segunda-feira, 25 de junho de 2012

Eu, etiqueta (Carlos Drummond de Andrade).


Em minha calça está grudado um nome
Que não é meu de batismo ou de cartório
Um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
Que jamais pus na boca, nessa vida,
Em minha camiseta, a marca de cigarro
Que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produtos
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
De alguma coisa não provada
Por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
Minha gravata e cinto e escova e pente,
Meu copo, minha xícara,
Minha toalha de banho e sabonete,
Meu isso, meu aquilo.
Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
São mensagens,
Letras falantes,
Gritos visuais,
Ordens de uso, abuso, reincidências.
Costume, hábito, premência,
Indispensabilidade,
E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
Escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
Seja negar minha identidade,
Trocá-la por mil, açambarcando
Todas as marcas registradas,
Todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
Eu que antes era e me sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Ser pensante sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes
De sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio
Ora vulgar ora bizarro.
Em língua nacional ou em qualquer língua
(Qualquer principalmente.)
E nisto me comprazo, tiro glória
De minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
Para anunciar, para vender
Em bares festas praias pérgulas piscinas,
E bem à vista exibo esta etiqueta
Global no corpo que desiste
De ser veste e sandália de uma essência
Tão viva, independente,
Que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
Meu gosto e capacidade de escolher,
Minhas idiossincrasias tão pessoais,
Tão minhas que no rosto se espelhavam
E cada gesto, cada olhar
Cada vinco da roupa
Sou gravado de forma universal,
Saio da estamparia, não de casa,
Da vitrine me tiram, recolocam,
Objeto pulsante, mas objeto
Que se oferece como signo dos outros
Objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
De ser não eu, mas artigo industrial,
Peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é Coisa.
Eu sou a Coisa, coisamente.


Glossário:

Açambarcando: apropriando-se de, monopolizando.
Bizarro: extravagante.
Comprazo: agrado, satisfaço.
Estáticos: imóveis, parados.
Idiossincrasias: particularidades, singularidades.
Itinerante: que se desloca, viajante.
Logotipos: desenhos que simbolizam marcas de produtos, etiquetas.
Pérgulas: passeio ou abrigo de jardim, formado por duas fileiras de colunas paralelas, servindo como suporte para plantas trepadeiras.
Premência: urgência, prioridade.
Proclama: anúncio, propaganda.
Reincidências: repetições.
Signo: sinal ou símbolo de algo.
Tarifados: que possuem preço.

sábado, 9 de junho de 2012

Existencialismo - A Filosofia da liberdade.


Ideias e reflexões teóricas sobre a existência do homem, frequentemente tomada como sinônimo de ser, apesar da diferença sugerida pela etimologia, são encontradas na obra de diversos filósofos e pensadores ao longo da História, desde a Antiguidade Grega clássica, como, por exemplo, em Sócrates (470 a.C.-399 a.C.), os estóicos, Santo Agostinho (354- 430), Blaise Pascal (1623-1662), Nietzsche (1844-1900) e até, já no século 20, Henri Bergson (1859-1941), que nem por isso chegam a ser relacionados entre os filósofos existencialistas. Aliás, muitos dos filósofos e artistas identificados por críticos e historiadores como “existencialistas” não necessariamente concordavam com essa classificação — Albert Camus, por exemplo, seria um existencialista ou um absurdista? Mas essas divergências, críticas e ponderações fazem parte do seu próprio processo de elaboração filosófica e criativa.
A propósito, o rótulo de “existencialista” foi aplicado, no Brasil da década de 1940, à personagem-título da marchinha “Chiquita Bacana”, aquela “lá da Martinica”, que se vestia “com uma casca de banana-nanica” (...). Foi a fórmula bem-humorada (e consagrada no Carnaval de 1949), que os autores acharam para falar do tema mais abordado pela imprensa da época: o “existencialismo”, que era moda na capital francesa, onde, desde as vésperas da eclosão da Segunda Guerra Mundial, grupos de jovens boêmios - os “existencialistas” - costumavam se reunir para discutir, ouvir “jazz” e dançar nos cafés e boates do bairro parisiense de Saint-Germain-des-Près.
Em geral considera-se como precursor do movimento, ainda no século 19, o filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855), alinhado ao chamado “existencialismo cristão”. Também foram relevantes, como fontes de inspiração para o desenvolvimento do pensamento existencialista, os trabalhos de Arthur Schopenhauer (1788-1860), Fiódor Dostoiévslci (1821-1881) e Edmund Husserl (1859-1938).
O existencialismo foi difundido, em especial a partir das décadas de 1940 e 1950, pelas obras filosóficas e literárias de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus. Ao lado destes, costumam ser classificados como autores existencialistas (embora Camus, por exemplo, discordasse de sua inclusão no grupo), entre outros, Gabriel Marcel (francês, 1889-1973), Karl Jaspers (alemão, 1883-1969), Martin Heidegger (alemão, 1889-1976), Martin Buber (1878-1965), Jean Wahl (1888-1974), Maurice Merleau-Ponty (1908- 1961), Jose de Ortega y Gasset (1883-1955), Miguel de Unamuno (1864- 1936), Nikolai Berdyaev (1874- 1948) e Lev Shestov (1866-1938).
Fundamentos do existencialismo
O existencialismo pode ser conceituado como uma corrente de pensamento filosófica e literária que tem suas origens no século 19, com o pensamento de Kierkegaard e sua expressão máxima nas décadas de 1940 e 50, com a análise de Jean-Paul Sartre sobre a filosofia heideggeriana. Considerando cada ser humano como único, e senhor absoluto de seu destino e de suas atitudes, o existencialismo salienta a subjetividade, a responsabilidade e a liberdade individual do homem, que este só pode esquecer por má-fé.
Para Sartre, esse é um mecanismo (a má-fé) pelo qual o homem procura se defender da angústia que a consciência da liberdade provoca. Todavia, por meio dessa defesa equivocada, nos distanciamos de nosso projeto pessoal, incorrendo no equívoco de explicar nossos fracassos pela interferência de fatores externos como Deus, o destino, os astros ou a sorte. Nesse contexto, inclusive a teoria do inconsciente, formulada por Sigmund Freud (1856-1939), era considerada um exemplo de má-fé. Podemos dizer que, para os existencialistas, a má-fé representava uma forma do ser humano de mentir para si próprio. Para assumir sua completa consciência e a autêntica responsabilidade por suas escolhas, é indispensável, portanto, renunciar à má-fé. Ao fazer isso, invariavelmente o homem passa a viver num estado de angústia, mas em compensação retoma, no sentido mais pleno, a condição de senhor de sua liberdade.

“Da forma pela qual é entendido pelo pensamento existencialista, o ser humano, se não admite seu enquadramento em qualquer definição é porque inicialmente ele ainda não é nada. Somente virá a ser num estágio posterior”.

Sören Kierkegaard
Sören Aabye Kierkegaard nasceu na Dinamarca. Aos 17 anos matriculou-se na Universidade de Copenhague, onde, durante seus estudos de teologia, concentrou-se mais em matérias como literatura e filosofia. Embora tenha publicado diversos artigos em sua juventude e nos tempos universitários, até 1841, considera-se que sua obra-prima é “Temor e Tremor”, de 1843, escrito em sua estadia na Alemanha.
Sua vida e obra foram marcadas por conflitos e angústias decorrentes, nos primeiros tempos, de seu difícil relacionamento com o pai austero e devoto (falecido em 1838) e do rompimento do noivado. Essa inquietação o levou a desenvolver uma intensiva meditação acerca da existência humana como caminho para transformá-la. Defendia que “a verdade é a subjetividade”, concepção que fez com que avaliasse as relações entre criatura e Criador, a partir de sua própria experiência. Segundo ele, a existência humana passa pelas etapas estética, ética e religiosa, sendo esta última (associada ao Cristianismo) a mais elevada. Dentre seus outros livros, pode-se mencionar “O Alternativo e Repetição” (ambos de 1843), “Migalhas Filosóficas” e “O Conceito de Angústia” (1844), “As Etapas no Caminho da Vida” (1845) e “O Desespero Humano” (1849). “A real natureza do desespero é não saber que é desespero” é uma máxima de sua angustiada filosofia. Kierkegaard morreu na capital dinamarquesa em 1855.
Trechos selecionados
“O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Afirma que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito: este ser é o homem, ou, como diz Heidegger, a realidade humana. O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não existe natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la. O homem é tão somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer, como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que chamamos de subjetividade: a subjetividade de que nos acusam. Porém, nada mais queremos dizer senão que a dignidade do homem é maior do que a da pedra ou da mesa.” Jean Paul Sartre, “O Existencialismo é um Humanismo” (Tradução: Rita Correia Guedes).
De acordo com o pensamento existencialista, a existência tem prioridade sobre a essência, conceito que se materializa na famosa afirmação de Sartre de que “a existência precede a essência”. Essa definição instaura precisamente valores fundamentais como a liberdade e a responsabilidade do ser humano, já mencionadas. (Lembram-se da Chiquita Bacana e da epígrafe, que “só faz o que manda seu coração”?) Ou seja, quer dizer que o homem não possui uma essência antes de tudo, preexistente e da qual ele seria refém, e sim que ele existe primeiro, antes de poder ser enquadrado em qualquer conceito, e somente será aquilo que ele próprio decidir ser, quando, no dizer do filósofo André Comte-Sponville, “puder falar de sua essência no passado”. Em outras palavras, o ser humano é absolutamente livre, primeiro existe, aparece no mundo, encontra a si mesmo e só depois vai se definir. Dessa maneira, da forma pela qual é entendido pelo pensamento existencialista, o ser humano, se não admite seu enquadramento em qualquer definição, é porque inicialmente ele ainda não é nada. Somente virá a ser num estágio posterior. De acordo com Sartre, na conferência de 1946 no Club Maintenant em Paris, em que propôs o existencialismo como um humanismo, “assim, não há natureza humana, pois que não há Deus para concebê-la. (...) O homem não é nada além do que ele se faz”. Tem-se, portanto, que o existencialismo é, no sentido metafísico do termo, uma filosofia da liberdade, das mais radicais que já houve. Diante da liberdade completa (que inclui a de ação, da vontade e de espírito), o homem tende a se angustiar, pois significa que só ele é responsável por suas escolhas. Não raro, sobrevém uma paralisia, a abstenção de fazer as opções necessárias. Mas esse “não fazer, que evita os riscos e a culpa e adia a existência, já é uma escolha, infelizmente comum em nossa sociedade. Correr riscos em busca da autenticidade é uma tarefa difícil, que exige coragem. É uma jornada pessoal e intransferível, que o homem deve empreender para encontrar a si próprio. Sartre escreveu: “Toda pessoa é uma escolha absoluta de si”.

Não se deve encarar o existencialismo como sendo uma escola de pensamento sem nenhuma ligação com toda e qualquer forma de fé, até porque diversos de seus principais representantes foram, de fato, pessoas religiosas, como Kierkegaard, que era um protestante radical caracterizado por um severo antagonismo contra a igreja luterana.

Filosofia e religião
No que diz respeito às relações com a religião, embora vários, senão a maior parte, dos pensadores existencialistas tenham sido ateístas, como Sartre, alguns filósofos ligados ao movimento adotaram um enfoque, digamos, teológico do mesmo. Como exemplos desse ponto de vista, pode-se citar, além de Kierkegaard; Jaspers e Marcel. O russo Nikolai Berdyaev, ex-adepto do marxismo, apresentou a fundamentação teórica de um cristianismo existencialista, primeiro em seu país de origem, e posteriormente na França, pouco antes da Segunda Guerra Mundial. Nikolai Alexandrovitch Berdyaev foi um filósofo russo, nascido em Kiev, na Ucrânia, em 1874. Na década de 1930, após formular críticas ao racionalismo e uma vez rompida sua vinculação à ideologia pregada por Karl Marx (1818- 1883), propôs a volta ao misticismo, frente às modernas formas do pensamento materialista. Foi banido da então União Soviética, refugiando-se na França, onde veio a falecer na cidade de Clamart, em 1948. Deixou os livros “A Filosofia da Liberdade” (1911) e “Cristianismo e Revolta Social” (1934).
Assim, não se deve encarar o existencialismo como sendo uma escola de pensamento sem nenhuma ligação com toda e qualquer forma de fé, até porque diversos de seus principais representantes foram, de fato, pessoas religiosas, como o mencionado Kierkegaard, que era um protestante radical caracterizado por um severo antagonismo contra a igreja luterana. Dentre os inspiradores do movimento, tem-se Dostoievski, que professava a fé ortodoxo-grega. Quanto a Sartre, embora não tenha sido criado sem religião, efetivamente não acreditava em força divina. No entender dos existencialistas cristãos, a fé funciona como defesa individual, orientando as ações humanas e as decisões a serem tomadas com um conjunto de normas religiosas.
Jean- Paul Sartre
Jean Paul Charles Aymard Sartre nasceu em Paris em 21 de junho de 1905, órfão de pai com menos de dois anos de idade, passou a morar com o avô materno, em cuja biblioteca teve acesso, já na infância, a obras clássicas francesas e alemãs. Assim, desde cedo, pôde desenvolver sua inclinação pela literatura. Por volta dos 17 anos, começou a manifestar interesse por filosofia, ingressando na Escola Normal Superior em 1924. Quatro anos mais tarde conheceu Simone de Beauvoir, que, embora não tenha se casado com ele, se tornou sua grande companheira de vida e trabalho. Como bolsista, passou o ano de 1933 em Berlim, onde teve contato com as ideias de Husserl, Heidegger e Jaspers. Também naquela ocasião, já tendo publicado alguns contos, Sartre trabalhou no ensaio “A Transcendência do Ego” e em sua primeira novela, “A Náusea”, que seriam editados, respectivamente, em 1936 e 1938. Sartre lecionou filosofia por oito anos, até 1944. Em 1940, na guerra, foi preso pelos alemães, enviado a um campo de concentração e libertado no ano seguinte. De volta a Paris, conheceu Albert Camus, com o qual viveu uma grande amizade de cerca de dez anos, terminada por divergências políticas. Em 1943, Sartre publicou “O Ser e o Nada”, síntese de princípios filosóficos e literários. Em 1945, fundou, com Merleau-Ponty, a revista “Tempos Modernos”. Em 1952, entrou para o Partido Comunista Francês, com o qual rompeu em 1956. Em 1964 recusou o Prêmio Nobel de Literatura, dizendo que um escritor não deveria ser convertido em instituição. Além dos títulos mencionados, sua vasta obra inclui “As Mãos Sujas” (1946), “A Prostituta Respeitosa” (1946), “O Diabo e o Bom Deus” (1948), “Crítica da Razão Dialética” (1960) e “As Palavras” (1964). Faleceu em Paris aos 74 anos, em 15 de abril de 1980.
Trechos selecionados


“Tudo isso permite-nos compreender o que subjaz a palavras um tanto grandiloquentes como angústia, desamparo, desespero. Como vocês poderão constatar, é extremamente simples. Em primeiro lugar, como devemos entender a angústia? O existencialista declara frequentemente que o homem é angústia. Tal afirmação significa o seguinte: o homem que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas aquele que escolheu ser, mas também um legislador que escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira, não consegue escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade. É fato que muitas pessoas não sentem ansiedade, porém nós estamos convictos de que essas pessoas mascaram a ansiedade perante si mesmas, evitam encará-la; certamente muitos pensam que, ao agir, estão apenas engajando a si próprios e, quando se lhes pergunta: mas se todos fizessem o mesmo? Eles encolhem os ombros e respondem: nem todos fazem o mesmo.” (Jean-Paul Sartre, “O Existencialismo É um Humanismo”, Tradução: Rita Correia Guedes)
Já os ateus destacam a contradição de que a deterioração e a morte são sempre os resultados finais, não importando o esforço que se faça para melhorar a si ou aos outros. Muitos existencialistas creem que a grande vitória do indivíduo consiste em perceber e aceitar o absurdo e a miséria da vida. Por essa vitória, o homem pode ou não ser recompensado, ao fim, por uma força superior. Se essa força existe, o que explica o sofrimento humano? Se não existe, e a vida é mesmo absurda e miserável, por que não abreviar o sofrimento, por meio do suicídio?
Tais questões servem apenas como introdução à complexidade do pensamento existencialista. Para Sartre, “Se Deus não existe, há pelo menos um ser, (...) que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana”.
Martin Heidegger, filósofo nascido na Alemanha em 1889, é considerado um dos mais importantes pensadores ocidentais do século 20, tendo influenciado a obra de vários outros. Estudou na Universidade de Freiburg junto com o também filósofo Husserl, de quem se tomaria assistente. Filiou-se ao partido nazista em 1933 e foi nomeado reitor da Universidade, cargo de que viria a demitir-se em poucos meses. Destacou-se em seus estudos sobre ontologia, tendo como obra fundamental “O Ser e o Tempo”, publicada quando ele tinha apenas 28 anos. Escreveu ainda “Que é Metafísica?” (1929) e “Introdução à Metafísica” (1953). Faleceu em 1976.
Em síntese, para esse existencialista, não há desculpas: se não existe Deus ou natureza a quem se possa atribuir eventuais erros, a liberdade é incondicional e é isso que Sartre quer dizer quando fala dela como uma sentença a que o homem não pode escapar: “Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer”.
A vida e o homem livre
Em “A Náusea” (1938), sua primeira novela, Sartre conclui eticamente sobre seus estudos de fenomenologia: se a vida é isso que está aí, se é como a percebemos, ela não passa de um caos impossível de apreender pela nossa inteligência, é monstruosa, repulsiva e completamente aleatória: tudo é absurdo e desprovido de sentido. Nesse livro, e nos volumes “A Transcendência do Ego” (1936), “A Imaginação” (1936), “Esboço de uma Teoria das Emoções” (1939), “O Imaginário” (1940) - todos de ensaios - e em “O Muro” (contos, 1939), pode-se identificar essencialmente o mesmo raciocínio, que iria desaguar na obra-prima “O Ser e o Nada” (O livro, iniciado em 1939 nas frentes de batalha da Segunda Guerra Mundial, em que Sartre serviu como meteorologista do exército francês, foi interrompido por um ano em decorrência de o autor ter sido aprisionado pelas tropas alemãs e enviado a um campo de concentração nazista. Finalmente concluído, foi lançado em 1943 pela editora Gallimard em um volume de mais de 700 páginas, (1943), com o subtítulo “Ensaio de Ontologia Fenomenológica”, e converteu-se num grande “bestseller” da história da filosofia: em 15 anos, esgotou nada menos de 55 edições). O livro, resumindo o pensamento do autor àquela época, foi praticamente responsável pela divulgação dos conceitos fundamentais do existencialismo, que iriam dominar a intelectualidade francesa no pós-guerra. Nesse trabalho, o próprio Sartre admitiu ter estudado a existência “de um ponto de vista inteiramente novo”, recorrendo ao método de Husserl para uma análise minuciosa da realidade humana, “tal como ela se manifesta”.
Já na introdução, Sartre estabelece os princípios husserlianos que irá utilizar, dividindo a existência em duas regiões: o mundo das coisas materiais (seres “em-si”), compreendendo quaisquer objetos existentes com uma essência definida e que povoam o mundo; e o mundo da consciência (seres “para-si”), “a única aventura possível de ser”. O ser “em-si” não tem consciência de si ou do mundo, nem tem potencialidades. É algo que somente “está aí”, apenas “é”, de modo inerte e frouxo, fechado em si mesmo. Os objetos do mundo se apresentam à consciência do homem por meio de suas manifestações físicas, os fenômenos. Já a consciência humana é um ser de outro tipo, o “para-si” (É um ser que conhece a si próprio e ao mundo. Constrói um sentido para seu mundo à medida que estabelece as relações - funcionais e temporais - entre os seres “em-si”. O “para-si” não é só mais uma coisa entre as coisas do mundo, pois, contrariando a escola fisiologista, a consciência não é apenas uma espécie de “fluido” produzido pelo cérebro, porém possui outra natureza. É um puro ponto de vista, sem substância sobre o mundo do “em-si”. A consciência transcende o mundo. Assim, o “para-si” não tem essência definida, nem resulta de uma ideia preexistente). O existencialismo sartreano desconsidera um Criador que tenha predeterminado a essência e os fins individuais. A existência do “para-si” é necessária e é ele quem define sua essência, a cada instante daquela. O que uma pessoa já viveu, seu ser passado, constitui sua essência: é um “em-si”, porque possui uma essência conhecida, embora não predeterminada, que só existe no passado.

Sartre estuda também as relações humanas, o “estar em presença de outros”, que representa um dos atributos básicos do ser “para-si”. Nesse panorama, destacam-se novamente as angustias e os conflitos, porque o ser humano está condenado a coexistir com seus semelhantes, cuja liberdade acaba constituindo uma limitação e, de certa forma, uma ameaça à sua própria

Reafirmando a prevalência da existência sobre a essência, o existencialismo volta a propor que cada ser “para-si” tem a liberdade de fazer de si mesmo o que ele bem entenda.
O absurdismo
Muitas vezes confundido com o existencialismo e o niilismo, embora essas correntes se filiem a uma certa tradição filosófica em comum, o absurdismo ou filosofia do absurdo tem traços marcantes. Um dos seus precursores foi o filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard - não por acaso também uma das bases do existencialismo. Uma das definições possíveis da palavra “absurdo” é “o contra da razão”, de modo que a ideia central do absurdismo é a impossibilidade do homem de captar os significados da existência em sua universalidade, e que esses esforços filosóficos e científicos na busca por um “sentido” naufragarão. O grande divulgador da corrente absurdista no século 20 foi o ensaísta, romancista e filósofo Albert Camus, cujo livro “O Mito de Sísifo”, de 1942, demarca uma linha de separação com o movimento existencialista e toca naquela que Camus denominou como a única questão filosoficamente séria: o suicídio. É fundamental lembrar que Camus e Ernil Cioran (outro pensador associado à corrente) escreveram suas principais obras em um momento de completa devastação da Europa durante e após a Segunda Guerra Mundial. O ambiente era de pobreza, destruição, descrença e incertezas. Um terreno propício para esse tipo de filosofia.
Trechos selecionados

“Não é por nosso pessimismo que nos acusam, mas, no fundo, pela dureza de nosso otimismo. Se certas pessoas nos censuram por desenvolvermos seres pusilânimes, fracos, covardes, e, por vezes, francamente maus, em nossas obras de ficção, não é unicamente porque eles são pusilânimes, fracos, covardes ou maus, pois, se fizéssemos como Zola e declarássemos que eles assim são devidos à hereditariedade, por influência do meio, da sociedade, por um determinismo orgânico ou psicológico, todos se tranquilizariam e diriam: aí está, somos assim e ninguém pode fazer nada; o existencialista, porém, quando descreve um covarde, afirma que esse covarde é responsável por sua covardia. Ele não é assim por ter um coração, um pulmão ou um cérebro covardes; ele não é assim devido a uma qualquer organização fisiológica; mas é assim porque se construiu corno covarde mediante seus atos. Não existe temperamento covarde; existem temperamentos nervosos, existem pessoas que têm 'sangue fraco' como diz o povo; ou temperamentos ricos; mas o homem que tem sangue fraco nem por isso é um covarde, pois o que cria a covardia é o ato de renunciar ou de ceder: um temperamento não é um ato e o covarde se define pelos atos que pratica”. (Jean-Paul Sartre, “O Existencialismo é um Humanismo”, Tradução: Rita Correia Guedes).
O outro, As críticas, A influência
Sartre estuda também as relações humanas, o “estar em presença de outros”, que representa um dos atributos básicos do “ser para-si”. Nesse panorama, destacam-se novamente as angústias e os conflitos, porque o ser humano está condenado a coexistir com seus semelhantes, cuja liberdade acaba constituindo uma limitação e, de certa forma, uma ameaça à sua própria. Enquanto está sozinha, a consciência do homem pode reinar como senhora absoluta de seu destino e usufruir em plenitude de uma liberdade que desconhece barreiras. Isso se transforma radicalmente na presença do outro, cuja subjetividade passa a ser mais uma entre as coisas do mundo. Ao contrário da situação anterior, essa nova coisa não é apenas mais uma que se oferece passivamente à minha apreciação, mas ela, ao mesmo tempo, me identifica, não mais como o sujeito que eu era, mas como objeto de seu inundo. Sou, de certo modo, paralisado pelo meu próprio olhar, como no mito da Medusa. Passo a ser observado e julgado com a liberdade do pensamento alheio, sobre o qual não tenho nenhum poder de influência. Ou seja, o outro pode pensar qualquer coisa sobre mim, independente da minha vontade ou controle, o que representa uma ameaça permanente. A liberdade alheia é um perigo para a minha, que também a põe em risco. Daí a fala da peça teatral de Sartre, “Entre Quatro Paredes” (1944): "O inferno são os outros".
Sobre as críticas ao existencialismo, opina Manuel Costa Pinto, jornalista e autor de “Albert Camus: um Elogio do Ensaio” (Ateliê): “Dentre as correntes modernas da filosofia, poucas foram tão prejudicadas por seu engajamento, por sua práxis política, quanto o existencialismo de Sartre. É frequente ouvirmos elogios à obra teatral e ficcional do autor ao lado de ressalvas de que seu pensamento envelheceu junto com as utopias comunistas, incluindo a vertente maoísta à qual ele aderiu no fim da vida. A crítica mais consistente ao existencialismo o define como uma filosofia da consciência ou da subjetividade, à qual estruturalista e pós-estruturalistas contrapõem a ideia de que tudo (inclusive consciência e subjetividade) decorre de estruturas abstratas e impessoais. (Estruturalistas: Partidários ou seguidores do estruturalismo, corrente de pensamento derivada da linguística da obra de Ferdinand de Saussure (1857-1913), no início do século passado e difundida a partir da capital francesa nos anos 1960. O estruturalismo sucedeu o existencialismo - ao qual se opunha - como modismo, “última palavra” entre os intelectuais franceses. Naquele país, destacaram-se entre os principais pensadores estruturalistas, Claude Lévi-Strauss (1908-2009), Michel Foucault (1926-1984), Jacques Lacan (1901-1981) e Louis Althusser (1918-1990). Esses teóricos descrevem o ser e os fenômenos humanos como efeitos de estruturas ou sistemas, em vez de subjetividade ou de criação). Tal crítica seria válida se o exame existencialista do funcionamento da consciência tivesse uma positividade, descrevesse um ente natural ou psíquico. No entanto, a consciência, para Sartre, é menos uma máquina de produção de sentido a partir do aparato perceptivo humano do que um movimento em que o ser é dado por sua percepção do nada, das virtualidades contidas no existente”.
Embora sofrendo restrições, a contribuição do existencialismo à formação do pensamento contemporâneo não deve ser minimizada. O movimento influenciou e segue inspirando criadores de vários segmentos. Como fenômeno cultural, o existencialismo demonstra vitalidade, influindo inclusive na música jovem a partir dos anos 1970, como nos movimentos góticos e, mais recentemente, em diversos autores literários e criadores de diferentes formas artísticas, como, por exemplo, o cineasta Woody Allen, cujo humor é pincelado pelo existencialismo. No artigo “A ironia e o absurdo na ficção de Woody Allen” (2008), o pesquisador Felipe Mansur lembra o apreço do cineasta e escritor por Sartre, Camus e Kierkegaard. De acordo com Allen, todos esses autores têm uma escrita pesada: Uma escrita com peso, angústia, liberdade, sofrimento, vida. Humanismo e existência.
Fonte: Conhecimento prático Filosofia, Sergio Amaral Silva.

domingo, 3 de junho de 2012

Da interrogação socrática à fundamentação da ciência em Aristóteles.


Quando buscamos os fundamentos da filosofia ocidental, três filósofos ocupam o lugar mais elevado: Sócrates, Platão e Aristóteles. Dificilmente poderíamos estabelecer alguma hierarquia de valor entre eles, afirmar qual deles é maior ou teve maior relevância para nós. O que parece claro é que, tendo vivido em épocas bastante próximas, cada qual galgou degraus a partir do caminho aberto pelo anterior. Assim, Sócrates teria sido um precursor, apontando paisagens até então desconhecidas no horizonte filosófico. Platão, considerado seu discípulo, bem viu as indicações do mestre e foi além. Aristóteles, aluno por mais de vinte anos na escola fundada por Platão, a Academia, afasta-se do mestre e trilha seus próprios caminhos. Não há como mostrar em poucas linhas todos os pontos centrais nestes filósofos, e menos ainda precisar as diferenças entre eles. No entanto, é possível, se escolhermos um ponto de vista determinado, observar as diferenças de enfoque propostas por cada um deles. Aqui, vamos observar como cada um se aproximou daquilo que talvez seja o centro da Filosofia: o conhecimento. Vamos ver de que modo cada filósofo procura dar conta da possibilidade de ciência (epistéme).
A figura emblemática da Filosofia é, sem dúvida, Sócrates. Torna-se o signo marcante da divisão do mundo filosófico em eras: pré e pós Sócrates. Antes dele não havia, então, Filosofia? Sem dúvida que sim. Tudo parece ter começado com Tales, tido como um dos sete sábios da Grécia. Vieram outros tantos: Anaximandro, Heráclito, Parmênides, Empédocles, Anaxágoras... E, contudo, Sócrates é o grande marco: seus precursores ganharam o rótulo de pré-socráticos, e o mundo ocidental nunca mais seria o mesmo depois de sua vinda. Mas que teria ele feito para ganhar tamanho destaque? Quem foi, afinal, Sócrates?
Dizer quem foi exatamente Sócrates talvez não seja possível. Estima-se que tenha nascido por volta de 470 a.C. e morrido em 399 a.C., condenado à morte pelos juízes de Atenas, mas como não deixou obras escritas, tudo que sabemos a seu respeito tem origem nos trabalhos de outros. Como fontes principais, temos as “apologias de Sócrates”, um gênero literário bastante em voga na época, escritas por admiradores e seguidores de Sócrates. Há, porém, um importante comediógrafo contemporâneo de Sócrates, Aristófanes, que nos deixou em sua peça As nuvens um retrato bastante irônico de Sócrates, onde este é apresentado de maneira ridícula e é equiparado aos sofistas. Sócrates é figura controversa em Atenas: amado por uns, por discípulos e amigos fiéis que o seguem até a morte, mas odiado por muitos, a tal ponto de ser condenado à morte.
Comecemos pelo Sócrates que aparece em As nuvens, comédia apresentada em 423 a.C., mais de 20 anos antes de sua morte. O Sócrates apresentado ali é um físico, voltado a indagações sobre a natureza, como, por exemplo, quantas vezes uma pulga salta o tamanho de seus próprios pés. E é também um sofista, alguém que ensina a transformar um discurso fraco em forte, de modo a ganhar qualquer causa num tribunal, ou seja, alguém muito pouco preocupado com a verdade e a justiça. Nada tão distante do Sócrates oferecido por Platão, inimigo dos sofistas e amante da verdade! Entretanto, talvez haja aí algo historicamente plausível, pois uma boa comédia deveria ter, dentro dos padrões da poesia grega, uma certa verossimilhança. Os gregos, afinal, não tinham a nossa noção de ficção, mas operavam com o conceito de mímesis, de imitação. O que talvez possamos supor é que, ao menos para os olhos do povo, Sócrates era um filósofo da natureza, tal qual seus antecessores “pré-socráticos” e, além disso, era tido como um sofista, um homem empenhado nos debates.

Aristóteles herda de Platão o anseio por satisfazer a noção de epistéme, que deve tratar sempre de conteúdos imutáveis de conhecimento. Mas afasta-se do mestre ao rejeitar a existência de idéias ou formas apartadas da matéria, existentes por si. É impossível aceitar que as formas tenham existência separada da coisa, se elas são a ousía (isto é, essência) das coisas, acredita Aristóteles

Se levarmos isso em conta, fica mais fácil entender o processo e o julgamento de Sócrates. Vejamos como se passam as coisas na obra de Platão, a Apologia de Sócrates. Quem se encarrega da defesa é o próprio Sócrates, apresentando-se não como um grande orador, mas como alguém que diz o justo, o verdadeiro. Ao caracterizar seus adversários, reconhece dois tipos: os mais antigos – numa clara alusão a Aristófanes – e os mais jovens. Seus primeiros adversários seriam, assim, todos aqueles que compactuam com uma mentalidade profundamente arraigada na cidade, para quem Sócrates seria acusado de “investigar indevidamente o que se passa embaixo da terra e no céu, deixar bons os argumentos ruins, e induzir os outros a fazerem o mesmo”. Ora, nada mais falso, alega Sócrates, afirmando não ter jamais procurado ensinar alguém, nem ter recebido dinheiro em pagamento – ao contrário dos sofistas, que cobram para ensinar. Por que, então, as calúnias? Aqui vem o trecho mais famoso, e por onde Sócrates tornou- se imortal: se os sofistas são grandes sábios, portadores de um conhecimento sobre-humano, Sócrates nada mais é que homem, mas, dentre estes, é portador da mais alta sabedoria, da única propriamente humana. Que sabedoria é esta?
Sócrates conta que seu amigo de infância Querefonte consultou certa vez o oráculo de Delfos para saber se haveria alguém mais sábio do que Sócrates. Não há, é a resposta da divindade. Ora, Sócrates não podia atinar com o significado destas palavras, pois não se considerava sábio. No entanto, não é da natureza divina mentir; que significaria, então? Começou a buscar incessantemente um homem que fosse considerado sábio. Primeiro interrogou um político, mas percebeu que este se considerava sábio sem, de fato, sê-lo. Procurou demonstrar ao seu interlocutor que ele não era realmente sábio, mas foi em vão, o homem mantinha- se seguro de sua sabedoria. Tudo que Sócrates obteve foi o ódio por parte desse político. Tirou, porém, para si, um resultado: percebeu ser mais sábio que o homem, pois, se aquele acreditava saber, ele ao menos, sabia não saber.
E assim foi repetindo o processo com outros políticos, depois com outros homens considerados sábios pela cidade, os poetas. Percebeu que não era por possuírem sabedoria que faziam seus poemas, mas por inspiração; tal como os adivinhos, dizem coisas belas, mas não sabem o que dizem. Passou, então, para a classe dos artesãos, que ao menos tinham um conhecimento sobre sua arte. Estes, porém, assim como os anteriores, julgavam que, por terem conhecimento acerca de sua profissão, também saberiam sobre outros assuntos. Todos, enfim, julgavamse sábios e não reconheciam não saber. Ora, o que é preferível: saber que nada sabe ou enganar-se achando saber aquilo que não sabe? Sócrates opta por sua sabedoria e reconhece-se sábio: sabe que não sabe. Põe-se, a partir daí, numa verdadeira missão a serviço da divindade. É sua tarefa examinar qualquer pessoa que pareça sábia e mostrar-lhe sua ignorância. Eis como Sócrates angariou o ódio da cidade em geral e preparou o caminho para sua execução.

A ciência deve procurar reconhecer a “qüididade”, isto é, a definição de todos os seres, investigar o que faz com que “um isto” seja isto e não aquilo.

A Apologia de Sócrates não termina aqui. Sua defesa continua, agora, dirigindo- se aos mais jovens, que o acusaram de corromper os moços e de não acreditar nos deuses da cidade. Sócrates não se arrepende de seus atos e explica por quê. Sempre praticou a justiça, apesar dos perigos de morte que corria, pois seus inimigos certamente acabariam por levá-lo a um processo fatal. Um homem não deve pesar as possibilidades de vida ou de morte, mas pesar se age com justiça ou não. Quanto à morte, não temos elementos para decidir se será um bem ou um mal. Só nos cabe julgar nossos próprios atos. “Temer a morte é o mesmo que supor-se sábio quem não o é, porque é supor que sabe o que não sabe. Ninguém sabe o que é a morte, nem se, porventura, será para o homem o maior dos bens; todos a temem, como se soubessem ser ela o maior dos males.(...) Sei, porém, que é mau e vergonhoso praticar o mal, desobedecer a um melhor do que eu, seja deus, seja homem; por isso, na alternativa com males que conheço como tais, jamais fugirei de medo do que não sei se será um bem. (29a)”. É essa integridade de Sócrates que acabará por condená-lo à morte. Não pode aceitar uma absolvição que exija o abandono de sua tarefa. Não poderá viver se não for perambulando pela cidade, fazendo perguntas e persuadindo todos a se preocupar não com as riquezas, mas com o aperfeiçoamento da alma. Sua condenação é um mal, não para ele, mas para a cidade, ingrata com uma dádiva da divindade.

Para Aristóteles, há formas universais existentes nas coisas. Com o pensamento fazemos generalizações e apreendemos algo universal nos vários objetos corporais.

Mas a fama de Sócrates não vem apenas da lendária frase “Só sei que nada sei”. Ele é também a principal personagem da maioria dos diálogos de Platão. Em sua juventude, Platão escreveu vários diálogos que apresentam este Sócrates interrogador. Conversando com as mais variadas figuras de Atenas, ora um general, ora um sofista, ora um poeta, Sócrates vai sempre interrogando, buscando responder à pergunta socrática: “O que é?”, por exemplo, no Hípias maior, pergunta a um sofista o que é a beleza, ou melhor, o que é o próprio belo, o belo em si. O que Sócrates busca é o belo pelo qual as coisas belas são belas. Seu interlocutor, porém, incapaz de compreender a pergunta, responde sempre mostrando coisas belas: o belo é uma linda jovem, o belo é o ouro, o belo é uma vida feliz. O mesmo acontece em outro diálogo, o Laques, em que um general é incapaz de responder o que é a coragem, não percebe o que é que, estando em todos os atos corajosos, é o mesmo. Também no Protágoras, novamente o interlocutor é incapaz de dizer o que é a virtude, ou no Eutífrão, um sacerdote é incapaz de responder o que é a piedade. Todos os diálogos socráticos são aporéticos. Não há resposta, não chegamos ao que seja a virtude, a piedade, a beleza ou a coragem. De algum modo, ainda que possam trazer consigo uma doutrina não de Sócrates, mas platônica, os diálogos socráticos preservam um pouco da imagem histórica de Sócrates, um homem sempre interrogando, sempre mostrando aos interlocutores que estes no fundo não sabem. Um homem que também não sabe, mas sabe que não sabe, e por isso pergunta.


Qual é então sua filosofia? O que é que prega o Sócrates dos diálogos de juventude de Platão? Não se trata de uma filosofia positiva, mas de uma exigência. Sócrates exige que seu interlocutor encontre um certo caráter genérico capaz de explicar a multiplicidade de exemplares. É preciso encontrar, por exemplo, o caráter genérico comum a todos os atos piedosos, e mais, esse caráter genérico deve explicar por que os atos piedosos são piedosos. É preciso encontrar a própria piedade, o próprio belo, etc. Seus interlocutores têm muita dificuldade para compreendê-lo. Hípias responde-lhe que o próprio belo é uma jovem bela. Não consegue perceber que o próprio belo é aquilo que está presente numa jovem bela e que a faz ser bela. Em resumo, é dupla a exigência socrática: encontrar uma certa unidade na multiplicidade (o Belo presente nos muitos belos) e encontrar nessa unidade a causa da multiplicidade (o Belo como causa dos belos).
Não é pouco. Essa exigência socrática levará Platão a desenvolver sua teoria das Formas. Aristóteles também não a perde de vista e louva Sócrates (Metafísica, XIII, 1078 b27-30) por ter buscado a presença do universal na definição. Sem esse “próprio”, dirá Platão, sem a definição universal, dirá Aristóteles, não há possibilidade de epistéme, de ciência. Platão tentará satisfazer a exigência socrática. Mas é árdua sua tarefa, pois não pode deixar de lado as conseqüências extraídas de duas filosofias anteriores, pré-socráticas: de Heráclito e de Parmênides. Para Heráclito, o mundo está em perpétuo estado de fluxo, nunca entramos duas vezes no mesmo rio (são sempre novas águas), “somos e não somos”. Se a noção de ser em Heráclito é bastante fraca, Parmênides, ao contrário, funda o conceito de ser: é ou não é; se algo é, é. O Ser de Parmênides é eterno, uno, indivisível, imóvel. E Platão extrai algumas conseqüências destas doutrinas e terá que dar conta delas. Concorda com Heráclito: é fato que este mundo visível, sensível, está sempre mudando; não há como encontrar um certo “mesmo” em tudo isso. Por outro lado, é preciso concordar com Parmênides quando se examina determinados tipos de seres: a coragem, por exemplo, é um certo ser que jamais será não corajoso; se a coragem é, ela é sempre coragem.
Qual é o grande problema que surge do confronto entre Heráclito e Parmênides? Se Heráclito for levado às últimas conseqüências, não há possibilidade de ciência. No Teeteto, Platão expõe isso: o sofista Protágoras expressa um relativismo derivado de uma leitura extremada de Heráclito: o ser se reduz ao que aparece para alguém. Para Protágoras, “o homem é a medida de todas as coisas, das que são, que são, das que não são, que não são” (152 a). O que é o vento? Se, para mim, ele aparece como frio, então ele é frio para mim. O homem é a medida para si do que lhe aparece. Não há, dentro desse quadro, a possibilidade de algo em si mesmo, algo que seja ele próprio, independente de outrem. Outra conseqüência dramática da fi- losofia de Heráclito seria a impossibilidade de linguagem: se tudo está em perpétuo fluxo, as próprias coisas não possuem um ser que permaneça estável e do qual eu possa dizer algo. Platão reconhece todos esses problemas. Se o conhecimento for o conhecimento do mundo sensível, então é preciso extrair todas as conseqüências da doutrina de Heráclito: não há mais ser (pois o ser seria algo em constante mutação) e nem haveria mais como dizer o ser (pois como dizer algo que nesse instante é, mas já em seguida não é?).

Uma conseqüência dramática da filosofia de Heráclito seria a impossibilidade de linguagem: se tudo está em perpétuo fluxo, as próprias coisas não possuem um ser que permaneça estável e do qual eu possa dizer algo. Platão reconhece todos esses problemas

Mas, do ser imutável de Parmênides, Platão extrai outras conseqüências: se há algo realmente imutável, é somente este que pode ser conhecido. Para Platão, o conhecimento deve ser algo absolutamente imutável, ou não será mais conhecimento e sim simples opinião. Mas se o mundo sensível é o mundo da mutabilidade, onde nada permanece sendo sempre o que é, não é possível mesmo haver conhecimento deste mundo. Como resolver o impasse? Não haverá algo que seja eterno, imutável, e que viabilize assim a possibilidade de conhecimento? É dentro desse quadro problemático que Platão elabora sua teoria das Formas ou Idéias, apresentada principalmente em seus diálogos de maturidade: o Fédon, a República, o Banquete e o Fedro. Procurará, por meio das Formas, dar conta da possibilidade de existência de um certo ser imutável que permita um conhecimento imutável.
Se é preciso explicar por que as coisas belas são belas, a participação nas Formas é a resposta de Platão: a razão de algo ser belo é porque participa do Belo em si. Há um Belo em si, uma Forma que não é visível pelos sentidos, mas que se faz presente em cada uma das coisas belas. As coisas belas participam da Forma do Belo. Esta é a verdadeira causa da beleza sensível. Platão concede assim o máximo de ser, de “essência” (ousía, em grego) às coisas que são em si mesmas, àquilo que existe em si. Não são coisas deste mundo visível, mas são seres aos quais é possível aceder pela via do pensamento. Estes seres em si, as Formas ou Idéias, são a causa da existência das coisas visíveis. Com isso, satisfaz a dupla exigência socrática: a Forma é aquela tão procurada unidade na multidão de exemplares e é também a causa de existência dos múltiplos seres. As Formas (do Belo, do Bom, do Grande, etc.) explicam por que os milhares de entes do mundo sensível podem ser belos, bons, grandes, etc. A Forma em si é eterna, não está sujeita ao perpétuo fluxo das coisas visíveis. O Belo é e será sempre belo. E assim, Platão resolve o problema derivado da filosofia de Heráclito: as coisas belas podem deixar de ser belas; há até mesmo uma relatividade entre os conceitos de belo, já que algo pode ser belo para mim e não para outro. Mas o Belo em si é absoluto e eterno. As coisas belas participam dele e é só nessa medida que são belas. Por isso, não pode haver ciência das coisas sujeitas ao perpétuo fluxo; ora elas são, ora não são. Não há como conhecer o ser próprio das coisas sensíveis. Só as Formas, por serem imutáveis, podem ser conhecidas.
Como conceber as Formas? Somente pela via do pensamento, já que os órgãos dos sentidos são falíveis e, portanto, fonte de erro. É preciso, diz Platão, afastar-se do corpo para que se possa contemplar a imutabilidade das Formas. Nosso filósofo cria uma marcante dualidade entre corpo e alma que vingará na filosofia ocidental e influenciará fortemente o cristianismo. O corpo é inferior em ser à alma, que em muitos momentos é identificada ao próprio homem. Quem somos? A alma. E é pela alma que acedemos às realidades superiores. “Nesta vida, o que faz com que cada um de nós seja o que é nada mais é do que a alma, enquanto o corpo é para nós a imagem concomitante. Está certo quem diz que o corpo sem vida não é senão a imagem do morto e que o eu real de cada um de nós, que chamamos de alma imortal parte para prestar contas perante outros deuses, uma perspectiva a ser encarada com coragem pelos bons, mas com supremo terror pelos maus”. (Leis, XII, 959 b).
Como somos a alma, e não o corpo, a morte é bem-vinda, já que desvencilhados do corpo, estaremos em melhores condições de acesso às Formas, ao que é em si. Estes são os ensinamentos de Sócrates – agora um Sócrates absolutamente platônico, não mais histórico –no Fédon. Ali, em seu último dia de vida, na prisão, ensina os amigos presentes a não temer a morte; aspirar à contemplação de realidades mais elevadas é um desejo natural de quem tem um temperamento filosófico. Tampouco devem prantear-lhe o corpo morto, pois ele mesmo, Sócrates, não estará mais ali, mas em outro lugar.

Da Natureza, de Parmênides.
Os corcéis que me transportam, tanto quanto o ânimo me impele, conduzem-me, depois de me terem dirigido pelo caminho famoso da divindade, que leva o homem sabedor por todas as cidades. Por aí me levaram, por aí mesmo me levaram os habilíssimos corcéis, puxando o carro, enquanto as jovens mostravam o caminho. O eixo silvava nos cubos como uma siringe, incandescendo (ao ser movido pelas duas rodas que vertiginosamente o impeliam de um lado e de outro), quando se apressaram as jovens filhas do sol a levar-me, abandonando a região da Noite para a luz, libertando com as mãos a cabeça dos véus que a escondiam. Aí está o portal que separa os caminhos da Noite e do Dia, encimado por um dintel e um umbral de pedra; o portal, etéreo, fechado por enormes batentes, dos quais a Justiça vingadora detém as chaves que os abrem e fecham. A ela se dirigiram as jovens, com doces palavras, persuadindo-a habilmente a erguer para elas por um instante a barra do portal. E ele abriu-se, revelando um abismo hiante, enquanto fazia girar, um atrás do outro, os estridentes gonzos de bronze, fixados com pregos e cavilhas. Por aí, através do portal, as jovens guiaram com celeridade o carro e os corcéis. E a deusa acolheu-me de bom grado, mão na mão direita tomando, e com estas palavras se me dirigiu: “Ó jovem, acompanhante de aurigas imortais, tu, que chegas até nós transportado pelos corcéis, Salve! Não foi um mau destino que te induziu a viajar por este caminho – tão fora do trilho dos homens – mas o Direito e a Justiça. Terás, pois, de tudo aprender: o coração inabalável da realidade fidedigna e as crenças dos mortais, em que não há confiança genuína. Mas também isso aprenderás: como as aparências têm de aparentemente ser, passando através de tudo. (Da natureza, de Parmênides, editora Loyola).

Como somos a alma, e não o corpo, a morte é bem vinda, já que desvencilhados do corpo, estaremos em melhores condições de acesso às Formas, ao que é em si. Estes são os ensinamentos de Sócrates.

O filósofo grego pré-socrático Empédocles propunha uma explicação geral do Universo no qual todas as coisas seriam constituídas da fusão de quatro elementos (terra, fogo, ar e água), sendo estes misturados ou separados pela ação do amor ou pelo ódio

Aristóteles apontará uma série de problemas e mesmo erros na doutrina platônica. Mas não seríamos justos com Platão se não mencionássemos que o próprio filósofo já havia detectado algumas aporias em sua filosofia, que foram apresentadas no diálogo Parmênides. Vamos, porém, saltar esse passo e observar o que Aristóteles tem contra Platão. Para Aristóteles, uma boa explicação deve ser simples, econômica. Ora, a teoria das Formas complica o conhecimento das causas. Para explicar “estes seres aqui”, este mundo que nos cerca, Platão teria recorrido a entidades supra-sensíveis. A diferença básica entre os dois filósofos reside no ponto de vista de cada um em relação à “essência”, à ousía. Segundo Platão, as coisas deste mundo sensível têm pouco ser, são inferiores na escala hierárquica do ser. Ora, para Aristóteles, as coisas deste mundo aqui é que têm de fato ser. Ele inverte a ordem proposta por Platão. Se antes as coisas sensíveis tinham ser porque participavam do ser mais elevado das Formas, agora, com Aristóteles, o ser mais elevado encontra-se nas próprias coisas.
Na sua Metafísica, I, 9, Aristóteles apresenta diversos argumentos contra a doutrina das Formas. Diz ele: as Formas “chegam a eliminar justamente os princípios cuja existência nos importa mais do que a própria existência das Idéias”. O que importa, então, é “isto aqui”. São “estas coisas daqui” que não podem ter seu ser suprimido, como quer a teoria das Formas. Além disso, se as Formas são a própria essência das coisas, como é possível que existam separadas das coisas? Têm que estar nas próprias coisas. Com as Formas platônicas, estaria eliminada toda possibilidade de conhecimento das coisas sensíveis, pois o que se poderia conhecer não seriam as coisas mesmas, mas as Formas separadas, transcendentes à própria coisa. A doutrina de Platão teria ainda falhado ao não dar conta dos diversos modos com que dizemos que uma coisa é. Por isso, acabou concedendo mais ser a algo que teria menos ser. Por exemplo, se dissermos “Maria é bela”, devemos notar que o ser “Maria” é mais ser do que “bela”. É Maria que existe antes de ser bela. Já o ser “bela” é um certo tipo de ser que deve sua existência a Maria. Bela é um predicado de Maria, essa sim a verdadeira ousía, a “substância”, para usar um termo consagrado na terminologia aristotélica.

Os tópicos, de Aristóteles.
Nosso tratado se propõe encontrar um método de investigação graças ao qual possamos raciocinar, partindo de opiniões geralmente aceitas, sobre qualquer problema que nos seja proposto, e sejamos também capazes, quando replicamos a um argumento, de evitar dizer alguma coisa que nos cause embaraços. Em primeiro lugar, pois, devemos explicar o que é o raciocínio e quais são as suas variedades, a fim de entender o raciocínio dialético: pois tal é o objeto de nossa pesquisa no tratado que temos diante de nós.
Ora, o raciocínio é um argumento em que, estabelecidas certas coisas, outras coisas diferentes se deduzem necessariamente das primeiras. (a) O raciocínio é uma “demonstração” quando as premissas das quais parte são verdadeiras e primeiras, ou quando o conhecimento que delas temos provém originariamente de premissas primeiras e verdadeiras: e, por outro lado (b), o raciocínio é “dialético” quando parte de opiniões geralmente aceitas. São “verdadeiras” e “primeiras” aquelas coisas nas quais acreditamos em virtude de nenhuma outra coisa que não seja elas próprias; pois, no tocante aos primeiros princípios da ciência, é descabido buscar mais além o porquê e as razões dos mesmos; cada um dos primeiros princípios deve impor a convicção da sua verdade em si mesmo e por si mesmo. São, por outro lado, opiniões “geralmente aceitas” aquelas que todo mundo admite, ou a maioria das pessoas, ou os filósofos em outras palavras: todos, ou a maioria, ou os mais notáveis e eminentes.

É grande a lista de problemas observados por Aristóteles, mas a ruptura entre os dois filósofos é de base. O ser que importa é o ser das coisas sensíveis, e são estas coisas que, na hierarquia dos seres, são mais elevadas. Mas, de alguma maneira, Aristóteles concorda com Platão. O conhecimento deve ser de conteúdos imutáveis. Como, então, conhecer o mundo sensível, que é o reino do mutável? Será preciso dar alguma estabilidade para o mundo sensível para que este possa, afinal, ser conhecido. Se for possível encontrar um certo ser estável nas coisas, será possível haver ciência dos corpos sensíveis.
O conceito de epistéme, ciência, é fundado por Platão. Contudo, do ponto de vista do platonismo, se as coisas sensíveis estão em perpétuo estado de fluxo, a ciência deve vir de algo que não seja o sensível. Por isso, para fundamentar a possibilidade da epistéme, Platão elabora o conceito de Forma, com o qual seria possível apreender-se as coisas que são, de maneira imutável e necessária. Há seres não sensíveis, acredita Platão, que podem ser objeto de conhecimento num sentido rigoroso. Assim, responde à exigência socrática acerca de “o que é”, acerca da universalidade.
Aristóteles herda de Platão esse anseio por satisfazer a noção de epistéme, que deve tratar sempre de conteúdos imutáveis de conhecimento. Afasta-se, porém, do mestre ao rejeitar a existência de idéias ou formas apartadas da matéria, existentes por si. Confere ousía às próprias coisas, não às formas platônicas. É impossível aceitar que as formas tenham existência separada da coisa, se elas são a ousía das coisas, entende Aristóteles. Ousía aplica-se às coisas sensíveis, ao domínio da natureza.
Mas Aristóteles concorda com a existência dos universais – razão, aliás, do elogio que faz a Sócrates, que teria se empenhado pela busca desses universais. Esses, porém, não existem por si, de modo imaterial, mas encontram-se nas coisas, e tomamos conhecimento deles através do intelecto, por um processo de abstração. Desse modo, Aristóteles considera que as coisas sensíveis são compostas de matéria e forma. As formas aristotélicas, ainda que possam ser abstraídas da matéria e pensadas à parte, só existem de fato quando unidas à matéria. Matéria e forma estão indissoluvelmente ligadas na constituição da substância e só podem ser separadas no pensamento. Ao contrário de Platão, Aristóteles não considera possível “reduzir todas as coisas às Formas e eliminar a matéria” (Met. VII, 1036 b23), pois “tudo que seja algo determinado possui matéria” (Met. VII, 11, 1037 a2). Entretanto, Aristóteles exclui a matéria da definição de substância, pois a matéria é algo indeterminado. Somente a forma pode ser definida e é por meio dela que será possível a ciência. Assim, a ciência aristotélica é dos objetos sensíveis, mas daquilo que neles é eterno, imutável: a forma. A epistéme deve capturar predicados universais, eternos e imutáveis.

Aristóteles satisfaz a exigência socrática de buscar o universal nos vários particulares – coisa que Platão, de alguma maneira, também já havia conseguido.

Há, pois, para Aristóteles, formas universais existentes nas coisas. Com o pensamento fazemos generalizações e apreendemos algo universal nos vários objetos corporais. As substâncias físicas são sempre individuais, mas o pensamento é capaz, por um processo de abstração, de apreender o universal nelas, apreender sua definição. Há várias árvores, cada qual diferente das outras, mas a forma “árvore” pode ser apreendida a partir de uma abstração e com isso pode ser dada uma definição de árvore, pode-se estabelecer “o que é” árvore. A forma “árvore” não é algo exterior, transcendente às várias árvores da natureza, mas é imanente a cada árvore e causa de ser de cada uma delas.
A ciência deve, então, procurar reconhecer a “qüididade” (“o que é”) e a definição de todos os seres, investigar o que faz com que “um isto” seja isto e não aquilo. Deste modo, finalmente, será possível responder à pergunta “o que é” em termos particulares, mas, ao mesmo tempo, dando uma resposta universal, da qual seja possível haver ciência. Assim, Aristóteles satisfaz a exigência socrática de buscar o universal nos vários particulares – coisa que Platão, de alguma maneira, também já havia conseguido –, mas vai além e consegue fundamentar a ciência das coisas sensíveis, a ciência da natureza.

As substâncias físicas são individuais, mas o pensamento é capaz, por meio da abstração, de apreender o universal nelas. Por exemplo, há várias árvores, cada qual diferente das outras, mas a forma “árvore” pode ser apreendida a partir de uma abstração e com isso pode ser dada uma definição de árvore, pode-se estabelecer “o que é” uma árvore

Fonte: Revista Filosofia, Maria Eduarda Martins de Oliveira.

Sócrates - Conhece-te a ti mesmo.


Originário do latim vocare, vocação quer dizer "chamado". E, como chamado, não está relacionado de forma direta a uma profissão, mas a uma questão maior: algo que diz respeito à plena realização da natureza do indivíduo. Aquele que atua dentro de sua vocação e trabalha com o que faz parte de sua natureza tem mais possibilidades de encontrar a realização e, por conseqüência, a felicidade. Como sugeriu Confúcio, professor, filósofo e teórico político chinês, que influenciou a Ásia Oriental com seus pensamentos: "Escolha um trabalho que você ame e não terás que trabalhar um único dia em sua vida".

O prazer de viver parece estar muito relacionado à realização da vocação. Os epicuristas, por exemplo, já aconselhavam aos homens que buscassem o prazer duradouro e não o efêmero. Prazer duradouro que só pode ser alcançado na realização da própria natureza do indivíduo. Confúcio propunha, como um meio de encontrar essa vocação, que as pessoas trilhassem um caminho de experimentação, baseado na educação, explica o doutor em Filosofia e Sinólogo, professor da Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória (FAFIUV), no Paraná, André Bueno.
A pedagogia de Confúcio não buscava ser condicionante, porém, ele defendia que as pessoas na época deviam aprender atividades tão diversas como caligrafia, música, arco e flecha para encontrarem aquilo de que mais gostavam de fazer. É neste momento, explica Bueno, quando se percebe que um aluno parece ter potencial especial para algo, que se pode constatar a idéia de propensão: e se ele sente um prazer especial no que faz, e o faz de maneira que isso beneficie não só a si, mas tudo à sua volta, então está encontrando o caminho certo para sua vida, está encontrando uma via (o seu Dao, conceito chinês que pressupõe a idéia de que pode ser encontrada uma via realizante).
O despertar da vocação não é algo mágico, está mesmo ligado à educação, defende o diretor nacional da Associação Cultural Nova Acrópole, o filósofo Michel Echenique Isasa, autor do livro Como reconhecer sua vocação. Para Isasa, a criança, desde cedo, precisa ser observada e orientada por educadores para encontrar seu caminho. Uma busca que não se encerra na infância, já que, ao longo da vida, o ser humano passa por várias etapas de seleção vocacional e, em todas elas, deveria ser direcionado. Para outro membro da Nova Acrópole, Luís Eduardo Wexell Machado, o ponto- chave para se encontrar a vocação é observar. "É comum que o jovem chegue ao vestibular e não saiba que curso escolher. Troca de Engenharia para Medicina, de Química para Filosofia, campos muito diferentes. Isso porque falta capacidade de observação dos mais velhos em relação aos jovens", analisa Machado. Mas Machado aponta um outro lado, a da auto-observação, ligado à famosa frase de Sócrates "Conhece-te a ti mesmo", inscrita no templo de Apolo, uma máxima filosófica essencial para gerar autorreflexão. As pessoas costumam trabalhar com orientação vocacional e uma série de instrumentos que ajudam a encontrar a vocação de cada um, mas, fundamentalmente, é a reflexão pessoal que leva ao entendimento sobre a vocação.
A Filosofia pode ajudar nessa hora, ao fornecer textos que ajudam a refletir sobre si. "Os estóicos ensinam o homem a refletir sobre as coisas dele e não dar importância ao que é dos outros. Dizem que o homem deve se preocupar com o que depende dele e não com o que não depende", diz Machado. A aplicação se daria, por exemplo, na hora de fazer escolhas, porque somos levados por certas tendências fortes de nossa cultura e quase sempre analisamos as opções a partir de um ponto de vista que tomamos como nosso, mas que, de fato, não é, pertence ao outro. "É algo que assumimos como nosso pela pressão, pela força social que aquilo tem, seja no núcleo familiar ou dos amigos. A Filosofia pode nos ajudar bastante a obtermos um grau de conhecimento maior sobre nós mesmos, como no caso da orientação dada pelos estóicos", explica Machado.
Para Confúcio, a vocação é a manifestação humana da propensão individual. Bueno explica que os chineses acreditavam que todas as coisas na natureza possuíam propriedades em sua constituição, que lhes garantiam um modo de manifestar-se em particular, diferenciando-se umas das outras. Esta propensão favorece um meio específico de agir, transformar-se e realizar-se, não importando qual seja a condição do ser. Sendo assim, todos os seres humanos têm uma propensão e, por causa disso, nenhum talento é melhor do que o outro, explica Bueno. "Na verdade, é o uso e a habilidade que alguém alcança em aproveitar seu próprio talento que dá importância a ele. Isso significa que a sociedade pode até buscar privilegiar determinados talentos (como é o caso de grandes músicos, guerreiros, atletas, etc.), mas não existe uma propensão melhor que outra: as propensões, na verdade, são importantes pelo que elas são em si", explica.

Grupos vocacionais.
Os seres humanos podem ser divididos em grupos vocacionais. Em comum, cada grupo tem tendências, inclinações e dons que o leva a exercer certo tipo de atividade. "Principalmente atividades necessárias para a sobrevivência e o desenvolvimento social", afirma o diretor nacional da Associação Cultural Nova Acrópole e autor do livro Como reconhecer sua vocação, o filósofo Michel Echenique Isasa. De acordo com ele, pode-se falar em cinco grandes grupos vocacionais que, com o passar do tempo, foram se desdobrando em muitos outros. A divisão inicial, feita ainda na antiguidade por filósofos gregos, inclui a seguinte classificação: homens com tendência ao trabalho artesanal, à produção de objetos materiais; outros, propensos à agricultura; um terceiro grupo, mais ligado ao comércio, à criação de empresas; o quarto seria aquele com inclinações para trabalhar com questões sociais, de segurança, de liderança e de organização política; e o quinto grupo, formado por pessoas com tendências para a área educacional e sacerdotal.

Bueno exemplifica essa situação no caso de um pescador, já que de sua habilidade provém o alimento que sustenta a população. Em situações normais, esta capacidade não é considerada uma das mais importantes, apesar de a sociedade não perceber que, sem ele, passará fome e o todo não funcionará até certo ponto. Já numa situação de crise, no entanto, seu talento torna-se ainda mais evidente, pois é a ele que os outros precisam recorrer. "Isso não modificou, na verdade, a propensão de alguém em conhecer o mar, a arte da pesca, bem como não afeta o seu 'talento nato'. A relevância social pode até ser contextual, mas a propensão deve ser atingida com outro fim: a realização pessoal e a felicidade", diz Bueno.
Assim, cada época tem a sua forma de dar vazão à realização vocacional, sendo que a cada dia surgem mais áreas de atuação e novidades
Assim, cada época tem a sua forma de dar vazão à realização vocacional, sendo que a cada dia surgem mais áreas de atuação e novidades, mas não chega a apagar os interesses antigos. "A humanidade continua a lidar com questões sociais, filosóficas e políticas, com a língua, a história e os outros países. A maneira como se lida com elas é que muda", explica Machado. E acrescenta que não há época que possa causar impedimento, isto é, que seja mais promissora para uma determinada vocação. "Em algumas épocas, algumas áreas estão mais na moda e dão mais retorno financeiro. Mas o primeiro critério para se encontrar e exercer a vocação não pode ser o retorno financeiro, e sim a realização do que a natureza determina. A felicidade não depende de dinheiro, mas de realização", diz. Quando existe a vocação, as pessoas fazem seu trabalho em menor tempo. Estimular a vocação era uma forma de beneficiar a sociedade como um todo

"Um mestre quis mostrar ao seu discípulo o que era realização. Foram até um jogador de xadrez e perguntaram: o que você faz? E ele respondeu: - jogo xadrez. O que faz para viver?, perguntaram novamente: - Jogo xadrez, ele respondeu. E o que gosta de fazer? Disseram - Jogar xadrez!, disse finalmente o velho. Ao saírem dali, encontraram um estudioso e lhe perguntaram: você que é estudioso, o que sabe fazer? Ele respondeu - sei várias coisas: poesia, música, história, caligrafia... - mas o que você sabe BEM?, perguntou o mestre; ao que o estudioso respondeu "bem, sei de tudo um pouco, mas acho que não sei nada tão profundamente". O mestre se virou para o seu discípulo e disse: - viu? Temos que experimentar de tudo, pra encontrarmos a nós mesmos; e tudo se resume em fazer uma coisa só: aquilo que nos torna felizes".


Falha na educação.
Confúcio dizia: "Os preceptores de hoje limitam-se a repetir coisas, a aborrecer os alunos com perguntas freqüentes e a repetir-se incessantemente. Não procuram descobrir a inclinação natural de cada um, e assim os estudantes são levados a fingir amor aos estudos, sem que nada se faça por explorar o que há de melhor em seus talentos. O que se fornece aos estudantes é errado, e não menos errado é o que deles se espera. Resultado: os alunos aprendem às escondidas as coisas de que gostam e detestam os professores, exasperam-se com as dificuldades do curso e não reconhecem nele o bem que lhes traz. Ainda que passem regularmente por todas as séries, uma vez completado o período de colégio, já se apressam em deixá-lo. Eis por que falha a educação em nossos dias".

Conselho parecido vem de Confúcio. Segundo ele, deveríamos buscar nossas propensões para nos realizarmos interiormente e não para obter riqueza, honraria ou poder. Estes valores podem até ocorrer, mas devem ser conseqüências e não um fim. "Buscar a propensão é buscar aquilo que o ser faz melhor. Fazendo isso com graça, arte e perfeição, a pessoa obtém satisfação interna, e disso resulta uma vida realizada. Sem uma vida realizada, não se pode alcançar a felicidade virtuosa", ressalva Bueno. Confúcio conclamava as pessoas a fazerem, de certo modo, aquilo que mais as agradava. Por exemplo, do que adiantaria um diploma ou um título para ser pendurado na parede? Do que adianta trabalhar em algo que não o satisfaz? Embora a sociedade costume identificar o ganho monetário com a realização pessoal, Confúcio alertava que esse não era o caminho de uma felicidade verdadeira. "Afinal, alguém pode ser feliz num emprego em que ganha menos, mas faz o que gosta. Quantos músicos, por exemplo, já não passaram fome antes de alcançar qualquer sucesso, pelo simples amor à música?", diz Bueno.
Na visão confucionista, uma pessoa só pode ser feliz, realmente, se realizar sua propensão. E isso quer dizer que uma pessoa pode até obter ganhos desempenhando bem seu papel profissional, mas o ideal é que ela se realize plenamente naquilo que lhe é mais natural, naquilo que mais se aproxima do seu talento. "Se for feliz, então até mesmo na mais humilde das profissões (numa visão cultural, claro) ela pode se realizar", explica Bueno. Falando assim, pode parecer que a vocação está relacionada apenas a uma realização íntima e pessoal. Engano. Isasa, da Nova Acrópole, explica que a base do estudo vocacional vem dos gregos e romanos, que davam grande importância à vocação por uma questão política e social: a sociedade, para ser justa, deve garantir todas as necessidades de seus componentes. E isso só se alcança quando cada um desenvolve sua vocação. "Sem ela, as coisas ficam mais caras, malfeitas ou mesmo inviáveis. Quando existe a vocação, as pessoas fazem seu trabalho em menor tempo, com menos custo e maior qualidade. Descobrir e estimular a vocação, para esses pensadores antigos, era uma forma de beneficiar a sociedade como um todo, havia uma importância política", diz Isasa.
Com a tendência da sociedade hoje relacionar o sucesso com a profissão, a vocação sempre é relacionada a uma habilidade profissional. Mas não é assim. "Na Filosofia, pensamos que vocação é um chamado para a realização do indivíduo. Realização que diz respeito ao trabalho, mas não como profissão e sim como exercício de uma natureza própria que se concretiza por meio deste trabalho. Não é um trabalho voltado para sobrevivência", diz Machado. O hobby, por exemplo, como uma atividade exercida exclusivamente como forma de lazer, distração ou passatempo, tem muito a ver com a vocação. "Em termos de qualidade, conteúdo e contexto,hobby e vocação são o mesmo. Hoje definimos o hobby como algo que se gosta de fazer, quer fazer e faz bem. Três pontos que têm a ver diretamente com a vocação: gostar, querer e saber", explica Isasa, da Nova Acrópole.

A base do pensamento chinês.
A idéia de vocação já existia na China Antiga e era inseparável do conceito de Shi (que podemos traduzir como propensão), fundamental para compreender as estruturas do pensamento chinês. Apesar das inúmeras escolas filosóficas que a China vivenciou em sua antiguidade, o pensar chinês assenta-se até hoje em uma série de conceitos que são comuns a todas estas linhas, e a concepção de "propensão" é uma delas, explica o doutor em Filosofia e Sinólogo e professor da FAFIUV de União da Vitória, no Paraná, André Bueno. "Os chineses acreditavam que todas as coisas na natureza (objetos, seres vivos e não vivos) possuíam propriedades em sua constituição que lhes garantiam um modo de manifestarse em particular, diferenciando-se umas das outras. Esta propensão favorece um meio específico de agir, transformar-se e realizar-se, não importando qual seja a condição do ser", explica Bueno. Segue um exemplo ilustrativo: "A madeira, como substância, pode ser talhada, mas não derretida. Qualquer objeto que venha a ser feito de madeira deve ser confeccionado, portanto, a partir das possibilidades que este material oferece de maneira específica. A madeira não pode cumprir as mesmas funções do barro e do metal. Ela pode incendiar-se, logo, é mais adequada a um determinado uso do que outro. Este conjunto de características que permitem a nós denominarmos algo como 'madeira' existe, assim, em função das propensões que este determinado elemento possui."
O conceito de propensão permeia a existência de todas as coisas. Mas o pensamento chinês dispõe ainda de uma outra teoria que regula o funcionamento da propensão, a concepção de "oposição complementar". Para os chineses, todas as coisas existem por meio de um processo dialético, composto por yang e yinYang e Yin não devem ser entendidos apenas como uma dualidade simples entre 'macho' e 'fêmea', 'rápido' ou 'lento', etc. Eles representam coordenadas da realidade, que indicam que, se uma coisa existe, logo, deve existir algo contrário que a comprova e a regula. Assim sendo, se existe 'luz', esta só pode ser comprovada pela sua ausência, por exemplo, que é a 'escuridão' ou 'sombra'. Se existe a idéia de 'macho', é porque existe também a idéia de 'fêmea', e assim sucessivamente. "Não se trata pois de apenas classificar, mas descobrir que uma coisa existe em função de estar associada a outra", explica Bueno. Deste modo, se a propensão é um conceito universal, logo ela deve ser regulada pelo processo de manifestação particular. "Se todas as coisas têm uma propensão, cada coisa o tem de um modo singular, seja mais evidente ou não, mais ou menos intenso, etc", afirma o professor.
Como não poderia deixar de ser, ocorre o mesmo com os seres humanos. Bueno dá como exemplo o caso de dois alunos de piano: eles iniciam no mesmo período, cumprem o mesmo número de aulas, mas depois de um certo período, um demonstra um talento incomum e o outro continua desempenhando apenas o básico. Por que um é melhor que o outro? "Para os chineses, porque um deles tem uma propensão maior para tocar piano. Isso não impede o outro aluno de aprender por meio de um esforço contínuo, mas cada pessoa tem uma propensão que a favorece, como forma de talento especial ou tendência", afirma Bueno. Este foi um dos alicerces que fundamentaram o pensamento de Confúcio sobre o ser humano. Mas Confúcio não pensava na propensão de forma fatalista, mas sim realizante, explica o professor.

Vocação se descobre na escola
Não é comum que uma pessoa descubra sozinha qual é sua própria vocação. Há um processo educativo para desenvolver esse processo, já que a vocação deve ser direcionada por pedagogos a partir dos quatro anos de idade. Assim, a vocação faz parte da educação. "Educar significa educir, fazer com que o aluno traga para fora o que tem dentro de si. Uma educação sem vocação não tem espírito, não tem inteligência", defende Michel Echenique Isasa. Isto é, se o indivíduo não é educado, se não recebe um direcionamento desde cedo para a vocação, ele não vai nem ter idéia de que ela existe. "Hoje, nas melhores faculdades do mundo, com as melhores condições sociais, o ser humano não desenvolve mais de três por cento de seu potencial. Não há uma educação vocacionada, o que levaria a um melhor aproveitamento do potencial de cada um", acredita Isasa.
O diretor nacional da Associação Cultural Nova Acrópole lembra que não existe um estudo acadêmico ou uma disciplina que se encarregue em termos educacionais, filosóficos e científicos de desenvolver a vocação. Encontrar a vocação é hoje algo que só ocorre por acaso. E encontrar a vocação independe do nível de riqueza ou do estrato social a que a pessoa pertence. "Alguns, mesmo sem saber muito bem como, descobrem sua vocação e têm força moral e inteligência para desenvolvê-la. Mas isso teria de ser uma conquista de todos, proporcionada pelo ensino em seus vários níveis", diz Isasa. Segundo ele, a descoberta da vocação de cada um resolveria muitos problemas sociais.

Diz uma passagem do Liji (Manual dos rituais), antigo texto resgatado por Confúcio:
"No final do primeiro ano, procedia-se a uma tentativa de verificar até que ponto os alunos sabiam pontuar seus escritos e descobrir suas vocações. No fim de três anos, procurava-se determinar os hábitos de estudo dos alunos e de sua vida em grupo. No fim de cinco anos investigava-se até onde iam os conhecimentos gerais dos alunos e até que ponto eles haviam acompanhado os preceptores. No fim de sete anos, observava- se como se haviam desenvolvido as idéias dos alunos e que espécie de amigos cada qual escolhera para si. {...} Ao cabo de nove anos era de esperar-se que o aluno dominasse as várias matérias estudadas e tivesse uma compreensão geral da vida, tendo assim firmado o próprio caráter em bases de onde não Reprodução de um dos livros do Manual dos Rituais pudesse retroceder".

Fonte: Revista Filosofia, Patrícia Pereira.