Vida e Obra
Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu a 15 de outubro de 1844 em Röcken,
localidade próxima a Leipzig. Karl Ludwig, seu pai, pessoa culta e delicada, e
seus dois avós eram pastores protestantes; o próprio Nietzsche pensou em seguir
a mesma carreira.
Em 1849, seu pai e seu irmão faleceram; por causa disso a mãe mudou-se
com a família para Naumburg, pequena cidade às margens do Saale, onde Nietzsche
cresceu, em companhia da mãe, duas tias e da avó. Criança feliz, aluno modelo,
dócil e leal, seus colegas de escola o chamavam "pequeno pastor"; com
eles criou uma pequena sociedade artística e literária, para a qual compôs
melodias e escreveu seus primeiros versos.
Em 1858, Nietzsche obteve uma bolsa de estudos na então famosa escola
de Pforta, onde haviam estudado o poeta Novalis o filósofo Fichte (1762-1814).
Datam dessa época suas leituras de Schiller (1759-1805), Hölderlin (1770-1843)
e Byron (1788-1824); sob essa influência e a de alguns professores, Nietzsche
começou a afastar-se do cristianismo. Excelente aluno em grego e brilhante em
estudos bíblicos, alemão e latim, seus autores favoritos, entre os clássicos,
foram Platão (428-348 a .C.)
e Ésquilo (525-456 a .C.).
Durante o último ano em Pforta, escreveu um trabalho sobre o poeta Teógnis
(séc. VI a.C.). Partiu em seguida para Bonn, onde se dedicou aos estudos de
teologia e filosofia, mas, influenciado por seu professor predileto, Ritschl,
desistiu desses estudos e passou a residir em Leipzig, dedicando-se à
filologia. Ritschl considerava a filologia não apenas história das formas
literárias, mas estudos das instituições e do pensamento. Nietzsche seguiu-lhe
as pegadas e realizou investigações originais sobre Diógenes Laércio (séc.
III), Hesíodo (séc. VIII a.C.) e Homero. A partir desses trabalhos foi nomeado,
em 1869, professor de filologia em Basiléia, onde permaneceu por dez anos. A
filosofia somente passou a interessá-lo a partir da leitura de O Mundo
como Vontade e Representação, de Schopenhauer (1788-1860). Nietzsche foi
atraído pelo ateísmo de Schopenhauer, assim como pela posição essencial que a
experiência estética ocupa em sua filosofia, sobretudo pelo significado
metafísico que atribui à música.
Em 1867, Nietzsche foi chamado para prestar o serviço militar, mas um
acidente em exercício de montaria livrou-o dessa obrigação. Voltou então aos
estudos na cidade de Leipzig. Nessa época teve início sua amizade com Richard
Wagner (1813-1883), que tinha quase 55 anos e vivia então com Cosima, filha de
Liszt (1811-1886). Nietzsche encantou-se com a música de Wagner e com seu drama
musical, principalmente com Tristão e Isolda e com Os
Mestres Cantores. A casa de campo de Tribschen, às margens do lago de
Lucerna, onde Wagner morava, tornou-se para Nietzsche lugar de refúgio e
consolação. Na mesma época, apaixonou-se por Cosima, que viria a ser, em
obra posterior, A sonhada Ariane. Em cartas ao amigo Erwin Rohde,
escrevia: "Minha Itália chama-se Tribschen e sinto-me ali como em minha
própria casa". Na universidade, passou a tratar das relações entre a música
e a tragédia grega, esboçando seu livro, O Nascimento da Tragédia no
Espírito da Música.
O Filósofo e o
Músico
Em 1870, a
Alemanha entrou em guerra com a França; nessa ocasião, Nietzsche serviu o
exército como enfermeiro, mas por pouco tempo, pois logo adoeceu, contraindo
difteria e disenteria. Essa doença parece ter sido a origem das dores de cabeça
e de estômago que acompanharam o filósofo durante toda a vida. Nietzsche
restabeleceu-se lentamente e voltou a Basiléia a fim de prosseguir seus cursos.
Em 1871 publicou, O Nascimento da Tragédia, a respeito da qual se
costuma dizer que o verdadeiro Nietzsche fala através das figuras de
Schopenhauer e de Wagner. Nessa obra, considera Sócrates (470 ou 469 a .C.-399 a .C.) um sedutor, por ter feito triunfar junto à juventude ateniense o mundo
abstrato do pensamento. A tragédia grega, diz Nietzsche, depois de ter atingido
sua perfeição pela reconciliação da embriaguez e da forma, de
Dioniso e Apolo, começou a declinar quando, aos poucos, foi invadida pelo
racionalismo, sob a influência decadente de Sócrates. Assim,
Nietzsche estabeleceu uma distinção entre o apolíneo e o dionisíaco:
Apolo é o deus da clareza, da harmonia e da ordem; Dioniso, o deus da
exuberância, da desordem e da música. Segundo Nietzsche, o apolíneo e o
dionisíaco, complementares entre si, foram separados pela civilização.
Nietzsche trata da Grécia antes da separação entre o trabalho manual e o
intelectual, entre o cidadão e o político, entre o poeta e o filósofo, entre
Eros e Logos. Para ele a Grécia socrática, a do Logos e da lógica, a da
cidade-Estado, assinalou o fim da Grécia antiga e de sua força criadora.
Nietzsche pergunta como, num povo amante da beleza, Sócrates pôde atrair os
jovens com a dialética, isto é, uma nova forma de disputa (ágon), coisa tão
querida pelos gregos. Nietzsche responde que isso aconteceu porque a existência
grega já tinha perdido sua bela imediatez, e tornou-se necessário
que a vida ameaçada de dissolução lançasse mão de uma razão
tirânica, a fim de dominar os instintos contraditórios.
Seu livro foi mal acolhido pela crítica, o que o impeliu a refletir
sobre a incompatibilidade entre o pensador privado e o professor público. Ao mesmo tempo, esperava-se com seu estado de
saúde: dores de cabeça, perturbações oculares, dificuldades na fala.
Interrompeu assim sua carreira universitária por um ano. Mesmo doente foi até
Bayreuth, para assistir à apresentação de O Anel dos Nibelungos, de
Wagner. Mas o entusiasmo grosseiro da multidão e a atitude de
Wagner embriagado pelo sucesso o irritaram.
Terminada a licença da universidade para que tratasse da saúde,
Nietzsche voltou à cátedra. Mas sua voz agora era tão imperceptível que os
ouvintes deixaram de freqüentar seus cursos, outrora tão brilhantes. Em 1879,
pediu demissão do cargo. Nessa ocasião, iniciou sua grande crítica dos valores,
escrevendo Humano, Demasiado Humano;
seus amigos não o compreenderam. Rompeu as relações de amizade que o ligavam a
Wagner e, ao mesmo tempo, afastou-se da filosofia de Schopenhauer, recusando
sua noção de vontade culpada e substituindo-a pela de vontade
alegre; isso lhe parecia necessário para destruir os obstáculos da moral
e da metafísica. O homem, dizia Nietzsche, é o criador dos valores, mas esquece
sua própria criação e vê neles algo de transcendente, de eterno e verdadeiro, quando os valores não são mais do
que algo humano, demasiado humano.
Nietzsche, que até então interpretara a música de Wagner como o renascimento da grande arte da Grécia, mudou de opinião, achando que
Wagner inclinava-se ao pessimismo sob a influência de Schopenhauer. Nessa época
Wagner voltara-se, ao mesmo tempo, a recusa do cristianismo e de Schopenhauer;
para Nietzsche, ambos são parentes porque são a manifestação da decadência,
isto é, da fraqueza e da negação. Irritado com o antigo amigo, Nietzsche
escreveu: "Não há nada de exausto, nada de caduco, nada de perigoso
para a vida, nada que calunie o mundo no reino do espírito, que não tenha
encontrado secretamente abrigo em sua arte; ele dissimula o mais negro
obscurantismo nos orbes luminosos do ideal. Ele acaricia todo o instinto
niilista (budista) e embeleza-o com a música; acaricia toda a forma de
cristianismo e toda expressão religiosa de decadência".
Solidão, Agonia e
Morte
Em 1880, Nietzsche publicou O
Andarilho e sua Sombra: um ano depois apareceu Aurora, com a qual se
empenhou "numa luta contra a moral da auto-renúncia". Mais uma vez,
seu trabalho não foi bem acolhido por seus amigos; Erwin Rohde nem chegou a
agradecer-lhe o recebimento da obra, nem respondeu à carta que Nietzsche lhe
enviara. Em 1882, veio à luz A Gaia Ciência, depois Assim falou
Zaratustra (1884), Para Além de Bem e Mal (1886), O Caso
Wagner, Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche contra Wagner (1888). Ecce
Homo, Ditirambos Dionisíacos, O Anticristo e Vontade de
Potência só apareceram depois de sua morte.
Durante o verão de 1881, Nietzsche residiu em Haute-Engandine, na
pequena aldeia de Silvaplana, e, durante um passeio, teve a intuição de O eterno retorno, redigido logo depois. Nessa obra defendeu a tese de que o mundo
passa indefinidamente pela alternância da criação e da destruição, da alegria e
do sofrimento, do bem e do mal. De Silvaplana, Nietzsche transferiu-se para
Gênova, no outono de 1881, e depois para Roma, onde permaneceu por insistência
de Fräulein von Meysenburg, que pretendia casá-lo com uma jovem finlandesa, Lou
Andreas Salomé. Em 1882, Nietzsche propôs-lhe casamento e foi recusado, mas Lou
Andreas Salomé desejou continuar sua amiga e discípula. Encontraram-se mais
tarde na Alemanha; porém, não houve a esperada adesão à filosofia nietzschiana
e, assim, acabaram por se afastar definitivamente.
Em seguida, retornou à Itália, passando o inverno de 1882-1883 na baía
de Rapallo. Em Rapallo, Nietzsche não se encontrava bem instalado; porém,
"foi durante o inverno e no meio desse desconforto que nasceu o meu nobre Zaratustra".
No outono de 1883 voltou para a Alemanha e passou a residir em
Naumburg, em companhia da mãe e da irmã. Apesar da companhia dos familiares,
sentia-se cada vez mais só. Além disso, mostrava-se muito contrariado, pois sua
irmã tencionava casar-se com Herr Foster, agitador anti-semita, que pretendia
fundar uma empresa colonial no Paraguai, como reduto da cristandade teutônica.
Nietzsche desprezava o anti-semitismo, e, não conseguindo influenciar a irmã,
abandonou Naumburg.
Em princípio de abril de 1884 chegou a Veneza, partindo depois para a
Suíça, onde recebeu a visita do barão Heinrich von Stein, jovem discípulo de
Wagner. Von Stein esperava que o filósofo o acompanhasse a Bayreuth para ouvir
o Parsifal, talvez pretendendo ser o mediador para que Nietzsche não
publicasse seu ataque contra Wagner. Por seu lado, Nietzsche viu no rapaz um
discípulo capaz de compreender o seu Zaratustra. Von Stein, no entanto, veio a
falecer muito cedo, o que o amargurou profundamente, sucedendo-se alternâncias
entre euforia e depressão. Em 1885, veio a público a Quarta parte de Assim
falou Zaratustra; cada vez mais isolado, o autor só encontrou sete pessoas a
quem enviá-la. Depois disso, viajou para Nice, onde veio a conhecer o
intelectual alemão Paul Lanzky, que lera Assim falou Zaratustra e
escrevera um artigo, publicado em um jornal de Leipzig e na Revista
Européia de Florença. Certa vez, Lanzky se dirigiu a Nietzsche tratando-o
de "mestre" e Nietzsche lhe respondeu: "Sois o primeiro que me
trata dessa maneira".
Depois de 1888, Nietzsche passou a escrever cartas estranhas. Um ano
mais tarde, em Turim, enfrentou o auge da crise; escrevia cartas ora assinando Dioníso, ora O crucificado e acabou sendo internado em
Basiléia, onde foi diagnosticada uma "paralisia progressiva". Provavelmente
de origem sifilítica, a moléstia progrediu lentamente até a apatia e a agonia.
Nietzsche faleceu em Weimar, a 25 de agosto de 1900.
O Dionisíaco e o
Socrático
Nietzsche enriqueceu a filosofia moderna com meios de expressão: o aforismo e
o poema. Isso trouxe como conseqüência uma nova concepção da filosofia e
do filósofo: não se trata mais de procurar o ideal de um conhecimento
verdadeiro, mas sim de interpretar e avaliar. A interpretação procuraria fixar
o sentido de um fenômeno, sempre parcial e fragmentário; a avaliação tentaria
determinar o valor hierárquico desses sentidos, totalizando os fragmentos, sem,
no entanto, atenuar ou suprimir a pluralidade. Assim, o aforismo nietzschiano
é, simultaneamente, a arte de interpretar e a coisa a ser interpretada, e o
poema constitui a arte de avaliar e a própria coisa a ser avaliada. O
intérprete seria uma espécie de fisiologista e de médico, aquele que considera
os fenômenos como sintomas e fala por aforismos; o avaliador seria o artista
que considera e cria perspectivas, falando pelo poema. Reunindo as duas
capacidades, o filósofo do futuro deveria ser artista e médico-legislador, ao
mesmo tempo.
Para Nietzsche, um tipo de filósofo encontra-se entre os pré-socráticos,
nos quais existe unidade entre o pensamento e a vida, esta estimulando o pensamento, e o pensamento afirmando a
vida. Mas o desenvolvimento da filosofia teria trazido consigo a progressiva
degeneração dessa característica, e, em lugar de uma vida ativa e de um
pensamento afirmativo, a filosofia ter-se-ia proposto como tarefa julgar
a vida, opondo a ela valores pretensamente superiores, mediando-a por
eles, impondo-lhes limites, condenando-a. Em lugar do filósofo-legislador, isto
é, crítico de todos os valores estabelecidos e criador de novos, surgiu o
filósofo metafísico. Essa degeneração, afirma Nietzsche, apareceu claramente
com Sócrates, quando se estabeleceu a distinção entre dois mundos, pela
oposição entre essencial e aparente, verdadeiro e falso, inteligível e
sensível. Sócrates inventou a metafísica, diz Nietzsche, fazendo da
vida aquilo que deve ser julgado, medido, limitado, em nome de valores superiores como o Divino, o Verdadeiro, o Belo, o Bem. Com
Sócrates, teria surgido um tipo de filósofo voluntário e sutilmente submisso, inaugurando a época da razão e do homem teórico, que se
opôs ao sentido místico de toda a tradição da época da tragédia.
Para Nietzsche, a grande tragédia grega apresenta como característica o
saber místico da unidade da vida e da morte e, nesse sentido, constitui uma
"chave" que abre o caminho essencial do mundo. Mas Sócrates
interpretou a arte trágica como algo irracional, algo que apresenta efeitos sem
causas e causas sem efeitos, tudo de maneira tão confusa que deveria ser
ignorada. Por isso Sócrates colocou a tragédia na categoria das artes
aduladoras que representam o agradável e não o útil e pedia a seus discípulos
que se abstivessem dessas emoções indignas de filósofos. Segundo
Sócrates, a arte da tragédia desvia o homem do caminho da verdade: "uma
obra só é bela se obedecer à razão", formula que, segundo Nietzsche,
corresponde ao aforismo "só o homem que concebe o bem é
virtuoso". Esse bem ideal concebido por Sócrates existiria em um mundo
supra-sensível, no verdadeiro mundo, inacessível ao conhecimento
dos sentidos, os quais só revelariam o aparente e irreal. Com tal concepção,
criou-se, segundo Nietzsche, uma verdadeira oposição dialética entre Sócrates e
Dioniso: "enquanto em todos os homens produtivos o instinto é uma força
afirmativa e criadora, e a consciência uma força crítica e negativa, em
Sócrates o instinto torna-se crítico e a consciência criadora". Assim,
Sócrates, o homem teórico, foi o único verdadeiro contrário do
homem trágico e com ele teve início uma verdadeira mutação no entendimento do
Ser. Com ele, o homem se afastou cada vez mais desse conhecimento, na medida em
que abandonou o fenômeno do trágico, verdadeira natureza da realidade, segundo
Nietzsche. Perdendo-se a sabedoria instintiva da arte trágica, restou a
Sócrates apenas um aspecto da vida do espírito, o aspecto lógico-racional;
faltou-lhe a visão mística, possuído que foi pelo instinto irrefreado de tudo
transformar em pensamento abstrato, lógico, racional. Penetrar a própria razão
das coisas, distinguindo o verdadeiro do aparente e do erro era, para Sócrates,
a única atividade digna do homem. Para Nietzsche, porém, esse tipo de
conhecimento não tarda a encontrar seus limites: "esta sublime ilusão
metafísica de um pensamento puramente racional associa-se ao conhecimento como
um instinto e o conduz incessantemente a seus limites onde este se transforma
em arte".
Por essa razão, Nietzsche combateu a metafísica, retirando do mundo
supra-sensível todo e qualquer valor eficiente, e entendendo as idéias não mais
como verdades ou falsidades, mas como sinais. A única existência, para Nietzsche, é a aparência e seu
reverso não é mais o Ser; o homem está destinado à multiplicidade, e a única
coisa permitida é sua interpretação.
O Vôo da Águia, a
Ascensão da Montanha
A crítica nietzschiana à metafísica tem um sentido ontológico e um
sentido moral: o combate à teoria das idéias socrático-platônicas é, ao mesmo
tempo, uma luta acirrada contra o cristianismo.
Segundo Nietzsche, o cristianismo concebe o mundo terrestre como um
vale de lágrimas, em oposição ao mundo da felicidade eterna do além. Essa
concepção constitui uma metafísica que, à luz das idéias do outro mundo,
autêntico e verdadeiro, entende o terrestre, o sensível, o corpo, como o
provisório, o inautêntico e o aparente. Trata-se, portanto, diz Nietzsche, de
"um platonismo para o povo", de uma vulgarização da metafísica, que é
preciso desmistificar. O cristianismo, continua Nietzsche, é a forma acabada da
perversão dos instintos que caracteriza o platonismo, repousando em dogmas e
crenças que permitem à consciência fraca e escava escapar à vida, à dor e à
luta, e impondo a resignação e a renúncia como virtudes. São os escravos e os
vencidos da vida que inventaram o além para compensar a miséria; inventaram
falsos valores para se consolar da impossibilidade de participação nos valores
dos senhores e dos fortes; forjaram o mito da salvação da alma porque não
possuíam o corpo; criaram a ficção do pecado porque não podiam participar das
alegrias terrestres e da plena satisfação dos instintos da vida. "Este
ódio de tudo que é humano", diz Nietzsche, "de tudo que é 'animal' e
mais ainda de tudo que é 'matéria', este temor dos sentidos... este horror da
felicidade e da beleza; este desejo de fugir de tudo que é aparência, mudança,
dever, morte, esforço, desejo mesmo, tudo isso significa... vontade de
aniquilamento, hostilidade à vida, recusa em se admitir as condições
fundamentais da própria vida".
Nietzsche propôs a si mesmo a tarefa de recuperar a vida e transmutar
todos os valores do cristianismo: "munido de uma tocha cuja luz não
treme, levo uma claridade intensa aos subterrâneos do ideal". A imagem da
tocha simboliza, no pensamento de Nietzsche, o método filológico, por ele
concebido como um método crítico e que se constitui no nível da patologia, pois
procura "fazer falar aquilo que gostaria de permanecer mudo".
Nietzsche traz à tona, por exemplo, um significado esquecido da palavra
"bom". Em latim, bônus significa também o
"guerreiro", significado este que foi sepultado pelo cristianismo.
Assim como esse, outros significados precisariam ser recuperados; com isso se
poderia constituir uma genealogia da moral que explicaria as etapas
das noções de "bem" e de "mal". Para Nietzsche essas etapas
são o ressentimento ("é tua culpa se sou fraco e infeliz"); a
consciência da culpa (momento em que as formas negativas se interiorizam, dizem-se
culpadas e voltam-se contra si mesmas); e o ideal ascético (momento de
sublimação do sofrimento e de negação da vida). A partir daqui, a vontade de
potência torna-se vontade de nada e a vida transforma-se em fraqueza e
mutilação, triunfando o negativo e a reação contra a ação. Quando esse niilismo
triunfa, diz Nietzsche, a vontade de potência deixa de querer significar
"criar" para querer dizer "dominar"; essa é a maneira como
o escravo a concebe. Assim, na fórmula "tu és mau, logo eu sou bom",
Nietzsche vê o triunfo da moral dos fracos que negam a vida, e negam a
"afirmação"; neles tudo é invertido: os fracos passam a se chamar
fortes, a baixeza transforma-se em nobreza. A "profundidade da
consciência" que busca o Bem e a Verdade, diz Nietzsche, implica
resignação, hipocrisia e máscara, e o intérprete-filólogo, ao percorrer os
signos para denunciá-las, deve ser um escavador dos submundos a fim de mostrar
que a "profundidade da interioridade" é coisa diferente do que ela
mesma pretende ser. Do ponto de vista do intérprete que desça até os bas-fonds da
consciência, o Bem é a vontade do mais forte, do "guerreiro", do
arauto de um apelo perpétuo à verdadeira ultrapassagem dos valores
estabelecidos, do super-homem, entendida esta expressão no sentido de um ser
humano que transpõe os limites do humano, é o além-do-homem. Assim, o
vôo da águia, a ascensão da montanha e todas as imagens de verticalidade que se
encontram em Assim falou Zaratustra representam
a inversão da profundidade e a descoberta de que ela não passa de um jogo de
superfície.
A etimologia nietzschiana mostra que não existe um "sentido
original", pois as próprias palavras não passam de interpretações, antes
mesmo de serem signos, e se elas só significam porque são "interpretações
essenciais". As palavras, segundo Nietzsche, sempre foram inventadas pelas
classes superiores e, assim, não indicam um significado, mas impõem uma
interpretação. O trabalho do etimologista, portanto, deve centralizar-se no
problema de saber o que existe para ser interpretado, na medida em que tudo é
máscara, interpretação, avaliação. Fazer isso é "aliviar o que vive,
dançar, criar". Zaratustra, o intérprete por excelência, é como Dioniso.
Os Limites do
Humano: O Além-do-Homem
Em Ecce Homo, Nietzsche assimila Zaratustra a Dioniso, concebendo o
primeiro como o triunfo da afirmação da vontade de potência e o segundo como
símbolo do mundo como vontade, como um deus artista, totalmente irresponsável,
amoral e superior ao lógico. Por outro lado, a arte trágica é concebida por Nietzsche
como oposta à decadência e enraizada na antinomia entre a vontade de potência,
aberta para o futuro, e o "eterno retorno", que faz do futuro numa
repetição; esta, no entanto, não significa uma volta do mesmo nem uma
volta ao mesmo; o eterno retorno nietzschiano é essencialmente seletivo.
Em dois momentos deAssim falou Zaratustra (Zaratustra doente e Zaratustra
convalescente), o eterno retorno causa ao personagem-título, primeiramente, uma
repulsa e um medo intoleráveis que desaparecem por ocasião de sua cura, pois o
que o tornava doente era a idéia de que o eterno retorno estava ligado, apesar
de tudo, a um ciclo, e que ele faria tudo voltar, mesmo o homem, o "homem
pequeno". O grande desgosto do homem, diz Zaratustra, aí está o que me sufocou
e que me tinha entrado na garganta e também o que me tinha profetizado o
adivinho: tudo é igual. E o eterno retorno, mesmo do mais pequeno, aí está a
causa de meu cansaço e de toda a existência. Dessa forma, se Zaratustra se cura
é porque compreende que o eterno retorno abrange o desigual e a seleção. Para
Dioniso, o sofrimento, a morte e o declínio são apenas a outra face da alegria,
da ressurreição e da volta. Por isso, "os homens não têm de fugir à vida
como os pessimistas", diz Nietzsche, "mas, como alegres convivas de
um banquete que desejam suas taças novamente cheias, dirão à vida: uma vez
mais".
Para Nietzsche, portanto, o verdadeiro oposto a Dioniso não é mais
Sócrates, mas o Crucificado. Em outros termos, a verdadeira oposição é a que
contrapõe, de um lado, o testemunho contra a vida e o empreendimento de
vingança que consiste em negar a vida; de outro, a afirmação do devir e do
múltiplo, mesmo na dilaceração dos membros dispersos de Dioniso. Com essa
concepção, Nietzsche responde ao pessimismo de Schopenhauer: em lugar do
desespero de uma vida para a qual tudo se tornou vão, o homem descobre no
eterno retorno a plenitude de uma existência ritmada pela alternância da
criação e da destruição, da alegria e do sofrimento, do bem e do mal. O eterno
retorno, e apenas ele, oferece, diz Nietzsche, uma "saída fora da mentira
de dois mil anos", e a transmutação dos valores traz consigo o novo homem
que se situa além do próprio homem.
Esse super-homem nietzschiano não é um ser, cuja vontade "deseje
dominar". Se se interpreta vontade de potência, diz Nietzsche, como desejo
de dominar, faz-se dela algo dependente dos valores estabelecidos. Com isso,
desconhece-se a natureza da vontade de potência como princípio plástico de
todas as avaliações e como força criadora de novos valores. Vontade de
potência, diz Nietzsche, significa "criar", "dar" e
"avaliar".
Nesse sentido, a vontade de potência do super-homem nietzschiano o
situa muito além do bem e do mal e o faz desprender-se de todos os produtos de
uma cultura decadente. A moral do além-do-homem, que vive esse constante perigo
e fazendo de sua vida uma permanente luta, é a moral oposta à do escravo e à do
rebanho. Oposta, portanto, à moral da compaixão, da piedade, da doçura feminina
e cristã. Assim, para Nietzsche, bondade, objetividade, humildade, piedade,
amor ao próximo, constituem valores inferiores, impondo-se sua substituição
pela virtù dos renascentistas italianos, pelo orgulho, pelo risco,
pela personalidade criadora, pelo amor ao distante. O forte é aquele em que a
transmutação dos valores faz triunfar o afirmativo na vontade de potência. O
negativo subsiste nela apenas como agressividade própria à afirmação, como a
crítica total que acompanha a criação; assim, Zaratustra, o profeta do
além-do-homem, é a pura afirmação, que leva a negação a seu último grau,
fazendo dela uma ação, uma instância a serviço daquele que cria, que afirma.
Compreende-se, assim, porque Nietzsche desacredita das doutrinas
igualitárias, que lhe parecem "imorais", pois impossibilitam que se
pense a diferença entre os valores dos "senhores e dos escravos".
Nietzsche recusa o socialismo, mas em Vontade de Potência exorta os
operários a reagirem "como soldados".
Uma Filosofia
Confiscada
Apoiado na crítica nietzschiana aos valores da moral cristã, em sua
teoria da vontade de potência e no seu elogio do super-homem, desenvolveu-se um
pensamento nacionalista e racista, de tal forma que se passou a ver no autor de Assim
Falou Zaratustra um precursor do nazismo. A principal responsável por essa
deformação foi sua irmã Elisabeth, que, ao assegurar a difusão de seu
pensamento, organizando o Nietzsche-Archiv, em Weimar, tentou colocá-lo a
serviço do nacional-socialismo. Elisabeth, depois do suicídio do marido, que
fracassara em um projeto colonial no Paraguai, reuniu arbitrariamente notas e
rascunhos do irmão, fazendo publicar Vontade de Potência como a
última e a mais representativa das obras de Nietzsche, retendo até 1908 Ecce
Homo, escrita em 1888. Esta obra constitui uma interpretação, feita por
Nietzsche, de sua própria filosofia, que não se coaduna com o nacionalismo e o
racismo germânicos. Ambos foram combatidos pelo filósofo, desde sua
participação na guerra franco-prussiana (1870-1871).
Por ocasião desse conflito, Nietzsche alistou-se no exército alemão,
mas seu ardor patriótico logo se dissolveu, pois, para ele, a vitória da
Alemanha sobre a França teria como conseqüência "um poder altamente
perigoso para a cultura". Nessa época, aplaudia as palavras de seu colega
em Basiléia, Jacob Burckhardt (1818-1897), que insistia junto a seus alunos
para que não tomassem o triunfo militar e a expansão de um Estado como indício
de verdadeira grandeza.
Em Para Além de Bem e Mal, Nietzsche revela o desejo de uma Europa
unida para enfrentar o nacionalismo ("essa neurose") que ameaçava
subverter a cultura européia. Por outro lado, quando confiou ao
"louro" a tarefa de "virilizar a Europa", Nietzsche levou
até a caricatura seu desprezo pelos alemães, homens "que introduziram no
lugar da cultura a loucura política e nacional... que só sabem obedecer
pesadamente, disciplinados como uma cifre oculta em um número". No mesmo
sentido, Nietzsche caracterizou os heróis wagnerianos como germanos que não
passam de "obediência e longas pernas". E acabou rompendo
definitivamente com Wagner, por causa do nacionalismo e anti-semitismo do autor
de Tristão e Isolda: "Wagner condescende a tudo que desprezo, até o
anti-semitismo".
Para compreender corretamente as idéias políticas de Nietzsche, é
necessário, portanto, purificá-lo de todos os desvios posteriores que foram
cometidos em seu nome. Nietzsche foi ao mesmo tempo um antidemocrático e um
antitotalitário. "A democracia é a forma histórica de decadência do
Estado", afirmou Nietzsche, entendendo por decadência tudo aquilo que
escraviza o pensamento, sobretudo um Estado que pensa em si em lugar de pensar
na cultura. Em Considerações Extemporâneas essa tese é reforçada:
"estamos sofrendo as conseqüências das doutrinas pregadas ultimamente por
todos os lados, segundo as quais o estado é o mais alto fim do homem, e, assim,
não há mais elevado fim do que servi-lo. Considero tal fato não um retrocesso
ao paganismo mas um retrocesso à estupidez". Por outro lado, Nietzsche não
aceitava as considerações de que a origem do Estado seja o contrato ou a
convenção; essas teorias seriam apenas "fantásticas"; para ele, ao
contrário, o Estado tem uma origem "terrível", sendo criação da
violência e da conquista e, como conseqüência, seus alicerces encontram-se na
máxima que diz: "o poder dá o primeiro direito e não há direito que
no fundo não seja arrogância, usurpação e violência".
O Estado, diz Nietzsche, está sempre interessado na formação de
cidadãos obedientes e tem, portanto, tendência a impedir o desenvolvimento da
cultura livre, tornando-a estática e estereotipada. Ao contrário disso, o
Estado deveria ser apenas um meio para a realização da cultura e para fazer
nascer o além-do-homem.
Assim Falou
Zaratustra
Em Ecce Homo, Nietzsche intitulou seus capítulos: "Por que
sou tão finalista?", "Por que sou tão sábio?", "Por que sou
tão inteligente?", "Por que escrevo livros tão bons?". Isso
levou muitos a considerarem sua obra como anormal e desqualificada pela
loucura. Essa opinião, no entanto, revela um superficial entendimento de seu
pensamento. Para entendê-lo corretamente, é necessário colocar-se dentro do
próprio núcleo de sua concepção da filosofia: Nietzsche inverteu o sentido
tradicional da filosofia, fazendo dela um discurso ao nível da patologia e
considerando a doença "um ponto de vista" sobre a saúde e vice-versa.
Para ele, nem a saúde, nem a doença são entidades; a fisiologia e a patologia
são uma única coisa; as oposições entre bem e mal, verdadeiro e falso, doença e
saúde são apenas jogos de superfície. Há uma continuidade, diz Nietzsche, entre
a doença e a saúde e a diferença entre as duas é apenas de grau, sendo a doença
um desvio interior à própria vida; assim, não há fato patológico.
A loucura não passa de uma máscara que esconde alguma coisa, esconde um
saber fatal e "demasiado certo". A técnica utilizada pelas classes
sacerdotais para a cura da loucura é a "meditação ascética", que
consiste em enfraquecer os instintos e expulsar as paixões; com isso, a vontade
de potência, a sensualidade e o livre florescimento do eu são considerados
"manifestações diabólicas". Mas, para Nietzsche, aniquilar as paixões
é uma "triste loucura", cuja decifração cabe à filosofia, pois é a
loucura que torna mais plano o caminho para as idéias novas, rompendo os
costumes e as superstições veneradas e constituindo uma verdadeira subversão
dos valores. Para Nietzsche, os homens do passado estiveram mais próximos da
idéia de que onde existe loucura há um grão de gênio e de sabedoria, alguma
coisa de divino: "Pela loucura os maiores feitos foram espalhados
foram espalhados pela Grécia". Em suma, aos "filósofos além de bem e
mal", aos emissários dos novos valores e da nova moral não resta outro
recurso, diz Nietzsche, a não ser o de proclamar as novas leis e quebrar o jugo
da moralidade, sob o travestimento da loucura. É dentro dessa perspectiva,
portanto, que se deve compreender a presença da loucura na obra de Nietzsche.
Sua crise final apenas marcou o momento em que a "doença" saiu de sua
obra e interrompeu seu prosseguimento. As últimos cartas de Nietzsche são o
testemunho desse momento extremo e, como tal, pertencem ao conjunto de sua obra
e de seu pensamento. A filosofia foi, para ele, a arte de deslocar as
perspectivas, da saúde à doença, e a loucura deveria cumprir a tarefa de fazer
a crítica escondida da decadência dos valores e aniquilamento: "Na
verdade, a doença pode ser útil a um homem ou a uma tarefa, ainda que para
outros signifique doença... Não fui um doente nem mesmo por ocasião da maior
enfermidade".
Fonte:
www.mundodosfilosofos.com.br