domingo, 3 de junho de 2012

Nietzsche - Como a cena trágica pode nos proporcionar a alegria?

Nietzsche ao desenvolver a sua perspectiva sobre a finalidade da Tragédia, em O nascimento da Tragédia, se encontrava sob a marcante influência da Filosofia de Schopenhauer. De fato, Nietzsche interpreta o âmago da tragédia grega através dos conceitos schopenhauerianos de Representação e Vontade, transformados respectivamente, na sua perspectiva, em dois princípios naturais: o apolíneo, associado ao caráter de harmonia da beleza, da moderação e do autoconhecimento, conforme as inscrições inseridas no pórtico do Templo de Delfos, que sintetizavam a visão de mundo apolínea, “nada em excesso” e “conhece-te a ti mesmo”; e o dionisíaco, que, por sua vez, estava associado à desmedida, ao caos e ao informe (NIETZSCHE, O nascimento da Tragédia, § 1). Esses impulsos, originariamente antagônicos entre si, finalmente se conciliaram, ocorrendo então a milagrosa interação entre as duas expressões vitais (NIETZSCHE, O nascimento da Tragédia, § 2). A partir desse acordo divino, cada princípio receberia uma mútua influência, para que seus caracteres mais radicais fossem modelados: o dionisíaco, naturalmente desmedido, enquadrou-se na forma de expressão do apolíneo; este, por sua vez, adquiriu a mobilidade dionisíaca, posto que a sua rigidez poderia conduzir também a vida ao completo declínio (NIETZSCHE, O nascimento da Tragédia, § 9).
A partir dessa interação, Nietzsche considera que se viabilizou o desenvolvimento da tragédia grega, pois o apolíneo e o dionisíaco se transformaram em impulsos notadamente estéticos. No espetáculo trágico, os caracteres apolíneos estavam presentes na encenação, na poesia declamada e no herói representado no palco; os caracteres dionisíacos, por sua vez, pela música e pela vitalidade primordial que se manifestava no herói, considerado, na verdade, uma máscara dionisíaca (NIETZSCHE, O nascimento da Tragédia, § 10).

Nietzsche considera que a Tragédia incentivaria o espectador a afirmar a vida incondicionalmente, mesmo nas condições mais adversas

Para Nietzsche, a cena trágica demonstrava o padecimento originário de Dionísio, através da sua dolorosa individuação na multiplicidade dos seres. Essa dor primordial, no entanto, seria um convite para o retorno do indivíduo ao estado de pulsão originária presente na grande unidade da natureza, o seio constituinte de toda a existência. Segundo Nietzsche: “O deus fragmentado, transformado em ar, água, terra e fogo, representa o tormento da individuação, do qual ele cria, com seu sorriso, os deuses olímpicos, e com suas lágrimas, a vida humana. Dionísio, produto do divino casamento entre o céu e a terra, é ao mesmo tempo governador clemente e homem feroz, trazendo consigo a promessa do próprio renascimento, que reunirá o mundo e acabará com a dolorosa existência limitada pela individuação” (NIETZSCHE. O nascimento da Tragédia, § 10).
Nietzsche considera que a Tragédia, ao demonstrar o inexorável caráter de transformação existente no mundo e a fugacidade inerente a todas as coisas, ao invés de propor ao homem a resignação moral e a renúncia ao agir, tal como considerava Schopenhauer (em O Mundo como Vontade e Representação, § 51), na verdade incentivaria o espectador a afirmar a vida incondicionalmente mesmo nas condições mais adversas. Podemos dizer que essa tese nietzschiana demonstra uma grande inovação entre as diversas teorias elaboradas sobre a finalidade da Tragédia, pois, enquanto em outras perspectivas se considerava a cena trágica como um recurso purificador das paixões humanas, tal como Aristóteles defendeu na sua Poética (1449b-27), ou um entorpecente do ânimo como passo para a negação da vontade, conforme defendido por Schopenhauer, Nietzsche propõe uma visão ética da Tragédia. Tal possibilidade de interpretação decorre da compreensão do fluxo do devir do mundo como desprovido de qualquer valoração moral. Enquanto Schopenhauer defende a tese de que na cena trágica o herói expia inapelavelmente o pecado de existir, refletindo a máxima de Calderón de la Barca, o qual, no seu drama metafísico A Vida é Sonho, dizia que o “maior delito do homem é ter nascido”, Nietzsche, numa perspectiva diametralmente oposta, afirma que o declínio do herói demonstra a eternidade da vida, a sua mais bela promessa. O caráter afirmativo da tragédia grega residia na possibilidade de se diluir o pessimismo prático de Sileno diante da efemeridade da vida humana, de que o melhor para o homem seria não ter nascido, e sendo inevitável tal erro, que ele então morra logo (NIETZSCHE, O nascimento da Tragédia, § 3).

O “consolo metafísico” é um conceito em Nietzsche que parece demonstrar uma fuga individual para uma dimensão supra-sensível; porém, representa uma afirmação ética da vida, mediante a certeza de que a vida como um todo se perpetua continuamente na natureza, ainda que a individualidade se dissolva pela morte. Oo grego, na visão nietzschiana, se consolaria, não de forma resignada, aceitando a finitude, mas pela certeza de que a sua vida se transfigurará na natureza. De certa forma, pode ser entendido de uma forma religiosa, mas na concepção religiosa da imanência. Não postula a elevação espiritual do indivíduo para uma esfera supra-sensível, mas o associa imediatamente ao mundo em que vivemos.

Ora, se o herói padece na cena trágica, como essa tese pode ser defendida? Para Nietzsche, aquele que tomba é o indivíduo enquanto expressão da potência dionisíaca, e não a vida considerada em si mesma. Dessa maneira, aquilo que morre é apenas o fenômeno individual, e não a pujança natural constituinte de todas as coisas. De acordo com Nietzsche, essa compreensão trágica retiraria das disposições de ânimo do espectador o “pessimismo prático” diante da existência, pois a Tragédia revelaria a presença da vida nos mais diversos modos de expressão. A morte, nessa concepção, é considerada como uma mera ilusão da individuação, pois as forças constituintes do herói, quando este é aniquilado, retornariam ao seio da natureza, de maneira que ela própria se encarregasse de constituir novas configurações de forças. Essa vitalidade engendradora da natureza, segundo Nietzsche, encontra-se em Dionísio, a divindade que constitui os seres vivos a partir de seu próprio seio (NIETZSCHE, O nascimento da Tragédia, § 10).
Nessas condições, podemos perceber nesta interpretação de Nietzsche acerca do fundamento da Tragédia um viés ontológico e ético, pois ela revelaria ao espectador a essência do mundo na sua totalidade criadora. A vida, ainda que efêmera, é considerada absolutamente digna de ser vivida, de maneira que essa idéia fundamental despertaria no espectador um profundo apreço pela existência, dissolvendo o desgosto decorrente da compreensão da temporalidade da existência. Na visão de Nietzsche, o sofrimento primordial do homem demonstrado na cena trágica, longe de ser um evento triste, capaz de levá-lo a vislumbrar o seu completo distanciamento do mundo, seria um tonificante da existência, despertando no seu espírito o nobre sentimento de alegria diante do jogo de forças da vida (NIETZSCHE, O nascimento da Tragédia, § 7). Nessa concepção preconizada pelo filósofo, é importante destacarmos o elemento que permitiria ao espectador desenvolver uma compreensão da vida pautada na afirmação trágica da existência, de maneira que ele pudesse sentir um autêntico prazer diante da demonstração do caos e do aniquilamento do herói frente à força invencível do acaso da natureza. Trata-se da idéia do consolo metafísico, uma espécie de sabedoria de mundo que demonstraria ao espectador trágico que a existência, apesar das suas múltiplas transformações, permanece incólume, pois a força geradora da vida não é de forma alguma destruída. Para Nietzsche: “O consolo metafísico — com o que, como já indiquei aqui, toda a verdadeira tragédia nos deixa — de que a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a mudança das aparências fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria, esse consolo aparece com nitidez corpórea como coro satírico, como coro de seres naturais, que vivem, por assim dizer, indestrutíveis, por trás de toda civilização, e que, a despeito de toda mudança de gerações e das vicissitudes da historia dos povos, permanecem sempre os mesmos” (NIETZSCHE, O nascimento da Tragédia, § 7).

Seqüestro de Eloá: tragédias atuais versus o drama grego
O seqüestro da menina Eloá, que aconteceu em Santo André, região metropolitana de São Paulo, cujo desenlace foi o assassinato dela por seu ex-namorado, é exemplo de raiva, ódio e um violento ímpeto de ressentimento, mas não demonstra qualquer vínculo com a dimensão trágica do drama grego da Antiguidade. Oo drama grego utilizava como foco o choque de um herói diante de uma força que lhe era superior, fosse a autoridade dos deuses ou o destino. O herói sucumbia diante desse poder, mas, segundo a concepção nietzschiana, não por causa de uma culpa moral, ou por uma necessidade de expiar alguma falta cometida contra a ordem cósmica, mas sim para demonstrar a fragilidade da individuação diante da totalidade da natureza e da necessidade primordial dessa re-assimilação ao seu seio, possibilitando assim a continuidade da vida como um todo, apesar da dissolução pessoal. Um aspecto de suma importância, que rechaça qualquer vínculo simbólico entre a Tragédia grega e o fato ocorrido, é que na primeira não havia, na dimensão estética, qualquer idéia de personagens moralmente bons ou maus; mais ainda, seus feitos jamais eram motivados pela erupção de disposições virulentas, como o ressentimento, segundo Nietzsche uma espécie de veneno psíquico do homem decadente. Alguns heróis demonstravam sentimentos odiosos perante os deuses ou outros personagens, mas era um ódio que se adornava pela beleza do discurso e da música que acompanhava a fala do personagem.
Já no lamentável fato ocorrido, a motivação dos acontecimentos decorria da incapacidade do criminoso lidar com o término de um relacionamento, experiência afetiva mal-assimilada por seu psiquismo. Vale ressaltar que na obra de Eurípides — justamente tão criticado por Nietzsche pelo fato de introduzir nas suas peças elementos excessivamente racionais — encontramos também uma personagem passional, capaz de realizar as ações mais violentas para dar cabo aos seus objetivos, Medéia, que, abandonada por Jasão, realizava uma terrível vingança contra o herói, assassinando os seus próprios filhos, faz sucumbir também, através de artifícios astuciosos, aquela que seria a nova esposa do herói, Glauce, e Creonte, pai desta.
Aidéia de trágico tal como utilizamos atualmente na nossa linguagem é distinta do modelo grego de afirmação incondicional da vida, pois chamamos de acontecimento trágico algo monstruoso, horrível de ser dito e pronunciado. Oo caso da morte de Eloá, todavia, é um exemplo doloroso do modo como a sociedade contemporânea não consegue lidar com as suas pulsões e desapontamentos, decorrendo de tal impotência o ressentimento, as neuroses, que continuamente se manifestam de forma violenta na vida cotidiana e, por conta disso, não pode ficar esquecido na memória coletiva. Infelizmente, esse tipo de acontecimento lamentável ocorrerá ainda muitas vezes, enquanto a virulência do ressentimento impedir a assimilação das experiências afetivas que terminam de maneira insatisfatória. Não se trata apenas de uma questão de educação, mas de um aprendizado existencial, adquirido através da idéia de que a felicidade não depende apenas do usufruto de coisas externas, mas de um contentamento íntimo mediante o próprio fato de viver e continuar. Toda grande cena de ciúme, amplificada no caso Eloá, decorre dessa dependência individual de se obter a felicidade através da posse do outro, como se este se tornasse uma coisa, e não uma pessoa singular, dotada de características próprias, que necessariamente não devem coadunar com as qualidades do amante. Esse tipo de disposição reativa, portanto, decorre da projeção simbólica que o amante faz em relação ao parceiro amoroso, como se a felicidade pessoal dependesse do seu usufruto, quando, na verdade, a felicidade autêntica, imanente, brota do íntimo para o exterior.

O filósofo defende a idéia de que a compreensão trágica da vida decorrente do consolo metafísico fazia o homem grego se libertar do seu olhar paralisado diante do devir do mundo, desenvolvendo então uma força interna capaz de estimular a sua ação e, consequentemente, a continuidade sadia da vida. O coro báquico, ao cantar o sagrado louvor ao existir, afirmava o espírito criativo da transformação contínua da natureza. Como Nietzsche salienta: “É nesse coro que se reconforta o heleno com o seu profundo sentido das coisas, tão singularmente apto ao mais terno e ao mais pesado sofrimento, ele que mirou com olhar cortante bem no meio da terrível ação destrutiva da assim chamada história universal, assim como da crueldade da natureza, e que corre o perigo de ansiar por uma negação budista do querer. Ele é salvo pela arte, e através da arte salva-se nele — a vida.” (NIETZSCHE, O nascimento da Tragédia, § 7)
Devemos ressaltar que, posteriormente, mais precisamente na Gaia Ciência, Nietzsche modificaria o seu enfoque sobre o fundamento da Tragédia, mantendo, todavia, o mesmo fio condutor na consideração do efeito despertado pela cena trágica nas disposições afetivas do espectador. No aforismo 80 da citada obra, o filósofo pretende refutar a célebre teoria aristotélica da cena trágica como catarse para as paixões ruins da alma (temor e piedade). Na sua concepção, o grego não comparecia ao espetáculo trágico visando se purificar desses citados afetos, mas sim, para ouvir belos discursos, para que pudesse conquistar o prazer estético diante do drama apresentado, resultando então no despertar do poderoso sentimento de alegria diante da manifestação do sofrimento do herói. Nessa concepção, Nietzsche considera que a cena trágica, ainda que marcada pela aspereza da dor do protagonista, proporciona satisfação ao espectador, pois o ator, ao representar o herói, transforma aquilo que, na circunstância comum, daria ensejo para o grito, ou seja, a dor, numa coisa aprazível para o gosto, o belo canto. De acordo com Nietzsche, ocorreria, nesse fenômeno estético, a transmutação do grotesco, decorrente do grito pungente, para uma expressão de surpreendente beleza, arrebatadora. Afinal, a atitude natural do homem, diante uma experiência dolorosa, seria a de gritar, extravasando assim os efeitos ruins dessa impressão. Contudo, o âmbito do teatro é distinto da vida cotidiana.

Os heróis e a tragédia
Sobre os heróis, Nietzsche se refere em O Nascimento da Tragédia a Prometeu (do Prometeu Acorrentado, de Ésquilo), e Édipo (Édipo Rei), considerando-os como avatares de Dionísio que, sendo uma potência natural desmedida, não pode ser representada imageticamente, dependendo então da configuração corporal do herói trágico para que pudesse se manifestar. Nietzsche diz que os tormentos de Prometeu e Édipo, na verdade, representam o tormento cósmico de Dionísio, quando fora dilacerado pelos Titãs. O herói trágico então refaz esse percurso doloroso de Dionísio, mas, ao invés da representação dessa dor servir de meio de comoção no público ou de estímulo de renúncia ao agir, demonstrando a ausência de sentido da vida, ela seria um tônico para os espectadores, justamente a partir da certeza de que apenas a individualidade sucumbe diante da aniquilação, mas a vida como um todo se perpetua. Na leitura nietzschiana sobre a cultura grega, os heróis (Prometeu, Aquiles, Odisseu) se filiam ao princípio apolíneo de beleza, afirmação da glória e da coragem, representando o ideal de nobreza dessa cultura. Só que na tragédia grega os heróis seriam não mais meramente apolíneos, mas transfigurados pela vitalidade dionisíaca.
Nietzsche considera que a tragédia, ao demonstrar o inexorável caráter de transformação existente no mundo e a fugacidade inerente a todas as coisas, ao invés de propor ao homem a resignação moral e a renúncia ao agir, tal como considerava Schopenhauer (em O Mundo como Vontade e Representação, § 51), na verdade, incentivaria o espectador a afirmar a vida incondicionalmente, mesmo nas condições mais adversas.

Não cabe ao espetáculo dramático representar fielmente a crueza da vida, mas sim a superação das adversidades da vida pela inefável beleza da arte.

Não cabe ao espetáculo dramático representar a crueza da vida, mas sim a superação das adversidades da vida pela inefável beleza da arte

Para Nietzsche, a Tragédia grega, considerada na sua dimensão retórica, também concedia uma poderosa alegria ao público, pois este via nitidamente o triunfo da potência e da superação dos limites do herói diante de forças descomunais. O valoroso personagem da Tragédia transformava os seus afetos dolorosos em musicalidade das palavras, em canto, fato este que exercia no espectador uma intensificação de sua capacidade de agir, decorrente justamente da compreensão da idéia de que ele, um homem comum, também poderia superar as suas limitações pessoais diante das situações problemáticas. Mais ainda, o uso das belas palavras, mesmo no momento crucial da dor, impedia a manifestação das gesticulações faciais distorcidas, que retiram a aura harmoniosa da obra de arte, a sua beleza manifestada. Inclusive, devemos ressaltar que decorria desse fator o uso das máscaras na Tragédia grega, para que a atenção do espectador ficasse direcionada principalmente para o canto, sem se desviar para outros focos, considerados secundários. Esse apego ao belo concedia ao espectador, segundo Nietzsche, uma poderosa alegria, pois era demonstrado o poder transformador da tristeza e da dor em uma experiência estética envolvente, capaz de elevar as disposições de ânimo do homem.
Dissertar sobre a finalidade da Tragédia e o efeito da cena trágica no espírito humano é certamente uma questão envolvente, sobretudo quando compreendemos que o drama trágico foi elemento essencial para o desenvolvimento da cultura grega da Antigüidade. A interpretação de Nietzsche acerca da Tragédia é interessante pelo fato de que, apesar de todo o sofrimento exibido ao espectador, tal sentimento não atuaria como um recurso purificador das paixões imputadas como ruins, tampouco o recolhimento, mas sim como um estímulo para a ação, mediante a superação dos obstáculos decorrentes do jogo do acaso. Na perspectiva de Nietzsche, a exibição da eternidade da vida diante das modificações individuais, ou a transformação do afeto de dor em fenômeno estético aprazível, possibilitaria a afirmação trágica da vida, pois o homem passaria a compreender que prazer e dor estão associados intimamente, e que a vida considerada como um todo se encontraria para além de bem e mal.
  
“A maior tragédia para o homem é saber que tem de morrer. Mas a sua maior grandeza é justamente ter consciência. Assim a sua maior grande é a sua maior tragédia” (Vergílio Ferreira).


 Fonte: Revista Filosofia, Renato Nunes Bittenco.