domingo, 3 de junho de 2012

Sócrates - Conhece-te a ti mesmo.


Originário do latim vocare, vocação quer dizer "chamado". E, como chamado, não está relacionado de forma direta a uma profissão, mas a uma questão maior: algo que diz respeito à plena realização da natureza do indivíduo. Aquele que atua dentro de sua vocação e trabalha com o que faz parte de sua natureza tem mais possibilidades de encontrar a realização e, por conseqüência, a felicidade. Como sugeriu Confúcio, professor, filósofo e teórico político chinês, que influenciou a Ásia Oriental com seus pensamentos: "Escolha um trabalho que você ame e não terás que trabalhar um único dia em sua vida".

O prazer de viver parece estar muito relacionado à realização da vocação. Os epicuristas, por exemplo, já aconselhavam aos homens que buscassem o prazer duradouro e não o efêmero. Prazer duradouro que só pode ser alcançado na realização da própria natureza do indivíduo. Confúcio propunha, como um meio de encontrar essa vocação, que as pessoas trilhassem um caminho de experimentação, baseado na educação, explica o doutor em Filosofia e Sinólogo, professor da Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória (FAFIUV), no Paraná, André Bueno.
A pedagogia de Confúcio não buscava ser condicionante, porém, ele defendia que as pessoas na época deviam aprender atividades tão diversas como caligrafia, música, arco e flecha para encontrarem aquilo de que mais gostavam de fazer. É neste momento, explica Bueno, quando se percebe que um aluno parece ter potencial especial para algo, que se pode constatar a idéia de propensão: e se ele sente um prazer especial no que faz, e o faz de maneira que isso beneficie não só a si, mas tudo à sua volta, então está encontrando o caminho certo para sua vida, está encontrando uma via (o seu Dao, conceito chinês que pressupõe a idéia de que pode ser encontrada uma via realizante).
O despertar da vocação não é algo mágico, está mesmo ligado à educação, defende o diretor nacional da Associação Cultural Nova Acrópole, o filósofo Michel Echenique Isasa, autor do livro Como reconhecer sua vocação. Para Isasa, a criança, desde cedo, precisa ser observada e orientada por educadores para encontrar seu caminho. Uma busca que não se encerra na infância, já que, ao longo da vida, o ser humano passa por várias etapas de seleção vocacional e, em todas elas, deveria ser direcionado. Para outro membro da Nova Acrópole, Luís Eduardo Wexell Machado, o ponto- chave para se encontrar a vocação é observar. "É comum que o jovem chegue ao vestibular e não saiba que curso escolher. Troca de Engenharia para Medicina, de Química para Filosofia, campos muito diferentes. Isso porque falta capacidade de observação dos mais velhos em relação aos jovens", analisa Machado. Mas Machado aponta um outro lado, a da auto-observação, ligado à famosa frase de Sócrates "Conhece-te a ti mesmo", inscrita no templo de Apolo, uma máxima filosófica essencial para gerar autorreflexão. As pessoas costumam trabalhar com orientação vocacional e uma série de instrumentos que ajudam a encontrar a vocação de cada um, mas, fundamentalmente, é a reflexão pessoal que leva ao entendimento sobre a vocação.
A Filosofia pode ajudar nessa hora, ao fornecer textos que ajudam a refletir sobre si. "Os estóicos ensinam o homem a refletir sobre as coisas dele e não dar importância ao que é dos outros. Dizem que o homem deve se preocupar com o que depende dele e não com o que não depende", diz Machado. A aplicação se daria, por exemplo, na hora de fazer escolhas, porque somos levados por certas tendências fortes de nossa cultura e quase sempre analisamos as opções a partir de um ponto de vista que tomamos como nosso, mas que, de fato, não é, pertence ao outro. "É algo que assumimos como nosso pela pressão, pela força social que aquilo tem, seja no núcleo familiar ou dos amigos. A Filosofia pode nos ajudar bastante a obtermos um grau de conhecimento maior sobre nós mesmos, como no caso da orientação dada pelos estóicos", explica Machado.
Para Confúcio, a vocação é a manifestação humana da propensão individual. Bueno explica que os chineses acreditavam que todas as coisas na natureza possuíam propriedades em sua constituição, que lhes garantiam um modo de manifestar-se em particular, diferenciando-se umas das outras. Esta propensão favorece um meio específico de agir, transformar-se e realizar-se, não importando qual seja a condição do ser. Sendo assim, todos os seres humanos têm uma propensão e, por causa disso, nenhum talento é melhor do que o outro, explica Bueno. "Na verdade, é o uso e a habilidade que alguém alcança em aproveitar seu próprio talento que dá importância a ele. Isso significa que a sociedade pode até buscar privilegiar determinados talentos (como é o caso de grandes músicos, guerreiros, atletas, etc.), mas não existe uma propensão melhor que outra: as propensões, na verdade, são importantes pelo que elas são em si", explica.

Grupos vocacionais.
Os seres humanos podem ser divididos em grupos vocacionais. Em comum, cada grupo tem tendências, inclinações e dons que o leva a exercer certo tipo de atividade. "Principalmente atividades necessárias para a sobrevivência e o desenvolvimento social", afirma o diretor nacional da Associação Cultural Nova Acrópole e autor do livro Como reconhecer sua vocação, o filósofo Michel Echenique Isasa. De acordo com ele, pode-se falar em cinco grandes grupos vocacionais que, com o passar do tempo, foram se desdobrando em muitos outros. A divisão inicial, feita ainda na antiguidade por filósofos gregos, inclui a seguinte classificação: homens com tendência ao trabalho artesanal, à produção de objetos materiais; outros, propensos à agricultura; um terceiro grupo, mais ligado ao comércio, à criação de empresas; o quarto seria aquele com inclinações para trabalhar com questões sociais, de segurança, de liderança e de organização política; e o quinto grupo, formado por pessoas com tendências para a área educacional e sacerdotal.

Bueno exemplifica essa situação no caso de um pescador, já que de sua habilidade provém o alimento que sustenta a população. Em situações normais, esta capacidade não é considerada uma das mais importantes, apesar de a sociedade não perceber que, sem ele, passará fome e o todo não funcionará até certo ponto. Já numa situação de crise, no entanto, seu talento torna-se ainda mais evidente, pois é a ele que os outros precisam recorrer. "Isso não modificou, na verdade, a propensão de alguém em conhecer o mar, a arte da pesca, bem como não afeta o seu 'talento nato'. A relevância social pode até ser contextual, mas a propensão deve ser atingida com outro fim: a realização pessoal e a felicidade", diz Bueno.
Assim, cada época tem a sua forma de dar vazão à realização vocacional, sendo que a cada dia surgem mais áreas de atuação e novidades
Assim, cada época tem a sua forma de dar vazão à realização vocacional, sendo que a cada dia surgem mais áreas de atuação e novidades, mas não chega a apagar os interesses antigos. "A humanidade continua a lidar com questões sociais, filosóficas e políticas, com a língua, a história e os outros países. A maneira como se lida com elas é que muda", explica Machado. E acrescenta que não há época que possa causar impedimento, isto é, que seja mais promissora para uma determinada vocação. "Em algumas épocas, algumas áreas estão mais na moda e dão mais retorno financeiro. Mas o primeiro critério para se encontrar e exercer a vocação não pode ser o retorno financeiro, e sim a realização do que a natureza determina. A felicidade não depende de dinheiro, mas de realização", diz. Quando existe a vocação, as pessoas fazem seu trabalho em menor tempo. Estimular a vocação era uma forma de beneficiar a sociedade como um todo

"Um mestre quis mostrar ao seu discípulo o que era realização. Foram até um jogador de xadrez e perguntaram: o que você faz? E ele respondeu: - jogo xadrez. O que faz para viver?, perguntaram novamente: - Jogo xadrez, ele respondeu. E o que gosta de fazer? Disseram - Jogar xadrez!, disse finalmente o velho. Ao saírem dali, encontraram um estudioso e lhe perguntaram: você que é estudioso, o que sabe fazer? Ele respondeu - sei várias coisas: poesia, música, história, caligrafia... - mas o que você sabe BEM?, perguntou o mestre; ao que o estudioso respondeu "bem, sei de tudo um pouco, mas acho que não sei nada tão profundamente". O mestre se virou para o seu discípulo e disse: - viu? Temos que experimentar de tudo, pra encontrarmos a nós mesmos; e tudo se resume em fazer uma coisa só: aquilo que nos torna felizes".


Falha na educação.
Confúcio dizia: "Os preceptores de hoje limitam-se a repetir coisas, a aborrecer os alunos com perguntas freqüentes e a repetir-se incessantemente. Não procuram descobrir a inclinação natural de cada um, e assim os estudantes são levados a fingir amor aos estudos, sem que nada se faça por explorar o que há de melhor em seus talentos. O que se fornece aos estudantes é errado, e não menos errado é o que deles se espera. Resultado: os alunos aprendem às escondidas as coisas de que gostam e detestam os professores, exasperam-se com as dificuldades do curso e não reconhecem nele o bem que lhes traz. Ainda que passem regularmente por todas as séries, uma vez completado o período de colégio, já se apressam em deixá-lo. Eis por que falha a educação em nossos dias".

Conselho parecido vem de Confúcio. Segundo ele, deveríamos buscar nossas propensões para nos realizarmos interiormente e não para obter riqueza, honraria ou poder. Estes valores podem até ocorrer, mas devem ser conseqüências e não um fim. "Buscar a propensão é buscar aquilo que o ser faz melhor. Fazendo isso com graça, arte e perfeição, a pessoa obtém satisfação interna, e disso resulta uma vida realizada. Sem uma vida realizada, não se pode alcançar a felicidade virtuosa", ressalva Bueno. Confúcio conclamava as pessoas a fazerem, de certo modo, aquilo que mais as agradava. Por exemplo, do que adiantaria um diploma ou um título para ser pendurado na parede? Do que adianta trabalhar em algo que não o satisfaz? Embora a sociedade costume identificar o ganho monetário com a realização pessoal, Confúcio alertava que esse não era o caminho de uma felicidade verdadeira. "Afinal, alguém pode ser feliz num emprego em que ganha menos, mas faz o que gosta. Quantos músicos, por exemplo, já não passaram fome antes de alcançar qualquer sucesso, pelo simples amor à música?", diz Bueno.
Na visão confucionista, uma pessoa só pode ser feliz, realmente, se realizar sua propensão. E isso quer dizer que uma pessoa pode até obter ganhos desempenhando bem seu papel profissional, mas o ideal é que ela se realize plenamente naquilo que lhe é mais natural, naquilo que mais se aproxima do seu talento. "Se for feliz, então até mesmo na mais humilde das profissões (numa visão cultural, claro) ela pode se realizar", explica Bueno. Falando assim, pode parecer que a vocação está relacionada apenas a uma realização íntima e pessoal. Engano. Isasa, da Nova Acrópole, explica que a base do estudo vocacional vem dos gregos e romanos, que davam grande importância à vocação por uma questão política e social: a sociedade, para ser justa, deve garantir todas as necessidades de seus componentes. E isso só se alcança quando cada um desenvolve sua vocação. "Sem ela, as coisas ficam mais caras, malfeitas ou mesmo inviáveis. Quando existe a vocação, as pessoas fazem seu trabalho em menor tempo, com menos custo e maior qualidade. Descobrir e estimular a vocação, para esses pensadores antigos, era uma forma de beneficiar a sociedade como um todo, havia uma importância política", diz Isasa.
Com a tendência da sociedade hoje relacionar o sucesso com a profissão, a vocação sempre é relacionada a uma habilidade profissional. Mas não é assim. "Na Filosofia, pensamos que vocação é um chamado para a realização do indivíduo. Realização que diz respeito ao trabalho, mas não como profissão e sim como exercício de uma natureza própria que se concretiza por meio deste trabalho. Não é um trabalho voltado para sobrevivência", diz Machado. O hobby, por exemplo, como uma atividade exercida exclusivamente como forma de lazer, distração ou passatempo, tem muito a ver com a vocação. "Em termos de qualidade, conteúdo e contexto,hobby e vocação são o mesmo. Hoje definimos o hobby como algo que se gosta de fazer, quer fazer e faz bem. Três pontos que têm a ver diretamente com a vocação: gostar, querer e saber", explica Isasa, da Nova Acrópole.

A base do pensamento chinês.
A idéia de vocação já existia na China Antiga e era inseparável do conceito de Shi (que podemos traduzir como propensão), fundamental para compreender as estruturas do pensamento chinês. Apesar das inúmeras escolas filosóficas que a China vivenciou em sua antiguidade, o pensar chinês assenta-se até hoje em uma série de conceitos que são comuns a todas estas linhas, e a concepção de "propensão" é uma delas, explica o doutor em Filosofia e Sinólogo e professor da FAFIUV de União da Vitória, no Paraná, André Bueno. "Os chineses acreditavam que todas as coisas na natureza (objetos, seres vivos e não vivos) possuíam propriedades em sua constituição que lhes garantiam um modo de manifestarse em particular, diferenciando-se umas das outras. Esta propensão favorece um meio específico de agir, transformar-se e realizar-se, não importando qual seja a condição do ser", explica Bueno. Segue um exemplo ilustrativo: "A madeira, como substância, pode ser talhada, mas não derretida. Qualquer objeto que venha a ser feito de madeira deve ser confeccionado, portanto, a partir das possibilidades que este material oferece de maneira específica. A madeira não pode cumprir as mesmas funções do barro e do metal. Ela pode incendiar-se, logo, é mais adequada a um determinado uso do que outro. Este conjunto de características que permitem a nós denominarmos algo como 'madeira' existe, assim, em função das propensões que este determinado elemento possui."
O conceito de propensão permeia a existência de todas as coisas. Mas o pensamento chinês dispõe ainda de uma outra teoria que regula o funcionamento da propensão, a concepção de "oposição complementar". Para os chineses, todas as coisas existem por meio de um processo dialético, composto por yang e yinYang e Yin não devem ser entendidos apenas como uma dualidade simples entre 'macho' e 'fêmea', 'rápido' ou 'lento', etc. Eles representam coordenadas da realidade, que indicam que, se uma coisa existe, logo, deve existir algo contrário que a comprova e a regula. Assim sendo, se existe 'luz', esta só pode ser comprovada pela sua ausência, por exemplo, que é a 'escuridão' ou 'sombra'. Se existe a idéia de 'macho', é porque existe também a idéia de 'fêmea', e assim sucessivamente. "Não se trata pois de apenas classificar, mas descobrir que uma coisa existe em função de estar associada a outra", explica Bueno. Deste modo, se a propensão é um conceito universal, logo ela deve ser regulada pelo processo de manifestação particular. "Se todas as coisas têm uma propensão, cada coisa o tem de um modo singular, seja mais evidente ou não, mais ou menos intenso, etc", afirma o professor.
Como não poderia deixar de ser, ocorre o mesmo com os seres humanos. Bueno dá como exemplo o caso de dois alunos de piano: eles iniciam no mesmo período, cumprem o mesmo número de aulas, mas depois de um certo período, um demonstra um talento incomum e o outro continua desempenhando apenas o básico. Por que um é melhor que o outro? "Para os chineses, porque um deles tem uma propensão maior para tocar piano. Isso não impede o outro aluno de aprender por meio de um esforço contínuo, mas cada pessoa tem uma propensão que a favorece, como forma de talento especial ou tendência", afirma Bueno. Este foi um dos alicerces que fundamentaram o pensamento de Confúcio sobre o ser humano. Mas Confúcio não pensava na propensão de forma fatalista, mas sim realizante, explica o professor.

Vocação se descobre na escola
Não é comum que uma pessoa descubra sozinha qual é sua própria vocação. Há um processo educativo para desenvolver esse processo, já que a vocação deve ser direcionada por pedagogos a partir dos quatro anos de idade. Assim, a vocação faz parte da educação. "Educar significa educir, fazer com que o aluno traga para fora o que tem dentro de si. Uma educação sem vocação não tem espírito, não tem inteligência", defende Michel Echenique Isasa. Isto é, se o indivíduo não é educado, se não recebe um direcionamento desde cedo para a vocação, ele não vai nem ter idéia de que ela existe. "Hoje, nas melhores faculdades do mundo, com as melhores condições sociais, o ser humano não desenvolve mais de três por cento de seu potencial. Não há uma educação vocacionada, o que levaria a um melhor aproveitamento do potencial de cada um", acredita Isasa.
O diretor nacional da Associação Cultural Nova Acrópole lembra que não existe um estudo acadêmico ou uma disciplina que se encarregue em termos educacionais, filosóficos e científicos de desenvolver a vocação. Encontrar a vocação é hoje algo que só ocorre por acaso. E encontrar a vocação independe do nível de riqueza ou do estrato social a que a pessoa pertence. "Alguns, mesmo sem saber muito bem como, descobrem sua vocação e têm força moral e inteligência para desenvolvê-la. Mas isso teria de ser uma conquista de todos, proporcionada pelo ensino em seus vários níveis", diz Isasa. Segundo ele, a descoberta da vocação de cada um resolveria muitos problemas sociais.

Diz uma passagem do Liji (Manual dos rituais), antigo texto resgatado por Confúcio:
"No final do primeiro ano, procedia-se a uma tentativa de verificar até que ponto os alunos sabiam pontuar seus escritos e descobrir suas vocações. No fim de três anos, procurava-se determinar os hábitos de estudo dos alunos e de sua vida em grupo. No fim de cinco anos investigava-se até onde iam os conhecimentos gerais dos alunos e até que ponto eles haviam acompanhado os preceptores. No fim de sete anos, observava- se como se haviam desenvolvido as idéias dos alunos e que espécie de amigos cada qual escolhera para si. {...} Ao cabo de nove anos era de esperar-se que o aluno dominasse as várias matérias estudadas e tivesse uma compreensão geral da vida, tendo assim firmado o próprio caráter em bases de onde não Reprodução de um dos livros do Manual dos Rituais pudesse retroceder".

Fonte: Revista Filosofia, Patrícia Pereira.