Originário do latim vocare, vocação
quer dizer "chamado". E, como chamado, não está relacionado de forma
direta a uma profissão, mas a uma questão maior: algo que diz respeito à plena
realização da natureza do indivíduo. Aquele que atua dentro de sua vocação e
trabalha com o que faz parte de sua natureza tem mais possibilidades de
encontrar a realização e, por conseqüência, a felicidade. Como sugeriu
Confúcio, professor, filósofo e teórico político chinês, que influenciou a Ásia
Oriental com seus pensamentos: "Escolha um trabalho que você ame e não
terás que trabalhar um único dia em sua vida".
O prazer de
viver parece estar muito relacionado à realização da vocação. Os epicuristas,
por exemplo, já aconselhavam aos homens que buscassem o prazer duradouro e não
o efêmero. Prazer duradouro que só pode ser alcançado na realização da própria
natureza do indivíduo. Confúcio propunha, como um meio de encontrar essa
vocação, que as pessoas trilhassem um caminho de experimentação, baseado na
educação, explica o doutor em Filosofia e Sinólogo, professor da Faculdade
Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória (FAFIUV), no
Paraná, André Bueno.
A pedagogia
de Confúcio não buscava ser condicionante, porém, ele defendia que as pessoas
na época deviam aprender atividades tão diversas como caligrafia, música, arco
e flecha para encontrarem aquilo de que mais gostavam de fazer. É neste
momento, explica Bueno, quando se percebe que um aluno parece ter potencial
especial para algo, que se pode constatar a idéia de propensão: e se ele sente
um prazer especial no que faz, e o faz de maneira que isso beneficie não só a
si, mas tudo à sua volta, então está encontrando o caminho certo para sua vida,
está encontrando uma via (o seu Dao, conceito chinês que pressupõe a idéia de
que pode ser encontrada uma via realizante).
O despertar
da vocação não é algo mágico, está mesmo ligado à educação, defende o diretor
nacional da Associação Cultural Nova Acrópole, o filósofo Michel Echenique
Isasa, autor do livro Como reconhecer sua vocação. Para Isasa, a
criança, desde cedo, precisa ser observada e orientada por educadores para
encontrar seu caminho. Uma busca que não se encerra na infância, já que, ao
longo da vida, o ser humano passa por várias etapas de seleção vocacional e, em
todas elas, deveria ser direcionado. Para outro membro da Nova Acrópole, Luís
Eduardo Wexell Machado, o ponto- chave para se encontrar a vocação é observar.
"É comum que o jovem chegue ao vestibular e não saiba que curso escolher.
Troca de Engenharia para Medicina, de Química para Filosofia, campos muito
diferentes. Isso porque falta capacidade de observação dos mais velhos em
relação aos jovens", analisa Machado. Mas Machado aponta um outro lado, a
da auto-observação, ligado à famosa frase de Sócrates "Conhece-te a ti
mesmo", inscrita no templo de Apolo, uma máxima filosófica essencial para
gerar autorreflexão. As pessoas costumam trabalhar com orientação vocacional e
uma série de instrumentos que ajudam a encontrar a vocação de cada um, mas,
fundamentalmente, é a reflexão pessoal que leva ao entendimento sobre a
vocação.
A Filosofia pode ajudar nessa
hora, ao fornecer textos que ajudam a refletir sobre si. "Os estóicos
ensinam o homem a refletir sobre as coisas dele e não dar importância ao que é
dos outros. Dizem que o homem deve se preocupar com o que depende dele e não
com o que não depende", diz Machado. A aplicação se daria, por exemplo, na
hora de fazer escolhas, porque somos levados por certas tendências fortes de
nossa cultura e quase sempre analisamos as opções a partir de um ponto de vista
que tomamos como nosso, mas que, de fato, não é, pertence ao outro. "É
algo que assumimos como nosso pela pressão, pela força social que aquilo tem,
seja no núcleo familiar ou dos amigos. A Filosofia pode nos ajudar bastante a
obtermos um grau de conhecimento maior sobre nós mesmos, como no caso da orientação
dada pelos estóicos", explica Machado.
Para
Confúcio, a vocação é a manifestação humana da propensão individual. Bueno
explica que os chineses acreditavam que todas as coisas na natureza possuíam
propriedades em sua constituição, que lhes garantiam um modo de manifestar-se
em particular, diferenciando-se umas das outras. Esta propensão favorece um
meio específico de agir, transformar-se e realizar-se, não importando qual seja
a condição do ser. Sendo assim, todos os seres humanos têm uma propensão e, por
causa disso, nenhum talento é melhor do que o outro, explica Bueno. "Na
verdade, é o uso e a habilidade que alguém alcança em aproveitar seu próprio
talento que dá importância a ele. Isso significa que a sociedade pode até
buscar privilegiar determinados talentos (como é o caso de grandes músicos,
guerreiros, atletas, etc.), mas não existe uma propensão melhor que outra: as
propensões, na verdade, são importantes pelo que elas são em si", explica.
Grupos
vocacionais.
Os
seres humanos podem ser divididos em grupos vocacionais. Em comum, cada grupo
tem tendências, inclinações e dons que o leva a exercer certo tipo de
atividade. "Principalmente atividades necessárias para a sobrevivência e o
desenvolvimento social", afirma o diretor nacional da Associação Cultural
Nova Acrópole e autor do livro Como reconhecer sua vocação, o filósofo Michel
Echenique Isasa. De acordo com ele, pode-se falar em cinco grandes grupos
vocacionais que, com o passar do tempo, foram se desdobrando em muitos outros.
A divisão inicial, feita ainda na antiguidade por filósofos gregos, inclui a
seguinte classificação: homens com tendência ao trabalho artesanal, à produção
de objetos materiais; outros, propensos à agricultura; um terceiro grupo, mais ligado
ao comércio, à criação de empresas; o quarto seria aquele com inclinações para
trabalhar com questões sociais, de segurança, de liderança e de organização
política; e o quinto grupo, formado por pessoas com tendências para a área
educacional e sacerdotal.
Bueno
exemplifica essa situação no caso de um pescador, já que de sua habilidade
provém o alimento que sustenta a população. Em situações normais, esta
capacidade não é considerada uma das mais importantes, apesar de a sociedade
não perceber que, sem ele, passará fome e o todo não funcionará até certo
ponto. Já numa situação de crise, no entanto, seu talento torna-se ainda mais
evidente, pois é a ele que os outros precisam recorrer. "Isso não
modificou, na verdade, a propensão de alguém em conhecer o mar, a arte da
pesca, bem como não afeta o seu 'talento nato'. A relevância social pode até
ser contextual, mas a propensão deve ser atingida com outro fim: a realização
pessoal e a felicidade", diz Bueno.
Assim, cada
época tem a sua forma de dar vazão à realização vocacional, sendo que a cada dia
surgem mais áreas de atuação e novidades
Assim, cada
época tem a sua forma de dar vazão à realização vocacional, sendo que a cada
dia surgem mais áreas de atuação e novidades, mas não chega a apagar os
interesses antigos. "A humanidade continua a lidar com questões sociais,
filosóficas e políticas, com a língua, a história e os outros países. A maneira
como se lida com elas é que muda", explica Machado. E acrescenta que não
há época que possa causar impedimento, isto é, que seja mais promissora para
uma determinada vocação. "Em algumas épocas, algumas áreas estão mais na
moda e dão mais retorno financeiro. Mas o primeiro critério para se encontrar e
exercer a vocação não pode ser o retorno financeiro, e sim a realização do que
a natureza determina. A felicidade não depende de dinheiro, mas de
realização", diz. Quando existe a vocação, as pessoas fazem seu trabalho
em menor tempo. Estimular a vocação era uma forma de beneficiar a sociedade
como um todo
"Um
mestre quis mostrar ao seu discípulo o que era realização. Foram até um jogador
de xadrez e perguntaram: o que você faz? E ele respondeu: - jogo xadrez. O que
faz para viver?, perguntaram novamente: - Jogo xadrez, ele respondeu. E o que
gosta de fazer? Disseram - Jogar xadrez!, disse finalmente o velho. Ao saírem
dali, encontraram um estudioso e lhe perguntaram: você que é estudioso, o que
sabe fazer? Ele respondeu - sei várias coisas: poesia, música, história,
caligrafia... - mas o que você sabe BEM?, perguntou o mestre; ao que o
estudioso respondeu "bem, sei de tudo um pouco, mas acho que não sei nada
tão profundamente". O mestre se virou para o seu discípulo e disse: - viu?
Temos que experimentar de tudo, pra encontrarmos a nós mesmos; e tudo se resume
em fazer uma coisa só: aquilo que nos torna felizes".
Falha
na educação.
Confúcio
dizia: "Os preceptores de hoje limitam-se a repetir coisas, a aborrecer os
alunos com perguntas freqüentes e a repetir-se incessantemente. Não procuram
descobrir a inclinação natural de cada um, e assim os estudantes são levados a
fingir amor aos estudos, sem que nada se faça por explorar o que há de melhor
em seus talentos. O que se fornece aos estudantes é errado, e não menos errado
é o que deles se espera. Resultado: os alunos aprendem às escondidas as coisas
de que gostam e detestam os professores, exasperam-se com as dificuldades do
curso e não reconhecem nele o bem que lhes traz. Ainda que passem regularmente
por todas as séries, uma vez completado o período de colégio, já se apressam em
deixá-lo. Eis por que falha a educação em nossos dias".
Conselho parecido vem de Confúcio. Segundo ele,
deveríamos buscar nossas propensões para nos realizarmos interiormente e não
para obter riqueza, honraria ou poder. Estes valores podem até ocorrer, mas
devem ser conseqüências e não um fim. "Buscar a propensão é buscar aquilo
que o ser faz melhor. Fazendo isso com graça, arte e perfeição, a pessoa obtém
satisfação interna, e disso resulta uma vida realizada. Sem uma vida realizada,
não se pode alcançar a felicidade virtuosa", ressalva Bueno. Confúcio conclamava
as pessoas a fazerem, de certo modo, aquilo que mais as agradava. Por exemplo,
do que adiantaria um diploma ou um título para ser pendurado na parede? Do que
adianta trabalhar em algo que não o satisfaz? Embora a sociedade costume
identificar o ganho monetário com a realização pessoal, Confúcio alertava que
esse não era o caminho de uma felicidade verdadeira. "Afinal, alguém pode
ser feliz num emprego em que ganha menos, mas faz o que gosta. Quantos músicos,
por exemplo, já não passaram fome antes de alcançar qualquer sucesso, pelo
simples amor à música?", diz Bueno.
Na visão
confucionista, uma pessoa só pode ser feliz, realmente, se realizar sua
propensão. E isso quer dizer que uma pessoa pode até obter ganhos desempenhando
bem seu papel profissional, mas o ideal é que ela se realize plenamente naquilo
que lhe é mais natural, naquilo que mais se aproxima do seu talento. "Se
for feliz, então até mesmo na mais humilde das profissões (numa visão cultural,
claro) ela pode se realizar", explica Bueno. Falando assim, pode parecer
que a vocação está relacionada apenas a uma realização íntima e pessoal.
Engano. Isasa, da Nova Acrópole, explica que a base do estudo vocacional vem
dos gregos e romanos, que davam grande importância à vocação por uma questão
política e social: a sociedade, para ser justa, deve garantir todas as
necessidades de seus componentes. E isso só se alcança quando cada um
desenvolve sua vocação. "Sem ela, as coisas ficam mais caras, malfeitas ou
mesmo inviáveis. Quando existe a vocação, as pessoas fazem seu trabalho em
menor tempo, com menos custo e maior qualidade. Descobrir e estimular a
vocação, para esses pensadores antigos, era uma forma de beneficiar a sociedade
como um todo, havia uma importância política", diz Isasa.
Com a tendência da sociedade hoje relacionar o sucesso com a
profissão, a vocação sempre é relacionada a uma habilidade profissional. Mas
não é assim. "Na Filosofia, pensamos que vocação é um chamado para a
realização do indivíduo. Realização que diz respeito ao trabalho, mas não como
profissão e sim como exercício de uma natureza própria que se concretiza por
meio deste trabalho. Não é um trabalho voltado para sobrevivência", diz
Machado. O hobby, por exemplo, como uma atividade
exercida exclusivamente como forma de lazer, distração ou passatempo, tem muito
a ver com a vocação. "Em termos de qualidade, conteúdo e contexto,hobby e
vocação são o mesmo. Hoje definimos o hobby como
algo que se gosta de fazer, quer fazer e faz bem. Três pontos que têm a ver
diretamente com a vocação: gostar, querer e saber", explica Isasa, da Nova
Acrópole.
A base do pensamento chinês.
A idéia de vocação já
existia na China Antiga e era inseparável do conceito de Shi (que
podemos traduzir como propensão), fundamental para compreender as estruturas do
pensamento chinês. Apesar das inúmeras escolas filosóficas que a China
vivenciou em sua antiguidade, o pensar chinês assenta-se até hoje em uma série
de conceitos que são comuns a todas estas linhas, e a concepção de
"propensão" é uma delas, explica o doutor em Filosofia e Sinólogo e
professor da FAFIUV de União da Vitória, no Paraná, André Bueno. "Os
chineses acreditavam que todas as coisas na natureza (objetos, seres vivos e
não vivos) possuíam propriedades em sua constituição que lhes garantiam um modo
de manifestarse em particular, diferenciando-se umas das outras. Esta propensão
favorece um meio específico de agir, transformar-se e realizar-se, não
importando qual seja a condição do ser", explica Bueno. Segue um exemplo
ilustrativo: "A madeira, como substância, pode ser talhada, mas não
derretida. Qualquer objeto que venha a ser feito de madeira deve ser
confeccionado, portanto, a partir das possibilidades que este material oferece
de maneira específica. A madeira não pode cumprir as mesmas funções do barro e
do metal. Ela pode incendiar-se, logo, é mais adequada a um determinado uso do
que outro. Este conjunto de características que permitem a nós denominarmos
algo como 'madeira' existe, assim, em função das propensões que este
determinado elemento possui."
O conceito de propensão
permeia a existência de todas as coisas. Mas o pensamento chinês dispõe ainda
de uma outra teoria que regula o funcionamento da propensão, a concepção de
"oposição complementar". Para os chineses, todas as coisas existem
por meio de um processo dialético, composto por yang e yin. Yang e Yin não
devem ser entendidos apenas como uma dualidade simples entre 'macho' e 'fêmea',
'rápido' ou 'lento', etc. Eles representam coordenadas da realidade, que
indicam que, se uma coisa existe, logo, deve existir algo contrário que a
comprova e a regula. Assim sendo, se existe 'luz', esta só pode ser comprovada
pela sua ausência, por exemplo, que é a 'escuridão' ou 'sombra'. Se existe a
idéia de 'macho', é porque existe também a idéia de 'fêmea', e assim
sucessivamente. "Não se trata pois de apenas classificar, mas descobrir
que uma coisa existe em função de estar associada a outra", explica Bueno.
Deste modo, se a propensão é um conceito universal, logo ela deve ser regulada
pelo processo de manifestação particular. "Se todas as coisas têm uma
propensão, cada coisa o tem de um modo singular, seja mais evidente ou não,
mais ou menos intenso, etc", afirma o professor.
Como não poderia deixar de
ser, ocorre o mesmo com os seres humanos. Bueno dá como exemplo o caso de dois
alunos de piano: eles iniciam no mesmo período, cumprem o mesmo número de
aulas, mas depois de um certo período, um demonstra um talento incomum e o
outro continua desempenhando apenas o básico. Por que um é melhor que o outro?
"Para os chineses, porque um deles tem uma propensão maior para tocar
piano. Isso não impede o outro aluno de aprender por meio de um esforço
contínuo, mas cada pessoa tem uma propensão que a favorece, como forma de
talento especial ou tendência", afirma Bueno. Este foi um dos alicerces
que fundamentaram o pensamento de Confúcio sobre o ser humano. Mas Confúcio não
pensava na propensão de forma fatalista, mas sim realizante, explica o
professor.
Vocação
se descobre na escola
Não é comum que uma pessoa
descubra sozinha qual é sua própria vocação. Há um processo educativo para
desenvolver esse processo, já que a vocação deve ser direcionada por pedagogos
a partir dos quatro anos de idade. Assim, a vocação faz parte da educação.
"Educar significa educir, fazer
com que o aluno traga para fora o que tem dentro de si. Uma educação sem
vocação não tem espírito, não tem inteligência", defende Michel Echenique
Isasa. Isto é, se o indivíduo não é educado, se não recebe um direcionamento
desde cedo para a vocação, ele não vai nem ter idéia de que ela existe.
"Hoje, nas melhores faculdades do mundo, com as melhores condições
sociais, o ser humano não desenvolve mais de três por cento de seu potencial.
Não há uma educação vocacionada, o que levaria a um melhor aproveitamento do
potencial de cada um", acredita Isasa.
O diretor nacional da
Associação Cultural Nova Acrópole lembra que não existe um estudo acadêmico ou
uma disciplina que se encarregue em termos educacionais, filosóficos e
científicos de desenvolver a vocação. Encontrar a vocação é hoje algo que só
ocorre por acaso. E encontrar a vocação independe do nível de riqueza ou do
estrato social a que a pessoa pertence. "Alguns, mesmo sem saber muito bem
como, descobrem sua vocação e têm força moral e inteligência para
desenvolvê-la. Mas isso teria de ser uma conquista de todos, proporcionada pelo
ensino em seus vários níveis", diz Isasa. Segundo ele, a descoberta da
vocação de cada um resolveria muitos problemas sociais.
Diz uma passagem do Liji
(Manual dos rituais), antigo texto resgatado por Confúcio:
"No final do primeiro
ano, procedia-se a uma tentativa de verificar até que ponto os alunos sabiam
pontuar seus escritos e descobrir suas vocações. No fim de três anos,
procurava-se determinar os hábitos de estudo dos alunos e de sua vida em grupo.
No fim de cinco anos investigava-se até onde iam os conhecimentos gerais dos
alunos e até que ponto eles haviam acompanhado os preceptores. No fim de sete
anos, observava- se como se haviam desenvolvido as idéias dos alunos e que
espécie de amigos cada qual escolhera para si. {...} Ao cabo de nove anos era
de esperar-se que o aluno dominasse as várias matérias estudadas e tivesse uma
compreensão geral da vida, tendo assim firmado o próprio caráter em bases de
onde não Reprodução de um dos livros do Manual dos Rituais pudesse
retroceder".
Fonte: Revista Filosofia, Patrícia Pereira.