelhantes entre si. As almas, como tudo o mais, também
têm origem na conjunção de átomos, só que mais leves, esféricos, móveis e
penetrantes. Sensações (paladar, audição, tato) e pensamento resultam do
movimento dos átomos no corpo humano. Os atomistas antigos são, portanto,
representantes de uma posição monista, pois, segundo eles, o
psíquico e o físico são manifestações diferentes de uma mesma realidade
material.
Platão
(427-347a.C) colocou-se a si uma tarefa: demonstrar, contra aqueles que
pensavam serem todas as coisas explicáveis pelos princípios materiais, que a
alma tem uma natureza não material e diferente da realidade sensível e
corpórea. Esse é um dos pontos mais importantes de sua filosofia. Por um lado,
a alma é, por sua natureza, superior ao corpo e deve comandá-lo: “Por exemplo,
quando o corpo tem sede, a alma não o impede de beber? E quando tem fome não o
impede de comer?” – pergunta ele, em seu diálogo Fédon. Por outro,
ele retoma da tradição órfica a ideia de que “o corpo é o túmulo da alma”, ou
seja, pensa que, quando a alma está em contato com o corpo e com as coisas
sensíveis, ela se desvia de seu objetivo, que é o conhecimento da verdade.
Assim, “filosofar é aprender a morrer”, o que quer dizer que a filosofia é um
modo de, pelo exercício do pensar, separar a alma do corpo, ou seja, de
desinteressar-se das coisas sensíveis e aproximar-se do mundo inteligível e
divino.
Cabe
lembrar que a doutrina da alma de Platão é muito complexa, e apresenta-se com
variações em suas diferentes obras. Aqui vamos explorar apenas alguns
argumentos de Platão a favor da imaterialidade da alma, numa famosa passagem do
diálogo Fédon, que exerceu grande influência no pensamento
posterior ao filósofo.
CONTEXTO
DO ARGUMENTO: Para entender o que se segue, é preciso ter em mente que os
participantes do diálogo, Sócrates e Cebes, já se colocaram de acordo quanto ao
seguinte: 1- o homem é composto de corpo e alma – mas não se sabe se a alma é
material ou imaterial; 2- o que é composto, como o corpo, se decompõe e morre;
já o que é simples e imaterial não se decompõe; 3- existem dois tipos de
coisas: as coisas sensíveis, que são visíveis e compostas (e, portanto,
sujeitos a decomposição), e as coisas invisíveis, perfeitas e imutáveis (as
ideias, Sócrates refere-se à ideia do Bem e de Belo – que são imateriais e
eternas). Conhecemos os corpos mediante as sensações de nosso próprio corpo. E
as coisas perfeitas, não sensíveis, das quais temos as ideias, como as conhecemos?
Porque são invisíveis, não podem ser conhecidas pelo corpo, logo, é a outra
parte do homem, a alma, que as conhece. O texto abaixo pretende provar como a
alma, que conhece o imortal, é também imortal, pois se assemelha a ele.
Sócrates:
Admitamos, portanto, que há duas espécies de seres: uma visível, outra
invisível.
Cebes:
Admitamos.
Sócrates:
Admitamos, ainda, que os invisíveis conservam sempre sua identidade, enquanto
que com os visíveis tal não se dá.
Cebes:
Admitamos também isso.
Sócrates:
Bem, prossigamos. Não é verdade que nós somos constituídos de duas coisas, uma
das quais é o corpo e a outra a alma?
Cebes:
Nada mais verdadeiro.
Sócrates:
Com qual destas duas espécies de seres podemos dizer, pois, que o corpo tem
mais semelhança e parentesco?
Cebes:
Eis uma coisa que é clara para toda gente: com a espécie visível.
Sócrates:
Por outro lado, o que é a alma? Coisa visível ou invisível?
Cebes:
Não é visível, ao menos aos homens, Sócrates! (...)
Sócrates:
Logo, a alma tem com a espécie invisível mais semelhança do que com o corpo,
mas este tem, com a espécie visível, mais semelhança do que a alma?
Cebes:
Necessariamente, Sócrates.
Sócrates:
Não dizíamos, ainda, há pouco, que a alma utiliza às vezes o corpo para
observar alguma coisa por intermédio da vista, ou do ouvido, ou de outro
sentido? Assim, o corpo é um instrumento, quando é por intermédio de algum
sentido que se faz o exame da coisa. Então a alma, dizíamos, é arrastada pelo
corpo na direção daquilo que jamais guarda a mesma forma, ela mesma se torna
inconstante, agitada, e titubeia como se estivesse embriagada: isso, por estar
em contato com coisas deste gênero.
Cebes:
Realmente.
Sócrates:
Mas, quando, pelo contrário, ela examina as coisas por si mesma, quando se
lança na direção do que é puro, do que sempre existe, do que nunca morre, do
que se comporta sempre do mesmo modo (...) – ela cessa de vaguear e, na
vizinhança dos seres de que falamos, passa ela também a conservar sua
identidade e seu mesmo modo de ser: é que está em contato com coisas daquele
gênero. Ora, este estado da alma, não é o que chamamos pensamento?
Cebes:
Muito bem dito, Sócrates, e muito verdadeiro. (...)
Sócrates:
Tomemos agora outro ponto de vista. Quanto estão juntos a alma e o corpo, a
este a natureza consigna servidão e obediência, e à primeira comando e
senhorio. Sob este novo aspecto, qual dos dois, no teu modo de pensar, se
assemelha ao que é divino, e qual o que se assemelha ao que é mortal? (...)
Cebes:
Nada mais claro, Sócrates. A alma, com o divino, o corpo, com o mortal.
Sócrates:
Bem, examina agora, Cebes, se tudo o que foi dito nos conduz efetivamente às
seguintes conclusões: a alma se assemelha ao que é divino, imortal, dotado da
capacidade de pensar, ao que tem uma forma única, ao que é indissolúvel e possui
sempre do mesmo modo a identidade: o corpo, pelo contrário, equipara-se ao que
é humano, mortal, multiforme, desprovido de inteligência, ao que está sujeito a
decompor-se, ao que jamais permanece idêntico. Contra isto, meu caro Cebes,
estaremos em condições de opor uma outra concepção, e provar que as coisas não
se passam assim?
Cebes:
Não, Sócrates.
Sócrates:
Que se segue daí? Uma vez que as coisas são assim, não é acaso uma pronta
dissolução o que convém ao corpo, e à alma, ao contrário, uma absoluta
indissolubilidade, ou pelo menos qualquer estado que disso se aproxime?
(PLATÃO.
Fédon 79a-80b. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz
Costa. Coleção os Pensadores).
Atividade
de compreensão
Após
ler o texto acima, responda as seguintes questões:
1-
Quais são as características dos seres visíveis? E dos invisíveis?
2-
Explique em que situação a alma pode corromper sua verdadeira natureza.
3-
Qual é o sentido, no texto acima, do termo “pensamento”?
4-
Dê uma razão pela qual, segundo Sócrates, a alma se assemelha ao divino.
PARA
PENSAR:
O
argumento de Platão (apresentado no diálogo por Sócrates) pode ser assim
reconstruído:
A
alma é semelhante às coisas invisíveis.
As
coisas invisíveis são indissolúveis.
Logo
a alma é indissolúvel.
Muitos
intérpretes do diálogo Fédon observaram que os argumentos a
favor da imortalidade da alma não são capazes de demonstrar a tese de forma
conclusiva. Você considera a argumentação de Platão satisfatória? Justifique
sua resposta.
A
ideia de que a alma tem uma natureza imaterial e eterna encontrou opositores.
Um dos grandes argumentos contra ela é que, de fato, não temos como separar a
alma do corpo: a experiência nos mostra que nossos sentimentos e pensamentos
são influenciados pelo que se passa em nosso corpo, de tal maneira que não há
uma instância independente do corpo e capaz de controlá-lo. Daí alguns
filósofos concluíram que a natureza da alma é corporal, sendo ela perecível com
o corpo. Michel de Montaigne (1533-1592), assim comenta as ideias de Epicuro (sec.
III a.C.) e de Lucrécio (sec I a.C.):
Percebiam
[a alma] capaz de paixões diversas e agitada por vários movimentos penosos,
(...) ofuscada e confusa pela força do vinho, deslocada de sua postura pelos
vapores de uma febre intensa; adormecida pela aplicação de certos medicamentos
e despertada por outros: “A natureza da alma é necessariamente material, pois
armas materiais e choques causam-lhe sofrimentos” (Lucrécio). Víamo-la
paralisar e subverter todas as faculdades devido à simples mordida de um cão
doente [hidrofóbico], e não existir nenhuma razão tão firme, nenhuma
competência, nenhuma virtude, nenhuma resolução filosófica, nenhuma prontidão
de forças que a pudessem isentar de ficar exposta a esses acidentes; a saliva
de um mastim [cão] doente, vertida sobre a mão de Sócrates, abalar toda sua
sabedoria e todas suas tão organizadas ideias (...).
MONTAIGNE.
Ensaios (Trad. Rosemary Costhek Abílio) Livro II, cap. 12., p.325-326.
Leia
mais: Uma importante defesa do aspecto mortal e material da alma está no breve
texto de Epicuro, Carta sobre a Felicidade (a Meneceu).
A
discussão filosófica, porém, não termina aqui. Algumas objeções serão
levantadas contra o monismo materialista, como: 1- os materialistas (ou
monistas) confiam em nossa experiência para tirar conclusões sobre a alma. Ora,
não é evidente que se possa fazê-lo: o fato do pensamento se obscurecer com o
vinho ou com a doença não nos autoriza a concluir que a alma é material ou
corporal; os defensores do dualismo como Platão e Descartes distinguem a
situação da alma unida ao corpo e separada dele; 2- se a alma é material,
porque apenas alguns seres materiais são dotados de pensamento? ; 3-na medida
em que em que algo em nós parece opor-se às necessidades do corpo, não teríamos
que pensar que somos seres duais? e 4- se todo pensamento faz parte do mundo
material, como poderá o pensamento pretender conhecer o mundo material?
Na
modernidade, novos argumentos a favor do dualismo serão apresentados, sendo
Descartes seu principal defensor. O monismo materialista surgirá com força no
século XVIII, na filosofia da ilustração.
2- A
FILOSOFIA MODERNA: Descartes e La Mettrie
Platão
constrói sua argumentação em torno da natureza imaterial e imortal da alma com
um objetivo principal: vencer a morte, compreendendo que a alma é imortal. Sua
concepção de alma está marcada pela tradição religiosa órfica grega, envolvendo
ideias como a de purificação, ascese e da inferioridade do corpo em relação à
alma. O propósito de Descartes (1596-1650) é mais preciso e limitado: ele quer
construir um conhecimento verdadeiro, no qual só encontre lugar o que for
indubitável. “Eu sempre tive um imenso desejo de aprender a distinguir o
verdadeiro do falso, para ver claro nas minhas ações e caminhar com segurança
nesta vida” – escreve ele no Discurso do Método. Ora, ao buscar um
conhecimento verdadeiro e seguro, nosso filósofo descobre que, ao contrário do
que pensa a maior parte das pessoas, é mais fácil conhecer a alma do
que o corpo. Ele vai demonstrar que estamos certos da existência de nossa
alma, de nosso pensamento, antes de estarmos certos da existência dos corpos.
Vejamos,
passo a passo, a construção da argumentação de Descartes, que se encontra tanto
no Discurso do Método quando nasMeditações Metafísicas.
Para acompanhar a exposição, o aluno deve consultar o extrato do texto das Meditações que
se encontra no Roteiro de Atividade II – Corpo e Psiquismo: o dualismo.
1-
Para descobrir o que pode ser considerado absolutamente certo e indubitável,
Descartes se propõe a levar a dúvida ao seu extremo, examinando todas as suas
opiniões, até as que lhe parecem mais evidentes. Fazendo isso, ele chega à
conclusão que pode duvidar de coisas que antes lhe pareciam certas, como do
fato de que as coisas que vê e sente sejam realmente tais como parecem. Isso
porque, quando sonhamos, o que é imaginário nos parece real – ora, toda nossa
vida poderia bem ser um sonho, sem que nós soubéssemos disso. O filósofo vai
mais além: é possível mesmo pensar que nada de corpóreo exista realmente; nem o
mundo, nem nenhum corpo, inclusive o seu próprio. Isso poderia realmente
ocorrer, caso existisse um gênio maligno que colocasse em sua mente a impressão
errônea de que há um mundo material. Descartes conclui a sua meditação: tenho
que suspender meu juízo, a respeito de tudo o que me chega pela experiência e
até da existência das coisas materiais (ou seja: não posso nem afirmar nem
negar a realidade das coisas matérias). (ver Primeira Meditação).
2-
Posso agora levantar a questão: eu, que duvido de tudo, que “me persuadi de que
nada existe no mundo” posso duvidar de que eu exista? Já sei que posso duvidar
da existência dos corpos e do meu próprio corpo – mas poderia também duvidar da
minha existência? “Certamente não – escreve Descartes na Segunda Meditação –
eu existia sem dúvida, já que me persuadi ou apenas pensei alguma coisa”. Mesmo
que um gênio maligno me engane sobre tudo o mais, ele não pode enganar-me
nisto: que eu existo toda vez que pensar alguma coisa. Ou, como, escreve no Discurso do Método:
“Penso, logo existo”. A experiência de pensar é a experiência de ser. (ver a Segunda
Meditação, parágrafos 1 a 4 e a Quarta Parte do Discurso
do Método).
3-
Se coloquei em dúvida a existência dos corpos, não posso garantir que eu exista
como corpo. Mas sei que existo – e existo porque penso, duvido, imagino que
exista um mundo, tenho sensações, mesmo que os objetos que me parecem existir
não existam. Posso estar enganado, portanto penso. E se penso, existo como ser
que pensa: não posso duvidar de que “sou uma coisa pensante”. (VerSegunda
Meditação, parágrafos 5 a 9 e a Quarta Parte do Discurso do Método).
4-
Essa “coisa pensante”, Descartes chamará de alma. E assim ele prova que a alma
é mais fácil de conhecer do que o corpo, porque se podemos duvidar da
existência dos corpos (pois pode ser que os corpos dos quais temos ideias não
existam), não podemos duvidar de que pensamos. Prova-se assim a existência da
alma e que ela é absolutamente diferente do corpo: a alma é imaterial – pois
mesmo quando não sabemos se a matéria existe, temos certeza de que a alma
existe.
Apesar
de usar a palavra “alma”, o que Descartes entende por ela é bem diferente da
concepção do senso comum e da concepção platônica. Isso porque a alma em
Descartes não tem nenhuma relação essencial com a vida: ela não vivifica o
corpo, ao contrário, ela é puro pensamento, “substância pensante” (res
cogitans). A concepção de alma de Descartes está mais próxima da “mente”,
tal como a concebe a filosofia da mente contemporânea, referindo-se ao conteúdo
representativo do pensamento, embora seja importante no sistema cartesiano
provar que a alma é imaterial e imortal.
E
os corpos? Existem realmente? A existência dos corpos – ou seja, da substância
material (res extensa) que compõe o universo – será provada pelo
filósofo, mas só depois de demonstrar a existência e a bondade de Deus.
Descartes compreende todo universo material, incluindo aí os corpos vivos, a
partir do modelo da máquina (é o chamadomecanicismo cartesiano, no
qual o mundo se compõe de matéria e movimento). Os movimentos dos corpos vivos
são gerados pelos “espíritos animais” – partes sutilíssimas de matéria que
percorrem os nervos, fazendo com que o corpo responda a estímulos do exterior e
também do interior. De modo que o movimento dos animais e todos os movimentos
involuntários dos seres humanos são explicados somente levando em conta a
matéria. (É de Descartes a primeira formulação de uma teoria dos movimentos
reflexos). Os corpos são máquinas que funcionam por si, e não necessitam, para
aquilo a que chamamos “vida”, da alma. Daí que, segundo o filósofo, os animais
não têm alma (teoria dos “animais-máquina”). Já o homem é composto por duas
substâncias distintas, o corpo e a alma; esta última, como vimos, define-se
como pensamento (sensações, emoções, opiniões, ideias), e, no homem que é
composto de corpo e alma, só é necessária para explicar os movimentos
voluntários.
Leia
mais sobre a questão do corpo em Descartes, leia a Quinta Parte do Discurso
do Método.
Atividade
de compreensão
Leia
o parágrafo 9 da Segunda Meditação (o texto se encontra no Roteiro de Atividade
II: Introdução e dualismo), e fique atento à seguinte passagem:
Enfim,
sou o mesmo que sente, isto é, que recebe e conhece as coisas como que pelos
órgãos dos sentidos, posto que, com efeito, vejo a luz, ouço o ruído, sinto o
calor. Mas dir-me-ão que essas aparências são falsas e que eu durmo. Que assim
seja; todavia, ao menos, é muito certo que me parece que vejo, que ouço e que
me aqueço; e é propriamente aquilo que em mim se chama sentir e isto, tomado
assim precisamente, nada é senão pensar.
Descartes
escreve “é muito certo que me parece que vejo, ouço e me
aqueço”. EXPLIQUE por que em Descartes a certeza da experiência de ver, ouvir e
se esquentar é mais forte do que a certeza da existência dos objetos externos.
A
crítica ao dualismo de Descartes: La Mettrie
Uma
das maiores dificuldades da teoria cartesiana, segundo a maioria de seus
críticos, é oferecer uma explicação satisfatória de como é possível a união, no
ser humano, de duas substâncias tão diferentes. Daí virão as principais
objeções a seu dualismo. Outra objeção importante é que Descartes faz uma
passagem indevida do pensamento ao ser: ao contrário do que afirma o filósofo,
o fato de eu poder conceber em meu pensamento a alma sem o corpo não implica
que a alma possa, na realidade, existir sem o corpo.
Apesar
de dualista, o pensamento cartesiano: 1- está na origem da visão científica do
corpo humano, pois pensa o funcionamento deste independentemente de qualquer
noção religiosa ou imaterial de alma; e 2- está na origem da filosofia da mente
contemporânea, pois é de Descartes a ideia de uma interioridade mental
constituída das sensações, desejos, opiniões e ideias como um domínio demarcado
e a ser investigado.
Filósofos
como Julien Offray de La Mettrie (1709-1751), que também era médico,
opuseram-se ao dualismo cartesiano a partir de elementos fornecidos pelo
próprio Descartes: se os corpos podem ser compreendidos como máquinas, se trazem
em si a capacidade de se mover, nutrir e crescer, por que não poderiam também
pensar? La Mettrie, por exemplo, leva às últimas consequências a concepção
cartesiana de um corpo-máquina e elabora a teoria do “homem-máquina”, afirmando
que tudo no ser humano, inclusive seu pensamento e racionalidade, é resultado
de certas disposições materiais.
As
principais teses de La Mettrie são: 1- a experiência nos mostra que influência
entre o corpo e o que se chama alma é tão grande que não é possível acreditar
que sejam separados; 2- não há uma diferença qualitativa entre os homens e os
animais; 3- o corpo humano é um conjunto de molas e engrenagens, e o que
chamamos alma é um princípio também material, localizado no cérebro, que
movimenta nosso organismo e nos habilita a pensar; 4- O pensamento,
como o movimento, é uma simples função da matéria organizada.
Os
trechos abaixo apresentam alguns argumentos do médico e filósofo para sustentar
suas teses:
Que
seria necessário a Canus Julius, a Sêneca ou a Petrônio para mudar sua
intrepidez em covardia ou fraqueza? Uma obstrução no baço, no fígado ou na veia
porta. Por quê? Porque a imaginação se obstrui junto com as vísceras e daí
nascem todos os fenômenos singulares de afecção histérica e hipocondríaca.
(...)
Sem
os alimentos a alma enlanguesce, entra em furor e morre abatida. (...) Mas
alimente o corpo, verta em seus tubos sucos vigorosos, líquidos fortes: então a
alma, vigorosa como eles, se arma de coragem. (...)
A
bela alma e a potente vontade só podem agir enquanto as disposições do corpo
lhes, e seus gostos mudam com a idade e a febre! Devemos então nos admirar se
os filósofos sempre tiveram em vista a saúde do corpo, para preservar a saúde
da alma?
Com
efeito, se o que pensa em meu cérebro não é uma parte dessa víscera, e logo do
corpo, por que, quando tranquilo em meu leito eu concebo o plano de uma obra,
ou sigo um raciocínio abstrato, meu sangue se aquece? Por que a febre de meu
espírito se passa para minhas veias?(...)
Dos
animais ao homem, a transição não é violenta, como convirão os verdadeiros
filósofos. (...) Um geômetra aprendeu a fazer demonstrações e cálculos como uma
macaco a tirar ou colocar seu chapéu (...) Tudo é feito por signos e cada
espécie compreende o que pode compreender. (...)
Mas
desde que todas as faculdades da alma dependem de tal forma da própria
organização do cérebro e de todo o corpo que elas não são senão essa própria
organização; eis aí uma máquina bem esclarecida! As roldanas, alguns recursos a
mais que nos animais mais perfeitos, e recebendo assim mais sangue, a própria
razão é dada. (...)
A
alma não é mais que um termo vazio do qual nós não temos a mínima ideia e do
qual um bom espírito só deve se servir para nomear a parte que pensa em nós.
Colocado o mínimo princípio de movimento, os corpos animados terão tudo o que
lhes é preciso para se movimentar, sentir, pensar, arrepender-se e agir, em
suma, no físico e no moral que dele depende.
(La METTRIE, J. O. L'homme machine. Éditions Bossard, 1921)
Questão
de compreensão:
Identifique,
nos texto de La Mettrie, os parágrafos correspondentes às teses 1, 2, 3 e 4
expostas acima.
Leia
mais: para uma posição cética sobre a questão a alma, leia o verbee “Alma” no
Dicionário Filosófico de Voltaire.
O
caminho aberto por La Mettrie no século XVIII foi explorado e expandido com
grande precisão pelas neurociências do século XX. Vejamos abaixo os desafios
que as neurociências colocaram à filosofia.
3
– A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA: A Filosofia da Mente frente ao
desafio da Neurociência.
Do
princípio do século XX até a atualidade, a compreensão filosófica do psiquismo
humano vem sendo profundamente abalada pelo advento de uma ciência
especificamente dedicada à pesquisa do cérebro, a chamada neurociência. De
maneira geral, o principal objetivo da neurociência é fornecer uma descrição
tão completa quanto possível da organização cerebral, sua estrutura e suas
diversas funções. Hoje os neurocientistas já têm condições de localizar no
cérebro as áreas responsáveis por diversas capacidades mentais, como o
pensamento racional, as emoções e os sentimentos. Como ilustra a figura abaixo,
instrumentos sofisticados como os usados para obter imagens do cérebro por
ressonância magnética, permitem observar, com detalhes, a atividade cerebral.
Assim, os neurocientistas não estão mais restritos às limitações impostas pela
pesquisa do cérebro sem vida, retirado da caixa craniana. Por meio de
neuro-imagem, aqui ilustrada, podem testar suas hipóteses acompanhando em tempo
real as reações cerebrais.
Embora
seja uma ciência nova, as descobertas da neurociência não deixam dúvidas quanto
à dependência de nossa atividade psíquica (sensibilidade, emoções, capacidade
cognitiva, etc) em relação ao cérebro, ou seja, ao conjunto neuronal. Já
sabemos que determinadas substâncias podem nos tranquilizar ou nos deixar
eufóricos ao interferirem na atividade cerebral. A degeneração de determinadas
partes do tecido cerebral destrói nossa capacidade de raciocínio. Nossa
consciência se mostra vulnerável à ação de determinados anestésicos e assim por
diante. (Ver exemplo desse ponto no Roteiro de Atividade III, Corpo e
psiquismo).
Ora,
diante do surgimento da neurociência e o seu desenvolvimento acelerado, como
fica a compreensão filosófica do psiquismo humano? Recentemente, um novo ramo
da filosofia se dedica a compreender o que é a mente humana – a chamada
“filosofia da mente”. A maior parte de seus representantes procura levar a
sério as descobertas da neurociência. Alguns entendem que a neurociência veio
substituir o tratamento filosófico dos fenômenos mentais. A ideia aqui é que a
neurociência oferece todos os instrumentos necessários para o entendimento da
mente. Já outros afirmam que a neurociência tem limites, de tal maneira que há
um conjunto de fenômenos mentais que não lhe são acessíveis. Vejamos, em
primeiro lugar, algumas posições amplamente favoráveis à neurociência como
explicação satisfatória do que seja a mente humana.
O
materialismo reducionista (A teoria da identidade)
A
teoria da identidade, formulada por U.T. Place, J.J. Smart e Herbert Feigl
afirma que os estados mentais são simplesmente estados físicos do cérebro.
Nesse sentido podemos dizer que a teoria da identidade adota um monismo
materialista. Ou seja, não existe uma substância imaterial, além do cérebro, que
possa ser responsável por nossa vida mental (que Descartes, por exemplo,
chamava de alma).
Para
essa corrente, o fato de um mesmo fenômeno poder ser descrito de várias
maneiras não significa que cada descrição corresponda a uma realidade
diferente. É verdade que existem várias maneiras de se descrever um fenômeno:
um relâmpago, por exemplo, pode ser descrito como uma forte e bem desenhada
luminosidade no céu, ou como algo que provoca medo, ou como uma descarga de
elétrons. No entanto, não se quer afirmar com isso que haja três fenômenos, mas
apenas um.
Do
mesmo modo nossos pensamentos, sonhos e emoções podem ser descritos de diversas
maneiras. Um pensamento, por exemplo, pode ser descrito como engraçado ou como
uma atividade de descarga elétrica das conexões dos neurônios em alguma parte
do nosso cérebro. Mas isso não significa que existam dois fenômenos.
O
ponto fundamental para os defensores da teoria da identidade é que há uma clara
superioridade da descrição científica com relação às descrições que as pessoas
comumente dão aos fenômenos mentais. Assim, eles propõem uma redução do
antigo vocabulário que usamos para descrever os estados mentais ao vocabulário
proposto pela neurociência – daí serem chamados dematerialistas
reducionistas. Segundo eles, podemos e devemos entender estados mentais
(intenções, desejos ou pensamentos) como estados físicos do cérebro. Outros
exemplos de redução seriam os seguintes: a depressão pode ser totalmente
compreendida como ausência de serotonina no cérebro, a ansiedade como uma
descarga de adrenalina, etc.
A
posição reducionista é assim expressa pelo neurocientista Antônio Damásio:
“Os
neurônios, organizados em circuitos, comunicam-se por meio de reações
eletroquímicas. O padrão ou o desenho dos circuitos é o que permite a construção
de todas as imagens. Isso vale tanto para o que se passa no mundo exterior –
visões ou sons, por exemplo – como para imagens interiores, produzidas e
transformadas por um estado emocional. São elas que constituem aquilo que
chamamos de espírito humano”. (Revista Veja, 13 de janeiro de 2010, p. 82).
O
materialismo eliminativista
O
materialismo eliminativista é defendido, entre outros, pelo filósofo Paul
Churchland. De certa forma, essa posição se origina da teoria da identidade,
uma vez que também afirma o monismo materialista. Entretanto, ela difere dessa
teoria na medida em que adere totalmente ao domínio da neurociência. Como
vimos, a teoria da identidade ainda se compromete com a tarefa de traduzir o
vocabulário antigo em linguagem científica nova.
No
entanto, as explicações comuns muitas vezes distorcem a natureza de nossa
atividade mental. Devemos, então, eliminar este modo coloquial e impreciso de
se referir aos estados mentais e substituí-lo por termos científicos.
Vejamos
o exemplo das bruxas dado por Churchland:
“A
psicose é um distúrbio razoavelmente comum entre os seres humanos, e, séculos
atrás, suas vítimas eram regularmente vistas como casos de possessão demoníaca.
A existência de bruxas não era uma questão de controvérsia. Elas eram vistas
ocasionalmente, em cidades ou aldeias, envolvidas em comportamentos
incoerentes, paranóicos, ou mesmo homicidas. Por fim, chegamos à conclusão que
o conceito de bruxa é um elemento de um arcabouço conceitual que interpreta de
modo tão absolutamente incorreto os fenômenos aos quais ele era regularmente
aplicado que o emprego literal dessa noção deveria ser permanentemente
eliminado.”
(CHURCHLAND,
Paul. Matéria e consciência. Trad. de Maria Clara Cescato. São
Paulo, Editora UNESP, 2004, p. 81)
Dessa
forma, o conceito “bruxa” e tudo que ele implica foi eliminado do nosso
vocabulário (a não ser, é claro, nas estórias ficcionais) tendo em vista
conceitos que esclarecem o fenômeno da psicose de forma correta. Quanto a esse
problema, podemos notar também que muitos fenômenos mentais que nos são muito
familiares não parecem ser satisfatoriamente esclarecidos pelas explicações
comuns que as pessoas nos oferecem. Como afirma Churchland, sem os
esclarecimentos da neurociência ficamos simplesmente sem compreender de forma
precisa e correta fenômenos como o sono, a memória e o raciocínio, para citar
alguns exemplos.
Daí
podemos extrair uma tese importante para os eliminativistas: a chamada
psicologia popular, ou o modo comum pelo qual as pessoas entendem os fenômenos
mentais, parece ser um estágio de nossa autocompreensão que a neurociência
poderá um dia superar. Assim, talvez não precisaremos mais falar de intenções,
desejos ou pensamentos, mas apenas de partes de nosso cérebro. O materialista
eliminativista aposta que, com o desenvolvimento da neurociência, os conceitos
neurocientíficos poderão adentrar o cotidiano das pessoas, substituindo
completamente o vocabulário comum.
Atividade
de compreensão
Pesquisas
recentes em neurociência mostram que a síndrome do pânico pode ser compreendida
como um distúrbio específico na atividade dos neurotransmissores. Tendo em
vista os argumentos do monismo materialista, explique o erro do seguinte
argumento:
1.
O transtorno do pânico é reconhecido pela maioria das pessoas como um ataque
súbito de ansiedade.
2.
Um distúrbio na atividade dos neurotransmissores não é reconhecido pela maioria
das pessoas como um ataque súbito de ansiedade.
3.
Logo, o transtorno do pânico não é um distúrbio na atividade dos
neurotransmissores.
As
críticas ao reducionismo e ao eliminativismo
Entretanto,
diversos filósofos contemporâneos não se deixam convencer por argumentos
advindos dessas duas vertentes do materialismo. Embora vários deles rejeitem o
dualismo de substância, de tipo cartesiano – a existência de uma alma separada
e independente do corpo –, eles entendem que o domínio da mente envolve
fenômenos que não podem ser compreendidos nem a partir do materialismo
reducionista, nem do materialismo eliminativista. Os filósofos em questão podem
ser divididos, de maneira geral, em dois grupos: os defensores do dualismo
de propriedade (Ned Block, Frank Jackson e Thomas Nagel) e os defensores dointerpretacionismo (Donald
Davidson e Daniel Dennet).
O
dualismo de propriedade
Nessa
teoria, embora não haja a postulação de uma substância não física, a ideia é
mostrar que a vida mental é dotada de propriedades que não podem ser explicadas
pelo vocabulário da neurociência. Isso porque a mente envolve estados
qualitativos acessíveis somente de forma introspectiva, do ponto de vista de
quem tem a experiência. Vamos considerar a seguinte situação, inspirada num
exemplo fornecido por John Heil: no interior da mata atlântica, uma árvore cai
ao ser atingida por um raio. Poderíamos perguntar o seguinte: será que o
impacto da árvore ao se chocar com o solo produz som, mesmo se não houver
ninguém para ouvi-lo? Uma primeira resposta parece ser, obviamente, afirmativa.
Afinal, seria muito estranho dizer que um evento físico como a propagação de
ondas sonoras no ar dependa, para sua existência, de seres com capacidade de
audição. Quer tenha ou não pessoas perto do evento, isso não altera o fato
objetivo de que o impacto gera o som.
Entretanto,
suponhamos que com o termo “som” alguém queira referir-se não ao “impacto de
ondas no ar”, passíveis de ser mensuradas objetivamente, mas à “experiência
pessoal de ouvir um som como o estalar de uma árvore que cai no solo”. Neste
segundo sentido, seu modo especial de existência depende de um ser que o
perceba. Vejamos.
Seres
humanos possuem condições específicas de audição. Somos sensíveis a
determinadas frequências sonoras e insensíveis a outras. Todo o aparato
envolvido no processo auditivo nos permite ouvir da forma particular como o
fazemos e de forma diferente de outras espécies. Os dualistas de propriedade
afirmam então que, sem a experiência auditiva gerada por esse aparato
específico, a ideia mesma de som enquanto captado pelo ser humano seria vazia.
O
que está em jogo nesse contexto é a diferença entre o polo da objetividade
(mundo) e o polo da subjetividade (mente). É certamente possível medir e
observar as reações dos sujeitos ao som subjetivamente experimentado. Por meio
de neuro-imagens, podemos observar as áreas cerebrais estimuladas, que tipo de
relação surge entre elas e assim por diante. Por outro lado, não podemos, ao
menos do mesmo modo, observar o caráter qualitativo da experiência – o que é
para um sujeito experimentar um som não parece simplesmente acessível a outrem.
E o interessante é que a descrição do comportamento, ou a descrição minuciosa
sobre a sequência de eventos físicos no cérebro quando alguém escuta o som, não
capacita essa pessoa que descreve a ter uma experiência subjetiva com o som.
Thomas Nagel, por exemplo, afirma que alguém poderia ser capaz de descrever o
que ocorre no cérebro quando comemos um chocolate, sem saber o que é vivenciar
essa experiência, ou seja, sem sentir o gosto do chocolate. (Ver, para comentários
e bibliografia, a Orientação Pedagógica: A posição monista. Avaliação critica).
Em
resumo, o dualismo de propriedade afirma que, embora os fenômenos mentais sejam
causados pelo cérebro, tais fenômenos possuem um modo especial de existência.
Ou seja, eles são dependentes do modo como os acessamos, a saber, de maneira
introspectiva. Nesse sentido, eles não são acessíveis da perspectiva objetiva
da neurociência.
A
posição defendida aqui não é mais um dualismo substancial (existência de uma
alma independente do corpo), mas sim a afirmação da ideia de que o mental é
diferente do cerebral e não pode ser reduzido a ele.
Atividade
de compreensão
Leia
o texto abaixo e responda à pergunta formulada ao final.
O
filósofo Frank Jackson propôs a seguinte situação: Maria é uma cientista
brilhante que, por alguma razão, desde que nasceu foi forçada a investigar o
mundo de dentro de um quarto no qual não havia nenhuma outra cor senão preto e
branco. Mesmo sem nunca ter visto um objeto colorido sequer, ou talvez por isso
mesmo, Maria se especializou em neurociência da visão. Ela adquiriu toda a
informação neurofisiológica existente sobre o que ocorre no cérebro quando
vemos as cores. O que acontecerá quando Maria deixar o seu quarto e enxergar
ela mesma as cores dos objetos do mundo pela primeira vez? Ela aprenderá alguma
coisa nova com essa experiência visual?
O
interpretacionismo
A
posição interpretacionista postula que as explicações comuns que damos ao
comportamento dos seres humanos não podem ser substituídas pelo vocabulário da
neurociência. Os filósofos Donald Davidson e Daniel Dennett, embora sejam
monistas, afirmam que atribuir às pessoas desejos, intenções e pensamentos é
uma condição necessária para compreendê-las. Considere essas situações
colocadas por Dennett:
“Imagine
assistir a alguém pegando maçãs e não ter menor ideia do que ele está fazendo.
Imagine perceber duas crianças disputando o mesmo ursinho de pelúcia e não
ocorrer a você que as duas o querem.”
(DENNET, D. The intentional instance. MIT
Press, 1989, p. 8)
Nesses
casos, tratar-se-ia de um indivíduo que, embora consciente de objetos ou
eventos físicos, não compreende ou leva em conta estados ou processos mentais.
O que seria o mundo social para esse indivíduo? Como ele compreenderia os
outros seres humanos, suas ações, seus pensamentos ou desejos? Como ele
compreenderia seus próprios pensamentos?
O
que importa notar é que em geral, o comportamento é interpretado à luz de
estados mentais como desejo, crença, intenção e assim por diante. Esse é o modo
comum pelo qual os seres humanos se entendem entre si. Sem esta perspectiva,
torna-se difícil haver uma explicação em termos de qualquer motivo ou razão.
Para alguém incapaz de interpretar os movimentos corporais por meio de estados
mentais, a ação e toda a vida mental das pessoas permaneceriam um verdadeiro
mistério.
Para
o filósofo Daniel Dennett, quando estamos diante da tarefa de explicar o
comportamento de um sistema complexo, adotamos a chamada postura intencional. A
postura intencional implica a atribuição de estados mentais, particularmente o
desejo e a crença que podem explicar a ação.
Nesse
sentido, a adoção de uma postura eliminativista na tentativa de predizer o
comportamento de seres humanos seria menos errada do que penosa. Suponhamos que
alguém queira interpretar um comportamento simples como beber um copo d’água.
Seria extremamente difícil lidar com tantos estados físicos envolvidos nessa
ação. Teríamos que fazer uma lista não só de estados cerebrais, mas também de
movimentos corporais, determinados músculos e articulações envolvidos nessa
ação. Em suma, a tarefa poderia ser enorme. Claro que em determinados
contextos, por exemplo, de pesquisa científica, o eliminativismo pode ter todo
sentido. Mas, ao menos no contexto cotidiano, não é fácil mostrar a razão pela
qual devemos abandonar a postura intencional. Realmente, parece muito mais
fácil explicar a ação através de um desejo como a sede e de um pensamento de
que beber um copo d’água é um meio de matar a sede. Para Dennett, quando o que
está em questão é fornecer razões para o comportamento humano, não parece haver
expedientes explanatórios tão eficazes quanto esse.
Atividade
de compreeensão
Suponha
a seguinte sequência de eventos:
João
entrou no quarto, percorreu seu interior e saiu.
Considere
as duas explicações a seguir:
(a)
Talvez João tenha desejado o objeto que ele acreditava estar no quarto.
(b)
Talvez João faça isso todos os dias: ele entra no quarto, percorre seu interior
e sai.
IDENTIFIQUE
a explicação intencional e a não intencional. JUSTIFIQUE sua resposta.
CONCLUSÃO
O
que vimos acima foram algumas perspectivas importantes de análise do problema
das relações entre o corpo e psiquismo. Evidentemente, há outras perspectivas,
que ou aprofundam aquelas apresentadas acima, ou colocam o problema em outros
termos.
Aqui
não é o lugar de optar por alguma das posições, mas de apresentar diferentes
perspectivas de análise do problema. De qualquer maneira, podemos dizer, em
termos gerais, que, na passagem da filosofia antiga para a moderna, o que se
abandona é uma ideia da alma como fonte de vida, passando esta a ser pensada
como mente, ou puro pensamento. Na passagem da filosofia moderna para a
contemporânea, é o dualismo de substância que se enfraquece.
A
questão que fica para a contemporaneidade é definir a tarefa da filosofia numa
época em que a neurociência avança a passos largos na compreensão dos processos
da mente humana. O filósofo pode sempre levantar o problema – e o faz – de que
a neurociência é, ela também, uma produção da mente e que, portanto, não
poderia explicá-la totalmente. Essa constatação abre a possibilidade de outras
interpretações da condição do ser humano.
Fonte:
http://crv.educacao.mg.gov.br/sistema_crv/index.aspx?ID_OBJETO=114096&tipo=ob&cp=BF0000&cb=&n1=&n2=M%C3%B3dulos%20Did%C3%A1ticos&n3=Ensino%20M%C3%A9dio&n4=Filosofia&b=s