domingo, 3 de junho de 2012

Da interrogação socrática à fundamentação da ciência em Aristóteles.


Quando buscamos os fundamentos da filosofia ocidental, três filósofos ocupam o lugar mais elevado: Sócrates, Platão e Aristóteles. Dificilmente poderíamos estabelecer alguma hierarquia de valor entre eles, afirmar qual deles é maior ou teve maior relevância para nós. O que parece claro é que, tendo vivido em épocas bastante próximas, cada qual galgou degraus a partir do caminho aberto pelo anterior. Assim, Sócrates teria sido um precursor, apontando paisagens até então desconhecidas no horizonte filosófico. Platão, considerado seu discípulo, bem viu as indicações do mestre e foi além. Aristóteles, aluno por mais de vinte anos na escola fundada por Platão, a Academia, afasta-se do mestre e trilha seus próprios caminhos. Não há como mostrar em poucas linhas todos os pontos centrais nestes filósofos, e menos ainda precisar as diferenças entre eles. No entanto, é possível, se escolhermos um ponto de vista determinado, observar as diferenças de enfoque propostas por cada um deles. Aqui, vamos observar como cada um se aproximou daquilo que talvez seja o centro da Filosofia: o conhecimento. Vamos ver de que modo cada filósofo procura dar conta da possibilidade de ciência (epistéme).
A figura emblemática da Filosofia é, sem dúvida, Sócrates. Torna-se o signo marcante da divisão do mundo filosófico em eras: pré e pós Sócrates. Antes dele não havia, então, Filosofia? Sem dúvida que sim. Tudo parece ter começado com Tales, tido como um dos sete sábios da Grécia. Vieram outros tantos: Anaximandro, Heráclito, Parmênides, Empédocles, Anaxágoras... E, contudo, Sócrates é o grande marco: seus precursores ganharam o rótulo de pré-socráticos, e o mundo ocidental nunca mais seria o mesmo depois de sua vinda. Mas que teria ele feito para ganhar tamanho destaque? Quem foi, afinal, Sócrates?
Dizer quem foi exatamente Sócrates talvez não seja possível. Estima-se que tenha nascido por volta de 470 a.C. e morrido em 399 a.C., condenado à morte pelos juízes de Atenas, mas como não deixou obras escritas, tudo que sabemos a seu respeito tem origem nos trabalhos de outros. Como fontes principais, temos as “apologias de Sócrates”, um gênero literário bastante em voga na época, escritas por admiradores e seguidores de Sócrates. Há, porém, um importante comediógrafo contemporâneo de Sócrates, Aristófanes, que nos deixou em sua peça As nuvens um retrato bastante irônico de Sócrates, onde este é apresentado de maneira ridícula e é equiparado aos sofistas. Sócrates é figura controversa em Atenas: amado por uns, por discípulos e amigos fiéis que o seguem até a morte, mas odiado por muitos, a tal ponto de ser condenado à morte.
Comecemos pelo Sócrates que aparece em As nuvens, comédia apresentada em 423 a.C., mais de 20 anos antes de sua morte. O Sócrates apresentado ali é um físico, voltado a indagações sobre a natureza, como, por exemplo, quantas vezes uma pulga salta o tamanho de seus próprios pés. E é também um sofista, alguém que ensina a transformar um discurso fraco em forte, de modo a ganhar qualquer causa num tribunal, ou seja, alguém muito pouco preocupado com a verdade e a justiça. Nada tão distante do Sócrates oferecido por Platão, inimigo dos sofistas e amante da verdade! Entretanto, talvez haja aí algo historicamente plausível, pois uma boa comédia deveria ter, dentro dos padrões da poesia grega, uma certa verossimilhança. Os gregos, afinal, não tinham a nossa noção de ficção, mas operavam com o conceito de mímesis, de imitação. O que talvez possamos supor é que, ao menos para os olhos do povo, Sócrates era um filósofo da natureza, tal qual seus antecessores “pré-socráticos” e, além disso, era tido como um sofista, um homem empenhado nos debates.

Aristóteles herda de Platão o anseio por satisfazer a noção de epistéme, que deve tratar sempre de conteúdos imutáveis de conhecimento. Mas afasta-se do mestre ao rejeitar a existência de idéias ou formas apartadas da matéria, existentes por si. É impossível aceitar que as formas tenham existência separada da coisa, se elas são a ousía (isto é, essência) das coisas, acredita Aristóteles

Se levarmos isso em conta, fica mais fácil entender o processo e o julgamento de Sócrates. Vejamos como se passam as coisas na obra de Platão, a Apologia de Sócrates. Quem se encarrega da defesa é o próprio Sócrates, apresentando-se não como um grande orador, mas como alguém que diz o justo, o verdadeiro. Ao caracterizar seus adversários, reconhece dois tipos: os mais antigos – numa clara alusão a Aristófanes – e os mais jovens. Seus primeiros adversários seriam, assim, todos aqueles que compactuam com uma mentalidade profundamente arraigada na cidade, para quem Sócrates seria acusado de “investigar indevidamente o que se passa embaixo da terra e no céu, deixar bons os argumentos ruins, e induzir os outros a fazerem o mesmo”. Ora, nada mais falso, alega Sócrates, afirmando não ter jamais procurado ensinar alguém, nem ter recebido dinheiro em pagamento – ao contrário dos sofistas, que cobram para ensinar. Por que, então, as calúnias? Aqui vem o trecho mais famoso, e por onde Sócrates tornou- se imortal: se os sofistas são grandes sábios, portadores de um conhecimento sobre-humano, Sócrates nada mais é que homem, mas, dentre estes, é portador da mais alta sabedoria, da única propriamente humana. Que sabedoria é esta?
Sócrates conta que seu amigo de infância Querefonte consultou certa vez o oráculo de Delfos para saber se haveria alguém mais sábio do que Sócrates. Não há, é a resposta da divindade. Ora, Sócrates não podia atinar com o significado destas palavras, pois não se considerava sábio. No entanto, não é da natureza divina mentir; que significaria, então? Começou a buscar incessantemente um homem que fosse considerado sábio. Primeiro interrogou um político, mas percebeu que este se considerava sábio sem, de fato, sê-lo. Procurou demonstrar ao seu interlocutor que ele não era realmente sábio, mas foi em vão, o homem mantinha- se seguro de sua sabedoria. Tudo que Sócrates obteve foi o ódio por parte desse político. Tirou, porém, para si, um resultado: percebeu ser mais sábio que o homem, pois, se aquele acreditava saber, ele ao menos, sabia não saber.
E assim foi repetindo o processo com outros políticos, depois com outros homens considerados sábios pela cidade, os poetas. Percebeu que não era por possuírem sabedoria que faziam seus poemas, mas por inspiração; tal como os adivinhos, dizem coisas belas, mas não sabem o que dizem. Passou, então, para a classe dos artesãos, que ao menos tinham um conhecimento sobre sua arte. Estes, porém, assim como os anteriores, julgavam que, por terem conhecimento acerca de sua profissão, também saberiam sobre outros assuntos. Todos, enfim, julgavamse sábios e não reconheciam não saber. Ora, o que é preferível: saber que nada sabe ou enganar-se achando saber aquilo que não sabe? Sócrates opta por sua sabedoria e reconhece-se sábio: sabe que não sabe. Põe-se, a partir daí, numa verdadeira missão a serviço da divindade. É sua tarefa examinar qualquer pessoa que pareça sábia e mostrar-lhe sua ignorância. Eis como Sócrates angariou o ódio da cidade em geral e preparou o caminho para sua execução.

A ciência deve procurar reconhecer a “qüididade”, isto é, a definição de todos os seres, investigar o que faz com que “um isto” seja isto e não aquilo.

A Apologia de Sócrates não termina aqui. Sua defesa continua, agora, dirigindo- se aos mais jovens, que o acusaram de corromper os moços e de não acreditar nos deuses da cidade. Sócrates não se arrepende de seus atos e explica por quê. Sempre praticou a justiça, apesar dos perigos de morte que corria, pois seus inimigos certamente acabariam por levá-lo a um processo fatal. Um homem não deve pesar as possibilidades de vida ou de morte, mas pesar se age com justiça ou não. Quanto à morte, não temos elementos para decidir se será um bem ou um mal. Só nos cabe julgar nossos próprios atos. “Temer a morte é o mesmo que supor-se sábio quem não o é, porque é supor que sabe o que não sabe. Ninguém sabe o que é a morte, nem se, porventura, será para o homem o maior dos bens; todos a temem, como se soubessem ser ela o maior dos males.(...) Sei, porém, que é mau e vergonhoso praticar o mal, desobedecer a um melhor do que eu, seja deus, seja homem; por isso, na alternativa com males que conheço como tais, jamais fugirei de medo do que não sei se será um bem. (29a)”. É essa integridade de Sócrates que acabará por condená-lo à morte. Não pode aceitar uma absolvição que exija o abandono de sua tarefa. Não poderá viver se não for perambulando pela cidade, fazendo perguntas e persuadindo todos a se preocupar não com as riquezas, mas com o aperfeiçoamento da alma. Sua condenação é um mal, não para ele, mas para a cidade, ingrata com uma dádiva da divindade.

Para Aristóteles, há formas universais existentes nas coisas. Com o pensamento fazemos generalizações e apreendemos algo universal nos vários objetos corporais.

Mas a fama de Sócrates não vem apenas da lendária frase “Só sei que nada sei”. Ele é também a principal personagem da maioria dos diálogos de Platão. Em sua juventude, Platão escreveu vários diálogos que apresentam este Sócrates interrogador. Conversando com as mais variadas figuras de Atenas, ora um general, ora um sofista, ora um poeta, Sócrates vai sempre interrogando, buscando responder à pergunta socrática: “O que é?”, por exemplo, no Hípias maior, pergunta a um sofista o que é a beleza, ou melhor, o que é o próprio belo, o belo em si. O que Sócrates busca é o belo pelo qual as coisas belas são belas. Seu interlocutor, porém, incapaz de compreender a pergunta, responde sempre mostrando coisas belas: o belo é uma linda jovem, o belo é o ouro, o belo é uma vida feliz. O mesmo acontece em outro diálogo, o Laques, em que um general é incapaz de responder o que é a coragem, não percebe o que é que, estando em todos os atos corajosos, é o mesmo. Também no Protágoras, novamente o interlocutor é incapaz de dizer o que é a virtude, ou no Eutífrão, um sacerdote é incapaz de responder o que é a piedade. Todos os diálogos socráticos são aporéticos. Não há resposta, não chegamos ao que seja a virtude, a piedade, a beleza ou a coragem. De algum modo, ainda que possam trazer consigo uma doutrina não de Sócrates, mas platônica, os diálogos socráticos preservam um pouco da imagem histórica de Sócrates, um homem sempre interrogando, sempre mostrando aos interlocutores que estes no fundo não sabem. Um homem que também não sabe, mas sabe que não sabe, e por isso pergunta.


Qual é então sua filosofia? O que é que prega o Sócrates dos diálogos de juventude de Platão? Não se trata de uma filosofia positiva, mas de uma exigência. Sócrates exige que seu interlocutor encontre um certo caráter genérico capaz de explicar a multiplicidade de exemplares. É preciso encontrar, por exemplo, o caráter genérico comum a todos os atos piedosos, e mais, esse caráter genérico deve explicar por que os atos piedosos são piedosos. É preciso encontrar a própria piedade, o próprio belo, etc. Seus interlocutores têm muita dificuldade para compreendê-lo. Hípias responde-lhe que o próprio belo é uma jovem bela. Não consegue perceber que o próprio belo é aquilo que está presente numa jovem bela e que a faz ser bela. Em resumo, é dupla a exigência socrática: encontrar uma certa unidade na multiplicidade (o Belo presente nos muitos belos) e encontrar nessa unidade a causa da multiplicidade (o Belo como causa dos belos).
Não é pouco. Essa exigência socrática levará Platão a desenvolver sua teoria das Formas. Aristóteles também não a perde de vista e louva Sócrates (Metafísica, XIII, 1078 b27-30) por ter buscado a presença do universal na definição. Sem esse “próprio”, dirá Platão, sem a definição universal, dirá Aristóteles, não há possibilidade de epistéme, de ciência. Platão tentará satisfazer a exigência socrática. Mas é árdua sua tarefa, pois não pode deixar de lado as conseqüências extraídas de duas filosofias anteriores, pré-socráticas: de Heráclito e de Parmênides. Para Heráclito, o mundo está em perpétuo estado de fluxo, nunca entramos duas vezes no mesmo rio (são sempre novas águas), “somos e não somos”. Se a noção de ser em Heráclito é bastante fraca, Parmênides, ao contrário, funda o conceito de ser: é ou não é; se algo é, é. O Ser de Parmênides é eterno, uno, indivisível, imóvel. E Platão extrai algumas conseqüências destas doutrinas e terá que dar conta delas. Concorda com Heráclito: é fato que este mundo visível, sensível, está sempre mudando; não há como encontrar um certo “mesmo” em tudo isso. Por outro lado, é preciso concordar com Parmênides quando se examina determinados tipos de seres: a coragem, por exemplo, é um certo ser que jamais será não corajoso; se a coragem é, ela é sempre coragem.
Qual é o grande problema que surge do confronto entre Heráclito e Parmênides? Se Heráclito for levado às últimas conseqüências, não há possibilidade de ciência. No Teeteto, Platão expõe isso: o sofista Protágoras expressa um relativismo derivado de uma leitura extremada de Heráclito: o ser se reduz ao que aparece para alguém. Para Protágoras, “o homem é a medida de todas as coisas, das que são, que são, das que não são, que não são” (152 a). O que é o vento? Se, para mim, ele aparece como frio, então ele é frio para mim. O homem é a medida para si do que lhe aparece. Não há, dentro desse quadro, a possibilidade de algo em si mesmo, algo que seja ele próprio, independente de outrem. Outra conseqüência dramática da fi- losofia de Heráclito seria a impossibilidade de linguagem: se tudo está em perpétuo fluxo, as próprias coisas não possuem um ser que permaneça estável e do qual eu possa dizer algo. Platão reconhece todos esses problemas. Se o conhecimento for o conhecimento do mundo sensível, então é preciso extrair todas as conseqüências da doutrina de Heráclito: não há mais ser (pois o ser seria algo em constante mutação) e nem haveria mais como dizer o ser (pois como dizer algo que nesse instante é, mas já em seguida não é?).

Uma conseqüência dramática da filosofia de Heráclito seria a impossibilidade de linguagem: se tudo está em perpétuo fluxo, as próprias coisas não possuem um ser que permaneça estável e do qual eu possa dizer algo. Platão reconhece todos esses problemas

Mas, do ser imutável de Parmênides, Platão extrai outras conseqüências: se há algo realmente imutável, é somente este que pode ser conhecido. Para Platão, o conhecimento deve ser algo absolutamente imutável, ou não será mais conhecimento e sim simples opinião. Mas se o mundo sensível é o mundo da mutabilidade, onde nada permanece sendo sempre o que é, não é possível mesmo haver conhecimento deste mundo. Como resolver o impasse? Não haverá algo que seja eterno, imutável, e que viabilize assim a possibilidade de conhecimento? É dentro desse quadro problemático que Platão elabora sua teoria das Formas ou Idéias, apresentada principalmente em seus diálogos de maturidade: o Fédon, a República, o Banquete e o Fedro. Procurará, por meio das Formas, dar conta da possibilidade de existência de um certo ser imutável que permita um conhecimento imutável.
Se é preciso explicar por que as coisas belas são belas, a participação nas Formas é a resposta de Platão: a razão de algo ser belo é porque participa do Belo em si. Há um Belo em si, uma Forma que não é visível pelos sentidos, mas que se faz presente em cada uma das coisas belas. As coisas belas participam da Forma do Belo. Esta é a verdadeira causa da beleza sensível. Platão concede assim o máximo de ser, de “essência” (ousía, em grego) às coisas que são em si mesmas, àquilo que existe em si. Não são coisas deste mundo visível, mas são seres aos quais é possível aceder pela via do pensamento. Estes seres em si, as Formas ou Idéias, são a causa da existência das coisas visíveis. Com isso, satisfaz a dupla exigência socrática: a Forma é aquela tão procurada unidade na multidão de exemplares e é também a causa de existência dos múltiplos seres. As Formas (do Belo, do Bom, do Grande, etc.) explicam por que os milhares de entes do mundo sensível podem ser belos, bons, grandes, etc. A Forma em si é eterna, não está sujeita ao perpétuo fluxo das coisas visíveis. O Belo é e será sempre belo. E assim, Platão resolve o problema derivado da filosofia de Heráclito: as coisas belas podem deixar de ser belas; há até mesmo uma relatividade entre os conceitos de belo, já que algo pode ser belo para mim e não para outro. Mas o Belo em si é absoluto e eterno. As coisas belas participam dele e é só nessa medida que são belas. Por isso, não pode haver ciência das coisas sujeitas ao perpétuo fluxo; ora elas são, ora não são. Não há como conhecer o ser próprio das coisas sensíveis. Só as Formas, por serem imutáveis, podem ser conhecidas.
Como conceber as Formas? Somente pela via do pensamento, já que os órgãos dos sentidos são falíveis e, portanto, fonte de erro. É preciso, diz Platão, afastar-se do corpo para que se possa contemplar a imutabilidade das Formas. Nosso filósofo cria uma marcante dualidade entre corpo e alma que vingará na filosofia ocidental e influenciará fortemente o cristianismo. O corpo é inferior em ser à alma, que em muitos momentos é identificada ao próprio homem. Quem somos? A alma. E é pela alma que acedemos às realidades superiores. “Nesta vida, o que faz com que cada um de nós seja o que é nada mais é do que a alma, enquanto o corpo é para nós a imagem concomitante. Está certo quem diz que o corpo sem vida não é senão a imagem do morto e que o eu real de cada um de nós, que chamamos de alma imortal parte para prestar contas perante outros deuses, uma perspectiva a ser encarada com coragem pelos bons, mas com supremo terror pelos maus”. (Leis, XII, 959 b).
Como somos a alma, e não o corpo, a morte é bem-vinda, já que desvencilhados do corpo, estaremos em melhores condições de acesso às Formas, ao que é em si. Estes são os ensinamentos de Sócrates – agora um Sócrates absolutamente platônico, não mais histórico –no Fédon. Ali, em seu último dia de vida, na prisão, ensina os amigos presentes a não temer a morte; aspirar à contemplação de realidades mais elevadas é um desejo natural de quem tem um temperamento filosófico. Tampouco devem prantear-lhe o corpo morto, pois ele mesmo, Sócrates, não estará mais ali, mas em outro lugar.

Da Natureza, de Parmênides.
Os corcéis que me transportam, tanto quanto o ânimo me impele, conduzem-me, depois de me terem dirigido pelo caminho famoso da divindade, que leva o homem sabedor por todas as cidades. Por aí me levaram, por aí mesmo me levaram os habilíssimos corcéis, puxando o carro, enquanto as jovens mostravam o caminho. O eixo silvava nos cubos como uma siringe, incandescendo (ao ser movido pelas duas rodas que vertiginosamente o impeliam de um lado e de outro), quando se apressaram as jovens filhas do sol a levar-me, abandonando a região da Noite para a luz, libertando com as mãos a cabeça dos véus que a escondiam. Aí está o portal que separa os caminhos da Noite e do Dia, encimado por um dintel e um umbral de pedra; o portal, etéreo, fechado por enormes batentes, dos quais a Justiça vingadora detém as chaves que os abrem e fecham. A ela se dirigiram as jovens, com doces palavras, persuadindo-a habilmente a erguer para elas por um instante a barra do portal. E ele abriu-se, revelando um abismo hiante, enquanto fazia girar, um atrás do outro, os estridentes gonzos de bronze, fixados com pregos e cavilhas. Por aí, através do portal, as jovens guiaram com celeridade o carro e os corcéis. E a deusa acolheu-me de bom grado, mão na mão direita tomando, e com estas palavras se me dirigiu: “Ó jovem, acompanhante de aurigas imortais, tu, que chegas até nós transportado pelos corcéis, Salve! Não foi um mau destino que te induziu a viajar por este caminho – tão fora do trilho dos homens – mas o Direito e a Justiça. Terás, pois, de tudo aprender: o coração inabalável da realidade fidedigna e as crenças dos mortais, em que não há confiança genuína. Mas também isso aprenderás: como as aparências têm de aparentemente ser, passando através de tudo. (Da natureza, de Parmênides, editora Loyola).

Como somos a alma, e não o corpo, a morte é bem vinda, já que desvencilhados do corpo, estaremos em melhores condições de acesso às Formas, ao que é em si. Estes são os ensinamentos de Sócrates.

O filósofo grego pré-socrático Empédocles propunha uma explicação geral do Universo no qual todas as coisas seriam constituídas da fusão de quatro elementos (terra, fogo, ar e água), sendo estes misturados ou separados pela ação do amor ou pelo ódio

Aristóteles apontará uma série de problemas e mesmo erros na doutrina platônica. Mas não seríamos justos com Platão se não mencionássemos que o próprio filósofo já havia detectado algumas aporias em sua filosofia, que foram apresentadas no diálogo Parmênides. Vamos, porém, saltar esse passo e observar o que Aristóteles tem contra Platão. Para Aristóteles, uma boa explicação deve ser simples, econômica. Ora, a teoria das Formas complica o conhecimento das causas. Para explicar “estes seres aqui”, este mundo que nos cerca, Platão teria recorrido a entidades supra-sensíveis. A diferença básica entre os dois filósofos reside no ponto de vista de cada um em relação à “essência”, à ousía. Segundo Platão, as coisas deste mundo sensível têm pouco ser, são inferiores na escala hierárquica do ser. Ora, para Aristóteles, as coisas deste mundo aqui é que têm de fato ser. Ele inverte a ordem proposta por Platão. Se antes as coisas sensíveis tinham ser porque participavam do ser mais elevado das Formas, agora, com Aristóteles, o ser mais elevado encontra-se nas próprias coisas.
Na sua Metafísica, I, 9, Aristóteles apresenta diversos argumentos contra a doutrina das Formas. Diz ele: as Formas “chegam a eliminar justamente os princípios cuja existência nos importa mais do que a própria existência das Idéias”. O que importa, então, é “isto aqui”. São “estas coisas daqui” que não podem ter seu ser suprimido, como quer a teoria das Formas. Além disso, se as Formas são a própria essência das coisas, como é possível que existam separadas das coisas? Têm que estar nas próprias coisas. Com as Formas platônicas, estaria eliminada toda possibilidade de conhecimento das coisas sensíveis, pois o que se poderia conhecer não seriam as coisas mesmas, mas as Formas separadas, transcendentes à própria coisa. A doutrina de Platão teria ainda falhado ao não dar conta dos diversos modos com que dizemos que uma coisa é. Por isso, acabou concedendo mais ser a algo que teria menos ser. Por exemplo, se dissermos “Maria é bela”, devemos notar que o ser “Maria” é mais ser do que “bela”. É Maria que existe antes de ser bela. Já o ser “bela” é um certo tipo de ser que deve sua existência a Maria. Bela é um predicado de Maria, essa sim a verdadeira ousía, a “substância”, para usar um termo consagrado na terminologia aristotélica.

Os tópicos, de Aristóteles.
Nosso tratado se propõe encontrar um método de investigação graças ao qual possamos raciocinar, partindo de opiniões geralmente aceitas, sobre qualquer problema que nos seja proposto, e sejamos também capazes, quando replicamos a um argumento, de evitar dizer alguma coisa que nos cause embaraços. Em primeiro lugar, pois, devemos explicar o que é o raciocínio e quais são as suas variedades, a fim de entender o raciocínio dialético: pois tal é o objeto de nossa pesquisa no tratado que temos diante de nós.
Ora, o raciocínio é um argumento em que, estabelecidas certas coisas, outras coisas diferentes se deduzem necessariamente das primeiras. (a) O raciocínio é uma “demonstração” quando as premissas das quais parte são verdadeiras e primeiras, ou quando o conhecimento que delas temos provém originariamente de premissas primeiras e verdadeiras: e, por outro lado (b), o raciocínio é “dialético” quando parte de opiniões geralmente aceitas. São “verdadeiras” e “primeiras” aquelas coisas nas quais acreditamos em virtude de nenhuma outra coisa que não seja elas próprias; pois, no tocante aos primeiros princípios da ciência, é descabido buscar mais além o porquê e as razões dos mesmos; cada um dos primeiros princípios deve impor a convicção da sua verdade em si mesmo e por si mesmo. São, por outro lado, opiniões “geralmente aceitas” aquelas que todo mundo admite, ou a maioria das pessoas, ou os filósofos em outras palavras: todos, ou a maioria, ou os mais notáveis e eminentes.

É grande a lista de problemas observados por Aristóteles, mas a ruptura entre os dois filósofos é de base. O ser que importa é o ser das coisas sensíveis, e são estas coisas que, na hierarquia dos seres, são mais elevadas. Mas, de alguma maneira, Aristóteles concorda com Platão. O conhecimento deve ser de conteúdos imutáveis. Como, então, conhecer o mundo sensível, que é o reino do mutável? Será preciso dar alguma estabilidade para o mundo sensível para que este possa, afinal, ser conhecido. Se for possível encontrar um certo ser estável nas coisas, será possível haver ciência dos corpos sensíveis.
O conceito de epistéme, ciência, é fundado por Platão. Contudo, do ponto de vista do platonismo, se as coisas sensíveis estão em perpétuo estado de fluxo, a ciência deve vir de algo que não seja o sensível. Por isso, para fundamentar a possibilidade da epistéme, Platão elabora o conceito de Forma, com o qual seria possível apreender-se as coisas que são, de maneira imutável e necessária. Há seres não sensíveis, acredita Platão, que podem ser objeto de conhecimento num sentido rigoroso. Assim, responde à exigência socrática acerca de “o que é”, acerca da universalidade.
Aristóteles herda de Platão esse anseio por satisfazer a noção de epistéme, que deve tratar sempre de conteúdos imutáveis de conhecimento. Afasta-se, porém, do mestre ao rejeitar a existência de idéias ou formas apartadas da matéria, existentes por si. Confere ousía às próprias coisas, não às formas platônicas. É impossível aceitar que as formas tenham existência separada da coisa, se elas são a ousía das coisas, entende Aristóteles. Ousía aplica-se às coisas sensíveis, ao domínio da natureza.
Mas Aristóteles concorda com a existência dos universais – razão, aliás, do elogio que faz a Sócrates, que teria se empenhado pela busca desses universais. Esses, porém, não existem por si, de modo imaterial, mas encontram-se nas coisas, e tomamos conhecimento deles através do intelecto, por um processo de abstração. Desse modo, Aristóteles considera que as coisas sensíveis são compostas de matéria e forma. As formas aristotélicas, ainda que possam ser abstraídas da matéria e pensadas à parte, só existem de fato quando unidas à matéria. Matéria e forma estão indissoluvelmente ligadas na constituição da substância e só podem ser separadas no pensamento. Ao contrário de Platão, Aristóteles não considera possível “reduzir todas as coisas às Formas e eliminar a matéria” (Met. VII, 1036 b23), pois “tudo que seja algo determinado possui matéria” (Met. VII, 11, 1037 a2). Entretanto, Aristóteles exclui a matéria da definição de substância, pois a matéria é algo indeterminado. Somente a forma pode ser definida e é por meio dela que será possível a ciência. Assim, a ciência aristotélica é dos objetos sensíveis, mas daquilo que neles é eterno, imutável: a forma. A epistéme deve capturar predicados universais, eternos e imutáveis.

Aristóteles satisfaz a exigência socrática de buscar o universal nos vários particulares – coisa que Platão, de alguma maneira, também já havia conseguido.

Há, pois, para Aristóteles, formas universais existentes nas coisas. Com o pensamento fazemos generalizações e apreendemos algo universal nos vários objetos corporais. As substâncias físicas são sempre individuais, mas o pensamento é capaz, por um processo de abstração, de apreender o universal nelas, apreender sua definição. Há várias árvores, cada qual diferente das outras, mas a forma “árvore” pode ser apreendida a partir de uma abstração e com isso pode ser dada uma definição de árvore, pode-se estabelecer “o que é” árvore. A forma “árvore” não é algo exterior, transcendente às várias árvores da natureza, mas é imanente a cada árvore e causa de ser de cada uma delas.
A ciência deve, então, procurar reconhecer a “qüididade” (“o que é”) e a definição de todos os seres, investigar o que faz com que “um isto” seja isto e não aquilo. Deste modo, finalmente, será possível responder à pergunta “o que é” em termos particulares, mas, ao mesmo tempo, dando uma resposta universal, da qual seja possível haver ciência. Assim, Aristóteles satisfaz a exigência socrática de buscar o universal nos vários particulares – coisa que Platão, de alguma maneira, também já havia conseguido –, mas vai além e consegue fundamentar a ciência das coisas sensíveis, a ciência da natureza.

As substâncias físicas são individuais, mas o pensamento é capaz, por meio da abstração, de apreender o universal nelas. Por exemplo, há várias árvores, cada qual diferente das outras, mas a forma “árvore” pode ser apreendida a partir de uma abstração e com isso pode ser dada uma definição de árvore, pode-se estabelecer “o que é” uma árvore

Fonte: Revista Filosofia, Maria Eduarda Martins de Oliveira.