Na sociedade atual, em que as imagens tomaram o lugar da reflexão e da
interioridade, proliferam indivíduos indiferenciados e passivos, meros
consumidores da aparente subjetividade alheia. O sucesso dos reality shows é a
melhor expressão deste tempo.
A pressa
vertiginosa da neurótica e crônica falta de tempo do cidadão da sociedade
hipermoderna, exclui dele o apreço pela reflexão e pelo exercício da
consciência. Essa condição torna-o mais suscetível a sucumbir às forças envolventes
da "cultura das imagens", potencializando ainda mais os seus efeitos
alienantes na subjetividade humana. A transformação da vida social e da própria
cultura em imagens espetaculares difundidas pelos meios de comunicação como
forma de se obter o controle político sobre as massas foi denunciada
criticamente por Guy Debord pelo conceito de "Sociedade do
Espetáculo", que se caracteriza pela produção de uma falsa experiência da
realidade, que não encontra nenhuma associação com a dinâmica da vida concreta
na qual estamos inseridos cotidianamente.
A expressão de ordem das relações
sociais media das pela dimensão espetacular da vida é: "Apareço, logo
existo". Trata-se da distorção do cogito cartesiano.
O dispositivo espetacular próprio da sociedade contemporânea
representa uma ruptura com o postulado da "metafísica da
interioridade" (segundo o qual, o fundamento puro da verdade se encontra
subjacente no âmago humano, e a noção de uma experiência racional da
subjetividade, tal como realizada por Descartes nas suas Meditações
Metafísicas). Para Descartes, podemos duvidar de todos os dados provenientes
dos sentidos e mesmo de nossa existência corporal, mas não de nossa existência
enquanto ser pensante, pois, uma vez que eu, enquanto sujeito, duvido, eu
penso, pois a dúvida é um ato de pensamento. Ora, se eu penso, eu existo, pois
para que alguma coisa pense, ela deve necessariamente existir. Mediante esta
constatação evidente, o sujeito pode pronunciar o "penso, logo
existo", afirmação que se instaura como a célebre fórmula docogito cartesiano,
fundamento primordial para que possamos inferir a existência de tudo aquilo que
percebemos na realidade circundante.
Quais são as certezas que podemos retirar da dúvida metódica
empregada por Descartes? Que a realidade abstrata, subjetiva, é mais evidente e
precisa do que a realidade concreta, material, pois a existência do mundo
físico pode ser posta em dúvida, assim como a existência de nosso próprio
corpo. A mente humana, contudo, é evidente por natureza, e se converte no ponto
inicial para a instauração da verdade do mundo. O racionalismo cartesiano,
sustentado pelo primado da subjetividade, é, portanto, um dos marcos do
paradigma da Filosofia moderna. Porém, com o advento das grandes tecnologias da
sociedade midiática, ocorre uma grande crise no fundamento da experiência da
subjetividade, especialmente pelo estabelecimento da "Sociedade do
Espetáculo".
Olhar espetacular.
A difusão da televisão contribuiu intensamente para a
formação dessa nova modalidade perceptiva que, entretanto, manifesta
convergências valorativas com o antigo desejo curioso de se olhar aquilo que é
privado e sensoriamente espetacular. Não há distinção entre os costumes antigos
e os atuais: em ambos os casos, o ser humano aprisionado pela trama do
espetáculo foi destituído de sua condição humana, sendo transformado em um
objeto destinado a satisfazer o gosto popular pela visualização de imagens
sedutoras, narcotizantes das capacidades reflexivas do ser humano. Guy Debord
denuncia a ideologia da "Sociedade do Espetáculo", apontando como as
nossas relações interpessoais, no mundo contemporâneo, adquiriram tonalidades
baseadas no consumo simbólico de imagens: "Considerado de acordo com seu
próprio termo, o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de que
toda vida humana - isto é, social - é simples aparência. Mas a crítica que
atinge a verdade do espetáculo o descreve como a negação visível da vida, como
negação da vida que se tornou visível".
expressão de ordem das relações sociais mediadas pela
dimensão espetacular da vida é: "Apareço, logo existo". Trata-se da
distorção do cogito cartesiano e do primado da subjetividade humana enquanto
signo de uma metafísica da interioridade em favor de uma legitimação social da
superficialidade. As instâncias sociais regidas pelo sistema espetacular são
baseadas na contemplação passiva dos acontecimentos, em que os indivíduos, em
vez de viverem autonomamente, olham avidamente as ações dos outros, por meio
dos mais diversos dispositivos técnicos disponíveis. Para Eugênio Bucci e Maria
Rita Kehl, "O que nos diferencia hoje de outros períodos da modernidade é
a espetacularização da imagem e seu efeito sobre a massa dos cidadãos
indiferenciados, transformados em plateia ou em uma multidão de consumidores da
aparente subjetividade alheia".²
O dispositivo espetacular cria o controle social pela
sedução imagética da exposição alheia, suprimindo, todavia, a difícil relação
intersubjetiva da alteridade; com efeito, a própria experiência da compreensão
da subjetividade da figura do Outro se torna fragmentada a partir do mecanismo
espetacular, como destacado por Guy Debord: "O espetáculo não é um
conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por
imagens".³ O ser humano se torna, assim, um simulacro imagético,
desprovido de substancialidade e autonomia em sua vida cotidiana, direcionada
apenas para o consumo de imagens sedutoras, que suprimem paulatinamente a noção
de uma experiência interior inalienável. Na dimensão espetacular, vivemos sob a
égide da moral da exterioridade, tudo deve ser visível. Eugênio Bucci e Maria
Rita Kehl argumentam que "dependemos do espetáculo para confirmarmos que
existimos e para nos orientarmos em meio a nossos semelhantes, dos quais nos
isolamos".
Cada vez mais o sistema midiático da era tecnicista se
caracteriza pela criação de gêneros de entretenimento de cunho majoritariamente
alienante, servindo apenas para manter a consciência telespectadora preenchida
do vazio intelectual e existencial de sua existência cotidiana. Isso ocorre
pelo fato de que a disponibilização de programações de elevado refinamento
cultural não é uma atividade muito conveniente para os propósitos meramente
lucrativos das grandes redes de televisão, que preconizam, acima de tudo,
manter a ordem medíocre vigente em nossa fragilizada cultura massificada.
Trata-se de uma transposição contemporânea da política social do "Pão e
Circo", que, em nossa contemporaneidade, se expressa em diversas
configurações espetaculares, e uma delas se materializa no formato reality show. Entre todos há uma convergência tipológica
evidente: o caráter de diversão espetacular, na qual as ações humanas se tornam
um gênero de consumo para os olhos curiosos da multidão. Para Guy Debord,
"sob todas as suas formas particulares - informação ou propaganda -
publicidade ou consumo direto de divertimentos -, o espetáculo constitui o
modelo atual de vida dominante na sociedade. É a afirmação onipresente da essência
já feita na produção, e o consumo que decorre dessa escolha"
O
reality show significa a degradação da capacidade de abstração da masa social,
que deixa de se esforçar intelectualmente para receber imagens editadas.
Reality shows.
Dentre todos
os aparatos próprios da exacerbação do olhar concernentes ao modelo de relações
sociais mediadas pelo sistema espetacular, certamente o gênero de
entretenimento do reality show se evidencia como a culminação por
excelência desse dispositivo massificador, a partir da capacidade de realizar a
máxima exposição da intimidade humana diante do olhar coletivo. O sistema
técnico do reality show se utiliza do mecanismo visual
da disposição espetacular, para que possa vir a exercer o seu efeito sedutor
sobre a fragilizada subjetividade do espectador, ávido de conhecer os detalhes
íntimos da vida dos protagonistas do programa, protagonistas que representam
uma experiência desprovida de autêntica subjetividade psicológica ou realidade
interior: não é um sujeito que
participa de um reality show, mas um papel espetacular forjado em
prol do consumo social de imagens. De acordo com Georges Balandier, "os
espetáculos da realidade [os reality shows] introduzem no espaço televisivo
privado acontecimentos que criaram emoções privadas, dramatizam e são
arranjados segundo a lógica da ficção; buscam a intensidade dando ao fictício a
cobertura do real, levando os participantes implicados a imitar o ator para
compartilhar o que viveram. As pessoas comuns que estão na imagem, promovidas a
este lugar pela escolha do acontecimento no qual foram protagonistas, e as que
estão diante da imagem contribuem juntas para essa mixagem. Coproduzem ficções
'realistas' que não se apresentam verdadeiramente como tais".
A criação do reality
show significa a
degradação das capacidades de abstração da massa social, pois esta, de um modo
geral, deixa de se esforçar intelectualmente para então vir a receber imagens
belas editadas pelos técnicos dos aparatos televisivos. Conforme salienta
Giovanni Sartori, "a televisão se destaca por uma coisa: é ao mesmo tempo
entretenimento, distração e diversão". Uma palavra de ordem pertinente para
tal perspectiva seria: "Uma imagem vale mais do que mil palavras".
Pela manipulação da sensualidade proporcionada pela exibição da privacidade dos
"corpos" participantes de um reality show, o sistema televisivo anestesia
as "dores do mundo" dos telespectadores, prometendo- lhes novos
prazeres compensadores, desde que eles vejam as imagens que o canal de
televisão lhes doa de forma tão generosa.
A grande liberdade do homem espetacular consiste na
capacidade de trocar continuamente de canal, caso um dado programa não
satisfaça os seus apetites hedonistas. Porém, a sua mentalidade obturada não
lhe permite ver que em verdade ele é a grande figura controlada, pois os seus
minutos de prazer são rigorosamente utilizados pelos mantenedores do reality
show e proprogramas
banais similares, para que se estabeleça um grande nível de audiência. Desse
modo, a fonte de lucro das corporações midiáticas nunca se encerra, perpetuando
assim a estrutura de poder que impera pelo uso comercial da alienação pública.
O discurso ideológico subjacente ao tipo midiático do reality
show pretende fazer
dele uma espécie de representação da "vida como ela é", um recorte da
dinâmica social transplantada para um local de confinamento, no qual indivíduos
despersonalizados agem como atores diante do grande teatro do mundo
hipermoderno da televisão. De certa maneira, esses indivíduos representam
publicamente no reality show os caracteres da vida concreta,
mas em sua expressão mais grosseira, pois o caráter competitivo dessa grande gincana voyeurista faz que cada participante faça
todo tipo de maquinação para obter a sonhada vitória, isto é, o prêmio
financeiro tão almejado destinado ao ganhador da disputa pela coroa da
mediocridade. Em vez de promover a valorização da subjetividade humana, o
mecanismo midiático do sistema televisivo estabelece uma moral secular marcada
pelo culto de um modelo vulgar de exterioridade desprovida de qualquer
densidade existencial, em que qualquer profundidade psicológica é considerada
algo prejudicial para o alcance do bem-estar existencial, pois "pensar é
cansativo", "pensar é perigoso".
O que vemos então no reality show midiático? O grande teatro do mundo de
nossas relações humanas cada vez mais fragilizadas pela afirmação egoísta dos
interesses pessoais e pela necessidade de satisfação dos interesses
materialistas mais grosseiros em detrimento da colaboração individual no
progresso pleno da esfera pública. Ao analisar esse mecanismo que representa a
intimidade e a banalidade da vida individual para o olhar da coletividade, Guy
Debord afirma: "A consciência espectadora, prisioneira de um universo
achatado, limitado pela tela do espetáculo para trás da qual sua própria vida
foi deportada, só conhece os interlocutores fictícios que a entretêm unicamente
com sua mercadoria e com a política de sua mercadoria"
A vida
coletiva na era da exibição da intimidade pessoal faz que os indivíduos se
apresentem como papéis a serem representados socialmente nas práticas
corriqueiras do cotidiano. Entretanto, o fato de podermos visualizar de maneira
mais intensa a intimidade das pessoas pelos aparatos técnicos, não significa
que estamos também mais próximo delas do ponto de vista afetivo. O acesso ao
mundo íntimo das pessoas, na verdade, é um procedimento que aumenta ainda mais
a distância entre os membros constituintes da coletividade social: "O
espetáculo é materialmente a expressão da separação e do afastamento entre o
homem e o homem"
Do momento em que vemos a maneira pela qual os indivíduos
agem em suas respectivas intimidades, podemos, supostamente, vir a conhecê-los
melhor? Vermos os comportamentos de um indivíduo pelas imagens televisivas não
significa que obtemos uma fonte eficaz para a sua compreensão adequada, pois
apenas vemos as atitudes tomadas pelo indivíduo que se tornou objeto de
espetáculo, o aspecto superficial de sua existência, de modo algum as suas
vivências íntimas. Para Gilles Lipovetsky, como o espaço público se esvazia
emocionalmente por excesso de informações, de solicitações e de estímulos, o eu
perde suas referências e sua unidade por excesso de atenção; o eu se tornou um
conjunto "imbecil".
Aparatos midiáticos.
A
transformação da nossa intimidade em objeto espetacular mediante o uso dos
aparatos midiáticos mantém a distância de nossa individualidade com o mundo
exterior, pois esse processo não ocorre de modo verdadeiramente interativo. O
que ocorre, na verdade, é um esvaziamento das relações humanas, pois a ânsia de
ver o comportamento íntimo do outro pela captação das imagens retira dessa
pessoa observada a condição simbólica de ser humano, tornando-a como uma
espécie de coisa consumível e descartável, cuja serventia maior é a de fornecer
entretenimento para a anônima coletividade social, que projeta os seus próprios
valores particulares nas pessoas monitoradas pelas câmeras televisivas,
esperando que elas atuem de acordo com os critérios estabelecidos externamente.
Vemos assim o caráter normativo presente na experiência espetacular, não
obstante a atmosfera de entretenimento e gozo que ela pretende transmitir
publicamente; entretanto, a melhor maneira de se exercer o controle sobre a
coletividade social é por sua sedução existencial pelo fluxo contínuo de
imagens espetaculares.
A pessoa que se torna uma coisa observável, mesmo adquirindo
uma identidade forjada pelos operadores midiáticos, não é capaz de transcender
esse jogo espetacular que o aliena de sua própria condição humana, marcada por
uma série de qualidades intrínsecas e pessoais que uma mera observação mediada
pelo aparato televisivo jamais possibilita uma real compreensão: "O
espetáculo é a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta em sua plenitude
a essência de todo sistema ideológico: o empobrecimento, a sujeição e a negação
da vida real".¹¹
O paradoxo da ideologia televisiva do olhar, segundo
Baudrillard, "é que quando tudo se dá a ver, não há nada mais para se ver,
pois ocorre a vulgarização humana da própria pessoa".¹² O indivíduo
transformado em espetáculo recebe do sistema midiático um conjunto de
estereótipos, cuja finalidade consiste em motivar na massa receptora de
informações uma relação artificial de identificação, facilmente dissolúvel,
quando o indivíduo espetacular não corresponde aos padrões dos
telespectadores/consumidores de imagens. O modelo midiático dos programas de
reality show representa uma espécie de voyeurismo consentido, pois os
participantes dessa atividade são continuamente observados pelo olhar público
mediado pelo aparelho de televisão.
Gilles
Lipovetsky afirma que a finalidade do espetáculo consiste em transformar o real
em representação falsa, ampliando a esfera da alienação e da desapropriação do
poder de pensamento crítico da massa social.¹³ O sistema das imagens, tal como
operado convencionalmente pelo sistema midiático corporativista, por si só não
consegue proporcionar ao indivíduo a sua formação efetivamente questionadora.
Para tanto, é necessário que haja a associação entre as imagens e os conceitos.
Porém, a estrutura normativa midiática não se preocupa em problematizar os
conceitos, as abstrações teóricas, pois tais elementos exigem concentração e
esforço mental da parte dos indivíduos.
Qual o preço a ser pago pela obtenção da fugidia ascensão
social pelo sucesso midiático? A coisificação do homem, que se submete a
situações degradantes para conquistar o ansiado sucesso publicitário, e assim
"sobreviver" no percurso desse programa. Cabe ressaltar que não é uma
vida árdua a seguida no período de confinamento voluntário dentro da grande
casa vigiada pelas câmeras secularizadas do reality show, pois o fomento do programa
fornece o conforto material para que as "estrelas hipermodernas" da
sociedade imagética possam revelar as suas "qualidades" mais
profundas: a futilidade, a deslealdade, a mesquinharia, o ciúme, a inveja, a
cobiça e o narcisismo, os sete grandes pecados capitais da sociedade midiática
glorificada pelo reality show.
O paradoxo da estrutura espetacular.
A experiência espetacular não é
um fenômeno recente na cultura ocidental. Na era romana, os embates entre os
gladiadores serviam de repasto para a excitação do povo. Nas práticas
inquisitórias cristãs, os hereges eram executados em dias festivos para o
regalo das turbas. A relação da civilização cristã com a estrutura espetacular
era paradoxal: ao mesmo tempo em que ocorriam as execuções públicas dos
condenados, como forma de se manter a dominação das massas pelo temor, a
teologia cristã denominava como concupiscência do olhar a curiosidade humana,
disposição de fazer uso inadequado daquele que era considerado o sentido mais
elevado: a visão. A disposição espetacular despertada pela cobiça do olhar
curioso evidenciava que a delimitação estabelecida pela moral cristã entre o
pecado e a pureza era tênue. O que poderia ser visto e o que era interdito? O
pudor moral impunha o recato visual aos indivíduos; a visualização das belas
formas corporais, atiçadoras da lascívia, deveria ser evitada, pois o ser
humano trazia em sua alma o gérmen do pecado, e todo estímulo sensório capaz de
promover sua imersão na luxúria deveria ser eliminado de sua vida. Quando menos
se vê, menos se sentem as erupções dos desejos na alma.
Fonte:
Revista Filosofia, Renato Nunes Bittencourt.