John Gray – Contagem regressiva
Celebrado como um dos grandes pensadores do século XXI,
o britânico John Gray causa mais impacto a cada obra publicada. A tese central
de seu mais recente trabalho, Cachorros de Palha, é a idéia de que a humanidade
se engana ao acreditar que ocupa um lugar de destaque no universo, que pode
controlar seu destino e algum dia será capaz de construir um mundo melhor. A
explicação para o título de seu livro está num poema do filósofo taoísta
Lao-Tsé sobre cachorros feitos de palha que eram reverenciados nos rituais
religiosos chineses e, após as cerimônias, eram incinerados. 'A raça humana
deverá ter o mesmo destino - será descartada quando não tiver mais utilidade
para o planeta', afirma. Segundo ele, a contagem regressiva para a humanidade
deixar a Terra já começou. E poderá estar zerada antes do próximo século.
Neoliberal que se entusiasmou com Margareth Thatcher e depois rompeu com sua
doutrina para apoiar o hoje primeiro-ministro Tony Blair - de quem agora é
crítico -, o escritor é um polemista que recusa a coerência fácil ou a
cristalização das próprias idéias. E não se acanha ao abandonar a defesa de
suas teses, se conclui que estão equivocadas ou ultrapassadas. Considerado
excepcionalmente lúcido por seus admiradores e um catastrofista por seus
críticos, John Gray concedeu a ÉPOCA a seguinte entrevista:
ÉPOCA - Por que senhor afirma
que o homem não é mais um habitante da Terra, mas um invasor do planeta?
John Gray - A espécie
humana expandiu-se a tal ponto que ameaça a existência dos outros seres.
Tornou-se uma praga que destrói e ameaça o equilíbrio do planeta. E a Terra
reagiu. O processo de eliminação da humanidade já está em curso e, a meu ver, é
inevitável. Vai se dar pela combinação do agravamento do efeito estufa com
desastres climáticos e a escassez de recursos. A boa notícia é que, livre do
homem, o planeta poderá se recuperar e seguir seu curso.
ÉPOCA - O senhor afirma que o
ser humano não é tão diferente dos demais animais, e tampouco superior. Mas o
desenvolvimento tecnológico, o avanço da ciência e da cultura não são provas de
uma superioridade?
Gray - Os seres humanos
diferem dos animais principalmente pela capacidade de acumular conhecimento.
Mas não são capazes de controlar seu destino nem de utilizar a sabedoria
acumulada para viver melhor. Nesses aspectos, somos como os demais seres.
Através dos séculos, o ser humano não foi capaz de evoluir em termos de ética
ou de uma lógica política. Não conseguiu eliminar seu instinto destruidor,
predatório. No século XVIII, o Iluminismo imaginou que seria possível uma
evolução através do conhecimento e da razão. Mas a alternância de períodos de
avanços com declínios prosseguiu inalterada. Regimes tirânicos se sucederam. A
história humana é como um ciclo que se repete, sem evoluir.
'' Duvido que os
grupos pacifistas e de defesa do meio ambiente consigam salvar o mundo. A
crescente demanda por combustível fóssil e a rápida industrialização da China
só agravam o problema ''
ÉPOCA - Pelo que se depreende de
suas teses, o senhor não duvida da noção de progresso, apenas acredita que o
homem é falho e incapaz de controlá-lo. É isso mesmo?
Gray - Não acredito que
haja avanços em ética e política. Temos momentos melhores e piores, mas em
geral a História humana é um ciclo intermitente de anarquia e tirania. Trazemos
em nosso DNA a inclinação para a autodestruição e somos incapazes de mudar.
Nesse sentido, não há progresso. A atual Guerra do Iraque mostra isso. Os
Estados Unidos não eram a nação mais desenvolvida do mundo? No entanto, não
puderam impedir a tortura de prisioneiros em Abu Graib. Se alcançamos estágios
avançados por um lado, a todo momento perdemos essas conquistas.
ÉPOCA - Há esperanças de que
esse quadro se modifique?
Gray - Pode haver
progressos em alguns lugares do mundo, em certos momentos. Mas não haverá uma
mudança efetiva, generalizada. Observe que mesmo as convenções de guerra
existentes não são respeitadas. Em termos de desafios ambientais, a situação
ainda é pior. As mudanças climáticas afetam o mundo inteiro, ameaçam toda a
civilização.
ÉPOCA - Não há nada a ser feito?
Gray - O que temos a
fazer é trabalhar com objetivos modestos, com expectativas mais baixas e
realistas. Não esperar pela salvação do planeta, mas buscar uma qualidade de
vida melhor, criar condições para retardar o declínio. Isso é possível.
ÉPOCA - O senhor não estaria
sendo muito cético levando-se em conta os movimentos de defesa do meio
ambiente, ações pacifistas e outros que tentam reveter esse quadro?
Gray - Duvido muito que
consigam. Sou descrente de que será feito algo realmente eficaz para combater o
aquecimento global. A demanda de combustível fóssil vem aumentando a um ritmo
de 1,9% ao ano. A rápida industrialização da China só agrava esse problema. Não
quero dizer com isso que não se deva fazer nada. Cada nação pode perfeitamente
contribuir de alguma forma. Mas os esforços ainda seriam tímidos e há poucas
razões para otimismo quanto a uma reversão radical do quadro.
ÉPOCA - E depois do homem, o que
ficará? Em seu livro, o senhor prevê que, antes de desaparecer, a humanidade
terá dado fim a muitas outras espécies, e também afirma que as máquinas vão
continuar a existir, sendo capazes de tomar decisões.
Gray - Não acredito que a
inteligência artificial chegará a ser mais avançada que a humana, nem que os
robôs e as máquinas sucedam aos seres humanos no sentido evolutivo, ou cheguem
ao ponto de se tornar uma ameaça a nossa espécie. Isso pertence mais ao terreno
da ficção científica. Mas vislumbro que serão capazes de executar a maior parte
das tarefas humanas, e reparar-se mutuamente em caso de falhas. As máquinas
poderão continuar quando o homem não estiver mais aqui. Tudo isso, é claro, vai
depender da disponibilidade de energia de então.
ÉPOCA - Em que o senhor se
baseia para dizer que o homem não possui livre-arbítrio?
Gray - Não temos controle
sobre nosso destino. Nem sequer somos co-autores de nossas vidas. Chegamos ao
mundo sem escolher nossos pais, nosso lugar, a língua que vamos falar. O que
fazemos é improvisar diante da realidade que encontramos.
ÉPOCA - Por que o senhor afirma
que as idéias cristãs causaram grandes prejuízos à humanidade?
Gray - Minha maior
crítica ao cristianismo é sua tentativa de salvar toda a humanidade. O Islã
também se coloca numa missão salvacionista, e por isso traz consigo tantos
desastres. Não sou contra as religiões, e até acredito que os piores regimes
foram os de base ateísta, como os de Stlálin e Mao Tse-tung. O cristianismo é
em grande medida benigno e devemos muito a ele. Mas é preciso buscar um certo
grau de ceticismo, ter cautela para não buscar verdades absolutas. Desconfiar.
O colapso do comunismo foi algo positivo, pois essa ideologia também havia se
tornado uma crença. Em contrapartida liberou forças muito perigosas baseadas em
religião. Acredito que as filosofias orientais, como o taoísmo, são mais benéficas
ao ser humano, porque têm objetivos mais modestos, nada expansionistas.
ÉPOCA - Parte do mundo islâmico
vive tempos de radicalismo, e a Igreja Católica dá uma guinada conservadora
para afirmar seus valores. É uma volta ao fundamentalismo?
Gray - Hoje quase não
temos mais movimentos revolucionários. Eles estão restritos ao Nepal e a um
ponto ou outro do planeta. O comunismo e o fascismo também entraram em
extinção. Mas estão voltando outras formas de fundamentalismo - étnico,
religioso, nacionalista -, que haviam desaparecido. Os Estados Unidos vivem uma
onda fundamentalista, parte religiosa, parte política. O nacionalismo na Europa
está muito intenso. Todos os tipos são temerários, porque alimentam conflitos e
impedem seres humanos de viver juntos.
ÉPOCA - Depois da Guerra Fria, o
mundo pôde se tornar mais pluralista. Essa diversidade poderia contribuir para
evitar uma tensão mundial como a daquele período?
Gray - A história da
humanidade é uma sucessão de embates, e é ridículo pensar que a causa desses
conflitos é o choque entre civilizações diferentes que não se entendem apenas
por motivos ideológicos. As guerras sempre foram motivadas por outros fatores,
como a busca por recursos. A Guerra do Iraque foi iniciada com o pretexto de
ali estar se formando um Estado fascista. Falácia. Se hoje assistimos à
contenda entre as nações islâmicas e o resto do mundo, isso se deve à crescente
demanda por petróleo barato. As nações ricas precisam de uma quantidade cada
vez maior de combustível, o que gera essa tensão. Mas o pior ainda pode ser
evitado.
ÉPOCA - De que maneira?
Gray - Retirar as tropas
do Iraque seria um grande passo. Mas as políticas energéticas são a fonte
alimentadora do terror. Seria importante que as nações se tornassem menos
dependentes de petróleo. Isso aliviaria as tensões entre o Ocidente e o mundo
islâmico.
ÉPOCA - O modelo
intervencionista da política americana se esgotou?
Gray - É evidente que
Bush fracassou. Seu desafio agora é como sair dessa situação sem grandes
prejuízos. A guerra teve um custo muito alto e seus efeitos serão sentidos por
décadas. Em 20 ou 30 anos, a influência dos EUA sobre o mundo será bem mais
limitada. Os americanos terão de ser mais cautelosos e vão depender ainda mais
da ajuda de outras nações.
ÉPOCA - O senhor criou polêmica
entre seus pares ao defender aspectos do regime de Fidel Castro.
Gray - Ele já teve pontos
positivos. Nunca foi benéfico no que se refere às liberdades individuais. No
entanto, obteve avanços ao reduzir as taxas de mortalidade e implantar um
eficiente sistema de saúde. Mas mesmo esses benefícios se perderam. Agora, o
regime cubano caminha para o colapso total, o que provavelmente ocorrerá com a
morte de Fidel.
ÉPOCA - Que regime político seria ideal para
responder às questões que se colocam no momento à maioria das nações
ocidentais?
Gray - Não devemos
procurar por um único sistema ideal. Ainda temos no mundo regimes péssimos,
como o da Coréia do Norte, por exemplo. A democracia representativa geralmente
é citada como a mais benéfica, mas também está sujeita a erros e não é uma
garantia de respeito ao estado de direito, como o governo Bush demonstrou.
Temos de utilizar um conjunto de experiências, tentar agregar aos regimes
democráticos existentes mais garantias às liberdades individuais, mais
mecanismos de vigilância e controle da administração pública, assistência
social eficiente e proteção do cidadão pelo Estado.
ÉPOCA - O senhor já foi um
apoiador do modelo liberal e hoje advoga fortes mecanismos de controle para o
que chama de fundamentalismo do mercado...
Gray - Sim, mas nunca fui
um fundamentalista do mercado. Os modelos econômicos e os projetos políticos
precisam estar em permanente mutação. Não podemos nos agarrar a uma crença e
ficar presos a ela para sempre. Os desafios mudam. Entre os riscos do mundo
atual, por exemplo, está o de termos Estados fracos. E cada vez mais acredito
que um Estado fraco é um mau Estado.
ÉPOCA - Tendo por base os
dilemas contemporâneos, como vê o mundo daqui a 20, 30 anos? Quais serão as
questões em pauta?
Gray - difícil dizer. O
terrorismo e o crime organizado já são problemas agudos hoje. Parece evidente
que as questões ambientais vão se aprofundar, e que a explosão populacional vai
se agravar. Teremos 1,2 bilhão de habitantes a mais no planeta em 2050. Mas
tentar prever o futuro é algo traiçoeiro. Há fatores imponderáveis. Quem
poderia imaginar, 20 anos antes, que o comunismo entraria em colapso no fim da
década de 80? O importante é entendermos as questões contemporâneas e tratarmos
delas adequadamente. Woody Allen disse certa vez que "fazer previsões é
muito difícil, especialmente sobre o futuro". Eu digo que fazer previsões
é fácil, entender o presente é bem mais complicado.
ÉPOCA - Seus críticos afirmam
que o senhor se expressa por meio de afirmações apocalípticas e que suas teses
pecam por um catastrofismo que não leva a conclusão alguma.
Gray - Não sou um
missionário, um neocristão, um neoliberal, um neocomunista. Não tenho crenças a
defender nem trago uma doutrina, um manual de salvação para determinado grupo.
Eu só estou interessado em estimular as pessoas a pensar, levando a elas
subsídios que lhes sirvam de alertas. Há questões desagradáveis a ser encaradas
e meu intuito é ajudá-las nesse processo.
ÉPOCA - Alguma palavra de alento
sobre o destino da humanidade?
Gray - Essa não é minha
área (risos). Recomendo que as pessoas busquem a religião para isso.
www.revistaepoca.com.br , 26/12/2005, Luiz Octávio de Lima.