La Mettrie e o Médico-filósofo
Nas
sociedades ocidentais de hoje milhares de pessoas de todo os sexos, a maioria
delas de adultas, procuram com regularidade, por vezes diária, as inúmeras
academias de ginástica existentes nas suas cidades para manter-se em boa forma.
Trata-se de um exercício de peregrinação em busca do corpo perfeito, rijo, ágil
e saudável. Os modernos cilícios são os alteres, as antigas penitências agora
são as flexões, a procissão foi sucedida pelas pedaladas ergométricas, as
lágrimas que o devoto derramava emocionado perante o altar deram lugar ao suor
que escorre dos poros do esforçado cultivador do físico. O corpo no Ocidente
volta a ter a presença. Recupera o significado e a dimensão simbólica que
tivera na antigüidade clássica, na época pagã, quando os deuses tinham forma
humana. Por detrás disso, ainda que distante e remota, está a figura do francês
Julien Offray de La Mettrie, pouco conhecido, médico e pensador, morto há dois
séculos e meio, em 11 de novembro de 1751.
Uma Febre Reveladora
La Mettrie
foi acometido de uma violentíssima febre que prostrou-o por semanas.
Simplesmente apagou. Neste tempo, enquanto delirava, nada viu, nada sentiu,
tudo escureceu. Onde andara a sua alma aquele tempo todo, inquietou-se ele?
Estudioso de Descartes,
rompeu com o dualismo do grande mesmo logo que se refez. O corpo é uma máquina
sim, como assegurara o eminente racionalista que o descreveu no Le
traité de l´homme (O tratado do homem, publicação póstuma de
1662), mas não há nenhuma alma atuando independente nele, concluiu La Mettrie.
Se Deus a colocara na glândula pineal, demiurgo da mente com o corpo, situada
nos fundos mais ocultos do cérebro, como Descartes imaginara (no As
paixões da alma, 1649), para o jovem doutor ela simplesmente fora
desativada pela sua doença. Não se conteve.
Alma sem corpo não existe
No acampamento mesmo tratou de colocar o que
concluíra no papel, pois percebera claramente que o pensamento era conseqüência
da máquina (expressão cartesiana que a qual ele tinha muito apreço) e não algo
alheio, fora dela. Se ela não funcionava, tudo parava. Logo, era a matéria que
gerava o espírito. Foi um deus-nos-acuda. Nem bem ciente do conteúdo do A História Natural da Alma, o capelão do
seu próprio regimento tocou o sino do alarma, açulando a tropa contra o monstro
ateu que ali estava a bivacar com eles. Nada teme mais um soldado do que ir
para uma batalha sem imaginar que haja alguma esperança de vida no além.
O negrume e
a sem-razão da morte lhe é intolerável. De nada adiantou a La Mettrie
revoltar-se contra as assertivas dos padres, reclamando que o seu livro só
deveria ser lido por outros médicos e não por neófitos de batina cujo ganha pão
era extraído da superstição. Mas nem os médicos o apoiaram.
O Lamettrismo
E não era para menos que tivessem sentimentos
hostis para com ele. Viram-no um herege, um pária da sua profissão. As
conclusões morais e éticas a que ele chegara eram completamente antagônicas aos
primados teológicos e ao censo comum daquela época. Não havendo alma, o
livre-arbítrio e todo o conjunto de preceitos morais que o acompanha era uma
ficção. Sob o ponto de vista da máquina que nós somos, agir bem ou mal é
indiferente. Ser gentil ou malvado, doce ou amargo para com os outros, não
afeta o funcionamento da aparelhagem de nervos, sangue e músculo de que somos
feitos. E, evidentemente, no dia que a máquina parar, data que também não é
determinada ou influenciada pela moral, nada mais resta. Se há alma, ela some
junto ao seu invólucro (*). Portanto, seguindo os preceitos dos epicuristas,
não há mal nenhum em levar um vida liberta dos esconjuros da religião e dos
medos do inferno. Façamos o bem por si mesmo, sem interesses salvacionistas, na
ilusão de ir parar no além ao lado do Senhor. Se não existe alma, há porém
pensamento. E este vem do cérebro e não de Deus.
(*) Charles
Nicolle, médico e microbiologista francês, ganhador do prêmio Nobel de 1928, na
obra Naissance, vie et mort des maladies infectieuses, na esteira de La
Mettrie, demonstrou que os aspectos biológicos da vida estão governados por
forças independentes da intervenção humana consciente (isto é, dos seus
princípios morais e éticos).
A Utopia Médica de La Mettrie
Pois então
se o corpo é o centro de tudo, quem trata dele é o imperador informal da
sociedade. Os doutores, para La Mettrie, como expôs na sua utopia médica A
política dos médicos, seguramente assumiriam funções extraordinárias na
sociedade do futuro. Conhecendo os mínimos detalhes do funcionamento do
equipamento, a razão de ser das mais insignificante peças do maquinismo humano
(que segundo ele ativava-se de acordo com as leis da hidráulica e da mecânica),
eram eles os donos do devir. Não havendo nada depois da morte, a vida assume
então uma relevância extraordinária. Ela é o sentido de tudo. O médico,
guardião da saúde, responsável pela existência, será o grande estrategista do
Estado. Sentará ao lado do rei e lhe soprará o que, quando, e como fazer, no
sentido de preservar a sociedade. Se bem que La Mettrie não advogasse o poder
direto para o médico-filósofo, como outrora Platão reivindicou para o filósofo-rei,
ele levou às conclusões últimas o que Descartes já havia exposto ao desenhar a
sua árvore da vida, dando um lugar na copa, isto é junto ao poder, para a
Medicina. Em termos puramente corporativos, ele queria afastar os sacerdotes,
responsáveis pela pureza das almas, opondo-lhes os médicos, os mantenedores dos
corpos.
Na Estrada da Vida
Perdido o
emprego, afastado dos hospitais, abandonado pelos pacientes, inimizado com os
padres e com seus colegas de profissão (de quem ele se vingou no polêmico Penélope,
criticando-lhes a vaidade), voltou-se inteiramente para a especulação
filosófica. O resultado foi o seu Homme-machine, o homem-máquina, um
devastador ensaio ultra-materialista que circulou em 1748. Expulsaram-no da
França. Acompanhado da fama de filósofo maldito e perseguido, ele atravessou a
fronteira da Prússia em busca de abrigo. Frederico, o Grande, o rei-sábio,
deu-lhe acolhida. Não só isso. Talvez para ferir os franceses, indicou La
Mettrie para a Academia Real de Ciências de Berlim, ofertando-lhe ainda uma
generosa pensão. Frederico II divertiu-se muito com o humor e as gaiatices do
seu protegido. Morreu de congestão. Parece que empanturrou-se com um delicioso
pastelão que lhe ofereceram na casa do embaixador francês em Berlim, M.
Tirconnel. Assaltado por um febrão, entrou em delírio e faleceu no dia 11 de
novembro de 1751. O rei enterrou-o com pompas.
A Atualidade
de La Mettrie
Em notável artigo, síntese das concepções de La
Mettrie (Caderno Mais, Folha de S.Paulo, 6/5/2001), Sérgio Paulo Rouanet
assinalou os seguintes pontos que sinalizam a atualidade do pensamento dele:
- não há fronteira entre o mundo humano e mundo
animal (fato que tem sido reiteradas vezes comprovado pela genética recente);
- os deuses do Olimpo provavelmente foram os
precursores das atuais experiência transgênicas ao criarem seres híbridos,
metade humanos, metade outra coisa qualquer (sereias, faunos e centauros);
- o culto ao médico consagrou-se. A profissão
ligou-se objetivamente com a moderno e através das experiências aplicadas,
fazendo dele um eminente conselheiro do Estado, transformando a saúde pública e
as medidas sanitárias preventivas em estratégias sociais. Nem um impedimento
político poderá criar-lhe obstáculos, ao mesmo tempo em que ele se torna a
chave da política;
- o materialismo dele deu um golpe de morte na
concepção religiosa do mundo. O homem afirmou-se como o novo Prometeu, criatura
e parceiro da criação de outros homens. O cientista-demiurgo adonou-se do
espaço antes ocupado pela deidade, não podendo-se evitar que ele altere as
espécies existentes ou crie novas, inusitadas, produzindo seres artificiais in
vitro e pela inseminação artificial (a robótica que irá gerar andróides).
Definitivamente o sacerdote com sua roupeta ou batina preta, cedeu lugar na
sociedade moderna ao doutor de jaleco branco, fazendo com que a escuridão da
morte fosse seguida pela claridade resplandecente da vida;
- o monismo
de La Mettrie superou o dualismo cartesiano. O corpo não é um sacrário, o
refúgio, abrigo ou prisão da alma, sendo gradativamente visto como objeto de
comércio (patentes de gens, mercantilização de órgãos, etc.), mas provocando
também a emancipação dele da tirania moral (os jejuns obrigatórios, a
martirização, a auto-flagelação, as punições e os castigos físicos, etc.). Ele,
o corpo, é a única realidade do homem! Cabendo ao pensamento ser a expressão da
matéria. Explica assim a obsessão moderna com a manutenção dele, com as
preocupações
físicas e estéticas concentradas no bom
funcionamento e na aparência geral do organismo, afastando do corpo a doença e
a morte, pois inexiste outra instância que lhe seja superior. Por isso a imagem
do santo pálido e descarnado, por vezes ensangüentado, existentes na simbologia
cristã, foi abandonada em favor das atuais figuras de vigor que povoam o mundo
da publicidade;
- o crime, por sua vez, ele viu-o como conseqüência
de certas predisposições biológicas sobre as quais pouco efeito têm as
perorações e admoestações dos predicadores, educadores ou juízes, pois é o
"organismo que determina o essencial da vida do homem".
Fonte: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/cultura/lamettrie3.htm