sábado, 9 de junho de 2012

Existencialismo - A Filosofia da liberdade.


Ideias e reflexões teóricas sobre a existência do homem, frequentemente tomada como sinônimo de ser, apesar da diferença sugerida pela etimologia, são encontradas na obra de diversos filósofos e pensadores ao longo da História, desde a Antiguidade Grega clássica, como, por exemplo, em Sócrates (470 a.C.-399 a.C.), os estóicos, Santo Agostinho (354- 430), Blaise Pascal (1623-1662), Nietzsche (1844-1900) e até, já no século 20, Henri Bergson (1859-1941), que nem por isso chegam a ser relacionados entre os filósofos existencialistas. Aliás, muitos dos filósofos e artistas identificados por críticos e historiadores como “existencialistas” não necessariamente concordavam com essa classificação — Albert Camus, por exemplo, seria um existencialista ou um absurdista? Mas essas divergências, críticas e ponderações fazem parte do seu próprio processo de elaboração filosófica e criativa.
A propósito, o rótulo de “existencialista” foi aplicado, no Brasil da década de 1940, à personagem-título da marchinha “Chiquita Bacana”, aquela “lá da Martinica”, que se vestia “com uma casca de banana-nanica” (...). Foi a fórmula bem-humorada (e consagrada no Carnaval de 1949), que os autores acharam para falar do tema mais abordado pela imprensa da época: o “existencialismo”, que era moda na capital francesa, onde, desde as vésperas da eclosão da Segunda Guerra Mundial, grupos de jovens boêmios - os “existencialistas” - costumavam se reunir para discutir, ouvir “jazz” e dançar nos cafés e boates do bairro parisiense de Saint-Germain-des-Près.
Em geral considera-se como precursor do movimento, ainda no século 19, o filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855), alinhado ao chamado “existencialismo cristão”. Também foram relevantes, como fontes de inspiração para o desenvolvimento do pensamento existencialista, os trabalhos de Arthur Schopenhauer (1788-1860), Fiódor Dostoiévslci (1821-1881) e Edmund Husserl (1859-1938).
O existencialismo foi difundido, em especial a partir das décadas de 1940 e 1950, pelas obras filosóficas e literárias de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus. Ao lado destes, costumam ser classificados como autores existencialistas (embora Camus, por exemplo, discordasse de sua inclusão no grupo), entre outros, Gabriel Marcel (francês, 1889-1973), Karl Jaspers (alemão, 1883-1969), Martin Heidegger (alemão, 1889-1976), Martin Buber (1878-1965), Jean Wahl (1888-1974), Maurice Merleau-Ponty (1908- 1961), Jose de Ortega y Gasset (1883-1955), Miguel de Unamuno (1864- 1936), Nikolai Berdyaev (1874- 1948) e Lev Shestov (1866-1938).
Fundamentos do existencialismo
O existencialismo pode ser conceituado como uma corrente de pensamento filosófica e literária que tem suas origens no século 19, com o pensamento de Kierkegaard e sua expressão máxima nas décadas de 1940 e 50, com a análise de Jean-Paul Sartre sobre a filosofia heideggeriana. Considerando cada ser humano como único, e senhor absoluto de seu destino e de suas atitudes, o existencialismo salienta a subjetividade, a responsabilidade e a liberdade individual do homem, que este só pode esquecer por má-fé.
Para Sartre, esse é um mecanismo (a má-fé) pelo qual o homem procura se defender da angústia que a consciência da liberdade provoca. Todavia, por meio dessa defesa equivocada, nos distanciamos de nosso projeto pessoal, incorrendo no equívoco de explicar nossos fracassos pela interferência de fatores externos como Deus, o destino, os astros ou a sorte. Nesse contexto, inclusive a teoria do inconsciente, formulada por Sigmund Freud (1856-1939), era considerada um exemplo de má-fé. Podemos dizer que, para os existencialistas, a má-fé representava uma forma do ser humano de mentir para si próprio. Para assumir sua completa consciência e a autêntica responsabilidade por suas escolhas, é indispensável, portanto, renunciar à má-fé. Ao fazer isso, invariavelmente o homem passa a viver num estado de angústia, mas em compensação retoma, no sentido mais pleno, a condição de senhor de sua liberdade.

“Da forma pela qual é entendido pelo pensamento existencialista, o ser humano, se não admite seu enquadramento em qualquer definição é porque inicialmente ele ainda não é nada. Somente virá a ser num estágio posterior”.

Sören Kierkegaard
Sören Aabye Kierkegaard nasceu na Dinamarca. Aos 17 anos matriculou-se na Universidade de Copenhague, onde, durante seus estudos de teologia, concentrou-se mais em matérias como literatura e filosofia. Embora tenha publicado diversos artigos em sua juventude e nos tempos universitários, até 1841, considera-se que sua obra-prima é “Temor e Tremor”, de 1843, escrito em sua estadia na Alemanha.
Sua vida e obra foram marcadas por conflitos e angústias decorrentes, nos primeiros tempos, de seu difícil relacionamento com o pai austero e devoto (falecido em 1838) e do rompimento do noivado. Essa inquietação o levou a desenvolver uma intensiva meditação acerca da existência humana como caminho para transformá-la. Defendia que “a verdade é a subjetividade”, concepção que fez com que avaliasse as relações entre criatura e Criador, a partir de sua própria experiência. Segundo ele, a existência humana passa pelas etapas estética, ética e religiosa, sendo esta última (associada ao Cristianismo) a mais elevada. Dentre seus outros livros, pode-se mencionar “O Alternativo e Repetição” (ambos de 1843), “Migalhas Filosóficas” e “O Conceito de Angústia” (1844), “As Etapas no Caminho da Vida” (1845) e “O Desespero Humano” (1849). “A real natureza do desespero é não saber que é desespero” é uma máxima de sua angustiada filosofia. Kierkegaard morreu na capital dinamarquesa em 1855.
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“O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Afirma que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito: este ser é o homem, ou, como diz Heidegger, a realidade humana. O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não existe natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la. O homem é tão somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer, como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que chamamos de subjetividade: a subjetividade de que nos acusam. Porém, nada mais queremos dizer senão que a dignidade do homem é maior do que a da pedra ou da mesa.” Jean Paul Sartre, “O Existencialismo é um Humanismo” (Tradução: Rita Correia Guedes).
De acordo com o pensamento existencialista, a existência tem prioridade sobre a essência, conceito que se materializa na famosa afirmação de Sartre de que “a existência precede a essência”. Essa definição instaura precisamente valores fundamentais como a liberdade e a responsabilidade do ser humano, já mencionadas. (Lembram-se da Chiquita Bacana e da epígrafe, que “só faz o que manda seu coração”?) Ou seja, quer dizer que o homem não possui uma essência antes de tudo, preexistente e da qual ele seria refém, e sim que ele existe primeiro, antes de poder ser enquadrado em qualquer conceito, e somente será aquilo que ele próprio decidir ser, quando, no dizer do filósofo André Comte-Sponville, “puder falar de sua essência no passado”. Em outras palavras, o ser humano é absolutamente livre, primeiro existe, aparece no mundo, encontra a si mesmo e só depois vai se definir. Dessa maneira, da forma pela qual é entendido pelo pensamento existencialista, o ser humano, se não admite seu enquadramento em qualquer definição, é porque inicialmente ele ainda não é nada. Somente virá a ser num estágio posterior. De acordo com Sartre, na conferência de 1946 no Club Maintenant em Paris, em que propôs o existencialismo como um humanismo, “assim, não há natureza humana, pois que não há Deus para concebê-la. (...) O homem não é nada além do que ele se faz”. Tem-se, portanto, que o existencialismo é, no sentido metafísico do termo, uma filosofia da liberdade, das mais radicais que já houve. Diante da liberdade completa (que inclui a de ação, da vontade e de espírito), o homem tende a se angustiar, pois significa que só ele é responsável por suas escolhas. Não raro, sobrevém uma paralisia, a abstenção de fazer as opções necessárias. Mas esse “não fazer, que evita os riscos e a culpa e adia a existência, já é uma escolha, infelizmente comum em nossa sociedade. Correr riscos em busca da autenticidade é uma tarefa difícil, que exige coragem. É uma jornada pessoal e intransferível, que o homem deve empreender para encontrar a si próprio. Sartre escreveu: “Toda pessoa é uma escolha absoluta de si”.

Não se deve encarar o existencialismo como sendo uma escola de pensamento sem nenhuma ligação com toda e qualquer forma de fé, até porque diversos de seus principais representantes foram, de fato, pessoas religiosas, como Kierkegaard, que era um protestante radical caracterizado por um severo antagonismo contra a igreja luterana.

Filosofia e religião
No que diz respeito às relações com a religião, embora vários, senão a maior parte, dos pensadores existencialistas tenham sido ateístas, como Sartre, alguns filósofos ligados ao movimento adotaram um enfoque, digamos, teológico do mesmo. Como exemplos desse ponto de vista, pode-se citar, além de Kierkegaard; Jaspers e Marcel. O russo Nikolai Berdyaev, ex-adepto do marxismo, apresentou a fundamentação teórica de um cristianismo existencialista, primeiro em seu país de origem, e posteriormente na França, pouco antes da Segunda Guerra Mundial. Nikolai Alexandrovitch Berdyaev foi um filósofo russo, nascido em Kiev, na Ucrânia, em 1874. Na década de 1930, após formular críticas ao racionalismo e uma vez rompida sua vinculação à ideologia pregada por Karl Marx (1818- 1883), propôs a volta ao misticismo, frente às modernas formas do pensamento materialista. Foi banido da então União Soviética, refugiando-se na França, onde veio a falecer na cidade de Clamart, em 1948. Deixou os livros “A Filosofia da Liberdade” (1911) e “Cristianismo e Revolta Social” (1934).
Assim, não se deve encarar o existencialismo como sendo uma escola de pensamento sem nenhuma ligação com toda e qualquer forma de fé, até porque diversos de seus principais representantes foram, de fato, pessoas religiosas, como o mencionado Kierkegaard, que era um protestante radical caracterizado por um severo antagonismo contra a igreja luterana. Dentre os inspiradores do movimento, tem-se Dostoievski, que professava a fé ortodoxo-grega. Quanto a Sartre, embora não tenha sido criado sem religião, efetivamente não acreditava em força divina. No entender dos existencialistas cristãos, a fé funciona como defesa individual, orientando as ações humanas e as decisões a serem tomadas com um conjunto de normas religiosas.
Jean- Paul Sartre
Jean Paul Charles Aymard Sartre nasceu em Paris em 21 de junho de 1905, órfão de pai com menos de dois anos de idade, passou a morar com o avô materno, em cuja biblioteca teve acesso, já na infância, a obras clássicas francesas e alemãs. Assim, desde cedo, pôde desenvolver sua inclinação pela literatura. Por volta dos 17 anos, começou a manifestar interesse por filosofia, ingressando na Escola Normal Superior em 1924. Quatro anos mais tarde conheceu Simone de Beauvoir, que, embora não tenha se casado com ele, se tornou sua grande companheira de vida e trabalho. Como bolsista, passou o ano de 1933 em Berlim, onde teve contato com as ideias de Husserl, Heidegger e Jaspers. Também naquela ocasião, já tendo publicado alguns contos, Sartre trabalhou no ensaio “A Transcendência do Ego” e em sua primeira novela, “A Náusea”, que seriam editados, respectivamente, em 1936 e 1938. Sartre lecionou filosofia por oito anos, até 1944. Em 1940, na guerra, foi preso pelos alemães, enviado a um campo de concentração e libertado no ano seguinte. De volta a Paris, conheceu Albert Camus, com o qual viveu uma grande amizade de cerca de dez anos, terminada por divergências políticas. Em 1943, Sartre publicou “O Ser e o Nada”, síntese de princípios filosóficos e literários. Em 1945, fundou, com Merleau-Ponty, a revista “Tempos Modernos”. Em 1952, entrou para o Partido Comunista Francês, com o qual rompeu em 1956. Em 1964 recusou o Prêmio Nobel de Literatura, dizendo que um escritor não deveria ser convertido em instituição. Além dos títulos mencionados, sua vasta obra inclui “As Mãos Sujas” (1946), “A Prostituta Respeitosa” (1946), “O Diabo e o Bom Deus” (1948), “Crítica da Razão Dialética” (1960) e “As Palavras” (1964). Faleceu em Paris aos 74 anos, em 15 de abril de 1980.
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“Tudo isso permite-nos compreender o que subjaz a palavras um tanto grandiloquentes como angústia, desamparo, desespero. Como vocês poderão constatar, é extremamente simples. Em primeiro lugar, como devemos entender a angústia? O existencialista declara frequentemente que o homem é angústia. Tal afirmação significa o seguinte: o homem que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas aquele que escolheu ser, mas também um legislador que escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira, não consegue escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade. É fato que muitas pessoas não sentem ansiedade, porém nós estamos convictos de que essas pessoas mascaram a ansiedade perante si mesmas, evitam encará-la; certamente muitos pensam que, ao agir, estão apenas engajando a si próprios e, quando se lhes pergunta: mas se todos fizessem o mesmo? Eles encolhem os ombros e respondem: nem todos fazem o mesmo.” (Jean-Paul Sartre, “O Existencialismo É um Humanismo”, Tradução: Rita Correia Guedes)
Já os ateus destacam a contradição de que a deterioração e a morte são sempre os resultados finais, não importando o esforço que se faça para melhorar a si ou aos outros. Muitos existencialistas creem que a grande vitória do indivíduo consiste em perceber e aceitar o absurdo e a miséria da vida. Por essa vitória, o homem pode ou não ser recompensado, ao fim, por uma força superior. Se essa força existe, o que explica o sofrimento humano? Se não existe, e a vida é mesmo absurda e miserável, por que não abreviar o sofrimento, por meio do suicídio?
Tais questões servem apenas como introdução à complexidade do pensamento existencialista. Para Sartre, “Se Deus não existe, há pelo menos um ser, (...) que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana”.
Martin Heidegger, filósofo nascido na Alemanha em 1889, é considerado um dos mais importantes pensadores ocidentais do século 20, tendo influenciado a obra de vários outros. Estudou na Universidade de Freiburg junto com o também filósofo Husserl, de quem se tomaria assistente. Filiou-se ao partido nazista em 1933 e foi nomeado reitor da Universidade, cargo de que viria a demitir-se em poucos meses. Destacou-se em seus estudos sobre ontologia, tendo como obra fundamental “O Ser e o Tempo”, publicada quando ele tinha apenas 28 anos. Escreveu ainda “Que é Metafísica?” (1929) e “Introdução à Metafísica” (1953). Faleceu em 1976.
Em síntese, para esse existencialista, não há desculpas: se não existe Deus ou natureza a quem se possa atribuir eventuais erros, a liberdade é incondicional e é isso que Sartre quer dizer quando fala dela como uma sentença a que o homem não pode escapar: “Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer”.
A vida e o homem livre
Em “A Náusea” (1938), sua primeira novela, Sartre conclui eticamente sobre seus estudos de fenomenologia: se a vida é isso que está aí, se é como a percebemos, ela não passa de um caos impossível de apreender pela nossa inteligência, é monstruosa, repulsiva e completamente aleatória: tudo é absurdo e desprovido de sentido. Nesse livro, e nos volumes “A Transcendência do Ego” (1936), “A Imaginação” (1936), “Esboço de uma Teoria das Emoções” (1939), “O Imaginário” (1940) - todos de ensaios - e em “O Muro” (contos, 1939), pode-se identificar essencialmente o mesmo raciocínio, que iria desaguar na obra-prima “O Ser e o Nada” (O livro, iniciado em 1939 nas frentes de batalha da Segunda Guerra Mundial, em que Sartre serviu como meteorologista do exército francês, foi interrompido por um ano em decorrência de o autor ter sido aprisionado pelas tropas alemãs e enviado a um campo de concentração nazista. Finalmente concluído, foi lançado em 1943 pela editora Gallimard em um volume de mais de 700 páginas, (1943), com o subtítulo “Ensaio de Ontologia Fenomenológica”, e converteu-se num grande “bestseller” da história da filosofia: em 15 anos, esgotou nada menos de 55 edições). O livro, resumindo o pensamento do autor àquela época, foi praticamente responsável pela divulgação dos conceitos fundamentais do existencialismo, que iriam dominar a intelectualidade francesa no pós-guerra. Nesse trabalho, o próprio Sartre admitiu ter estudado a existência “de um ponto de vista inteiramente novo”, recorrendo ao método de Husserl para uma análise minuciosa da realidade humana, “tal como ela se manifesta”.
Já na introdução, Sartre estabelece os princípios husserlianos que irá utilizar, dividindo a existência em duas regiões: o mundo das coisas materiais (seres “em-si”), compreendendo quaisquer objetos existentes com uma essência definida e que povoam o mundo; e o mundo da consciência (seres “para-si”), “a única aventura possível de ser”. O ser “em-si” não tem consciência de si ou do mundo, nem tem potencialidades. É algo que somente “está aí”, apenas “é”, de modo inerte e frouxo, fechado em si mesmo. Os objetos do mundo se apresentam à consciência do homem por meio de suas manifestações físicas, os fenômenos. Já a consciência humana é um ser de outro tipo, o “para-si” (É um ser que conhece a si próprio e ao mundo. Constrói um sentido para seu mundo à medida que estabelece as relações - funcionais e temporais - entre os seres “em-si”. O “para-si” não é só mais uma coisa entre as coisas do mundo, pois, contrariando a escola fisiologista, a consciência não é apenas uma espécie de “fluido” produzido pelo cérebro, porém possui outra natureza. É um puro ponto de vista, sem substância sobre o mundo do “em-si”. A consciência transcende o mundo. Assim, o “para-si” não tem essência definida, nem resulta de uma ideia preexistente). O existencialismo sartreano desconsidera um Criador que tenha predeterminado a essência e os fins individuais. A existência do “para-si” é necessária e é ele quem define sua essência, a cada instante daquela. O que uma pessoa já viveu, seu ser passado, constitui sua essência: é um “em-si”, porque possui uma essência conhecida, embora não predeterminada, que só existe no passado.

Sartre estuda também as relações humanas, o “estar em presença de outros”, que representa um dos atributos básicos do ser “para-si”. Nesse panorama, destacam-se novamente as angustias e os conflitos, porque o ser humano está condenado a coexistir com seus semelhantes, cuja liberdade acaba constituindo uma limitação e, de certa forma, uma ameaça à sua própria

Reafirmando a prevalência da existência sobre a essência, o existencialismo volta a propor que cada ser “para-si” tem a liberdade de fazer de si mesmo o que ele bem entenda.
O absurdismo
Muitas vezes confundido com o existencialismo e o niilismo, embora essas correntes se filiem a uma certa tradição filosófica em comum, o absurdismo ou filosofia do absurdo tem traços marcantes. Um dos seus precursores foi o filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard - não por acaso também uma das bases do existencialismo. Uma das definições possíveis da palavra “absurdo” é “o contra da razão”, de modo que a ideia central do absurdismo é a impossibilidade do homem de captar os significados da existência em sua universalidade, e que esses esforços filosóficos e científicos na busca por um “sentido” naufragarão. O grande divulgador da corrente absurdista no século 20 foi o ensaísta, romancista e filósofo Albert Camus, cujo livro “O Mito de Sísifo”, de 1942, demarca uma linha de separação com o movimento existencialista e toca naquela que Camus denominou como a única questão filosoficamente séria: o suicídio. É fundamental lembrar que Camus e Ernil Cioran (outro pensador associado à corrente) escreveram suas principais obras em um momento de completa devastação da Europa durante e após a Segunda Guerra Mundial. O ambiente era de pobreza, destruição, descrença e incertezas. Um terreno propício para esse tipo de filosofia.
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“Não é por nosso pessimismo que nos acusam, mas, no fundo, pela dureza de nosso otimismo. Se certas pessoas nos censuram por desenvolvermos seres pusilânimes, fracos, covardes, e, por vezes, francamente maus, em nossas obras de ficção, não é unicamente porque eles são pusilânimes, fracos, covardes ou maus, pois, se fizéssemos como Zola e declarássemos que eles assim são devidos à hereditariedade, por influência do meio, da sociedade, por um determinismo orgânico ou psicológico, todos se tranquilizariam e diriam: aí está, somos assim e ninguém pode fazer nada; o existencialista, porém, quando descreve um covarde, afirma que esse covarde é responsável por sua covardia. Ele não é assim por ter um coração, um pulmão ou um cérebro covardes; ele não é assim devido a uma qualquer organização fisiológica; mas é assim porque se construiu corno covarde mediante seus atos. Não existe temperamento covarde; existem temperamentos nervosos, existem pessoas que têm 'sangue fraco' como diz o povo; ou temperamentos ricos; mas o homem que tem sangue fraco nem por isso é um covarde, pois o que cria a covardia é o ato de renunciar ou de ceder: um temperamento não é um ato e o covarde se define pelos atos que pratica”. (Jean-Paul Sartre, “O Existencialismo é um Humanismo”, Tradução: Rita Correia Guedes).
O outro, As críticas, A influência
Sartre estuda também as relações humanas, o “estar em presença de outros”, que representa um dos atributos básicos do “ser para-si”. Nesse panorama, destacam-se novamente as angústias e os conflitos, porque o ser humano está condenado a coexistir com seus semelhantes, cuja liberdade acaba constituindo uma limitação e, de certa forma, uma ameaça à sua própria. Enquanto está sozinha, a consciência do homem pode reinar como senhora absoluta de seu destino e usufruir em plenitude de uma liberdade que desconhece barreiras. Isso se transforma radicalmente na presença do outro, cuja subjetividade passa a ser mais uma entre as coisas do mundo. Ao contrário da situação anterior, essa nova coisa não é apenas mais uma que se oferece passivamente à minha apreciação, mas ela, ao mesmo tempo, me identifica, não mais como o sujeito que eu era, mas como objeto de seu inundo. Sou, de certo modo, paralisado pelo meu próprio olhar, como no mito da Medusa. Passo a ser observado e julgado com a liberdade do pensamento alheio, sobre o qual não tenho nenhum poder de influência. Ou seja, o outro pode pensar qualquer coisa sobre mim, independente da minha vontade ou controle, o que representa uma ameaça permanente. A liberdade alheia é um perigo para a minha, que também a põe em risco. Daí a fala da peça teatral de Sartre, “Entre Quatro Paredes” (1944): "O inferno são os outros".
Sobre as críticas ao existencialismo, opina Manuel Costa Pinto, jornalista e autor de “Albert Camus: um Elogio do Ensaio” (Ateliê): “Dentre as correntes modernas da filosofia, poucas foram tão prejudicadas por seu engajamento, por sua práxis política, quanto o existencialismo de Sartre. É frequente ouvirmos elogios à obra teatral e ficcional do autor ao lado de ressalvas de que seu pensamento envelheceu junto com as utopias comunistas, incluindo a vertente maoísta à qual ele aderiu no fim da vida. A crítica mais consistente ao existencialismo o define como uma filosofia da consciência ou da subjetividade, à qual estruturalista e pós-estruturalistas contrapõem a ideia de que tudo (inclusive consciência e subjetividade) decorre de estruturas abstratas e impessoais. (Estruturalistas: Partidários ou seguidores do estruturalismo, corrente de pensamento derivada da linguística da obra de Ferdinand de Saussure (1857-1913), no início do século passado e difundida a partir da capital francesa nos anos 1960. O estruturalismo sucedeu o existencialismo - ao qual se opunha - como modismo, “última palavra” entre os intelectuais franceses. Naquele país, destacaram-se entre os principais pensadores estruturalistas, Claude Lévi-Strauss (1908-2009), Michel Foucault (1926-1984), Jacques Lacan (1901-1981) e Louis Althusser (1918-1990). Esses teóricos descrevem o ser e os fenômenos humanos como efeitos de estruturas ou sistemas, em vez de subjetividade ou de criação). Tal crítica seria válida se o exame existencialista do funcionamento da consciência tivesse uma positividade, descrevesse um ente natural ou psíquico. No entanto, a consciência, para Sartre, é menos uma máquina de produção de sentido a partir do aparato perceptivo humano do que um movimento em que o ser é dado por sua percepção do nada, das virtualidades contidas no existente”.
Embora sofrendo restrições, a contribuição do existencialismo à formação do pensamento contemporâneo não deve ser minimizada. O movimento influenciou e segue inspirando criadores de vários segmentos. Como fenômeno cultural, o existencialismo demonstra vitalidade, influindo inclusive na música jovem a partir dos anos 1970, como nos movimentos góticos e, mais recentemente, em diversos autores literários e criadores de diferentes formas artísticas, como, por exemplo, o cineasta Woody Allen, cujo humor é pincelado pelo existencialismo. No artigo “A ironia e o absurdo na ficção de Woody Allen” (2008), o pesquisador Felipe Mansur lembra o apreço do cineasta e escritor por Sartre, Camus e Kierkegaard. De acordo com Allen, todos esses autores têm uma escrita pesada: Uma escrita com peso, angústia, liberdade, sofrimento, vida. Humanismo e existência.
Fonte: Conhecimento prático Filosofia, Sergio Amaral Silva.