quarta-feira, 30 de maio de 2012

O que é nanotecnologia.

“Os princípios da física, pelo que eu posso perceber, não falam contra a possibilidade de manipular as coisas átomo por átomo. Não seria uma violação da lei; é algo que, teoricamente, pode ser feito, mas que na prática nunca foi levado a cabo porque somos grandes demais” (Richard Feynman).
A nanotecnologia é a capacidade potencial de criar coisas a partir do menor, usando as técnicas e ferramentas que estão a ser desenvolvidas nos dias de hoje para colocar cada átomo e cada molécula no lugar desejado. Se conseguirmos este sistema de engenharia molecular, o resultado será uma nova revolução industrial. Além disso, teria também importantes consequências econômicas, sociais, ambientais e militares.
Quando Eric Drexler popularizou a palavra “nanotecnologia”, nos anos 80, referia-se à construção de máquinas à escala molecular, de apenas uns nanômetros de tamanho: motores, braços de robô, inclusive computadores inteiros, muito mais pequenos do que uma célula. Drexler passou os seguintes dez anos a descrever e analisar esses incríveis aparelhos e a dar resposta às acusações de ficção científica. No entanto, a tecnologia convencional estava desenvolvendo a capacidade de criar estruturas simples à escala reduzida. Conforme a nanotecnologia se converteu num conceito aceite, o significado da palavra mudou para abranger os tipos mais simples de tecnologia à escala nanométrica. A Iniciativa Nacional de Nanotecnologia dos Estados Unidos foi criada para financiar esse tipo de nanotecnologia: a sua definição inclui qualquer elemento inferior a 100 nanômetros com propriedades novas.
Fala-se com frequência da nanotecnologia como uma “tecnologia de objetivos gerais”. Isso se deve ao fato de que na sua fase madura terá um impacto significativo na maioria de indústrias e áreas da sociedade. Melhorará os sistemas de construção e possibilitará a fabricação de produtos mais duráveis, limpos, seguros e inteligentes, tanto para a casa, como para as comunicações, os transportes, a agricultura e a indústria em geral.
Imagine dispositivos médicos com capacidade para circular na corrente sanguínea e detectar e reparar células cancerígenas antes que se estendam. Imagine o que seria “encolher” todo o conteúdo da Biblioteca Nacional num dispositivo do tamanho de um cubo de açúcar. Ou, então, desenvolver materiais dez vezes mais resistentes que o aço e com apenas uma fração do peso.
Tal como já aconteceu com a eletricidade ou os computadores, a nanotecnologia melhorará em grande medida quase todas as facetas da vida diária. Como tecnologia de objetivos gerais, porém, teria um uso duplo, ou seja, teria múltiplas aplicações comerciais e também militares: seria possível produzir, por exemplo, armas e aparelhos de vigilância muito mais potentes. A nanotecnologia representa, portanto, incríveis vantagens para a humanidade, mas também graves riscos.
A base da nanotecnologia é o fato de que não só oferece produtos aperfeiçoados como também uma ampla variedade de melhores meios de produção. Um computador pode fazer cópias de ficheiros de dados; basicamente tantas cópias como quisermos a um custo muito reduzido ou mesmo inexistente. Pode ser apenas uma questão de tempo até que a fabricação de produtos se torne tão barata como a cópia de ficheiros. Aqui reside a verdadeira importância da nanotecnologia, por isso é vista às vezes como “a próxima revolução industrial”.
[...]
Seria possível condensar o poder da nanotecnologia num aparelho, na aparência simples, chamado nanofábrica, cheio de minúsculos processadores químicos, computadores e robôs e que poderia ir colocado no seu computador pessoal. Os produtos seriam fabricados diretamente a partir dos projetos e, portanto, tratar-se-ia de um processo rápido, limpo e barato.
A nanotecnologia não só permitiria a fabricação de produtos de alta qualidade a um custo muito reduzido como também a criação de novas nanofábricas com o mesmo custo e velocidade. É mesmo por essa capacidade única de autorreprodução (para além da biologia, evidentemente) pelo que a nanotecnologia se denomina “tecnologia exponencial”. Refere-se a um sistema de fabricação que, por sua vez, seria capaz de produzir mais sistemas de fabricação-fábricas - que produzem outras fábricas - de maneira rápida, barata e limpa. Os meios de produção poder-se-iam reproduzir exponencialmente. Portanto, em apenas umas semanas, poderíamos passar de um reduzido número de nanofábricas para vários bilhões. Constitui, então, um tipo de tecnologia revolucionário, transformador, potente mas também com muitos riscos ou vantagens potenciais.
Quanto tempo demorará a ser uma realidade? Os analistas mais prudentes falam num período de vinte ou trinta anos a partir de agora, ou ainda mais tarde. No entanto, provavelmente, durante a próxima década. Isto é devido ao rápido avanço das novas tecnologias como, por exemplo, no campo da óptica, nanolitografía, mecânoquímica e criação de protótipos em 3D. Caso chegar tão rápido, talvez não estejamos prontos e poderia ter graves consequências.
Julgamos que não é cedo demais para começar a colocar uma série de questões e abordar os seguintes temas:
- A quem pertencerá a tecnologia?
- Estará altamente restringida, ou amplamente disponível?
- Como afetará ao fosso entre ricos e pobres?
- Cemo poderão ser controladas as armas perigosas e prevenir corridas armamentistas?
Muitas destas questões já foram colocadas há mais de uma década e ainda não receberam resposta. Caso não abordarmos essas questões de maneira deliberada, as respostas chegarão sozinhas e podem apanhar-nos de surpresa; e a surpresa provavelmente não seja agradável.
É difícil antecipar com certeza quanto tempo tardará esta tecnologia em madurar, em parte porque poderia acontecer que já estejam a ser desenvolvidos desde há anos programas industriais ou militares clandestinos sem o nosso conhecimento (especialmente em países que não têm sociedades abertas).
Não podemos garantir que a nanotecnologia não será desenvolvida plenamente nos próximos dez anos ou inclusive cinco anos. Embora possa levar mais tempo, a prudência e a nossa sobrevivência exige que pensemos no cenário mais antecipado e que, portanto, nos preparemos já.
Fonte: http://www.euroresidentes.com/futuro/nanotecnologia.

Nietzsche – Filosofando.


Apolíneo e dionisíaco.
Em sua obra, Nietzsche critica a tradição da filosofia ocidental a partir de Sócrates, a quem acusa de ter negado a intuição criadora da filosofia anterior, pré-socrática.
Nessa análise, o filósofo alemão, Nietzsche, estabelece a distinção entre dois princípios: o apolíneo e o dionisíaco, a partir, respectivamente, dos deuses gregos Apolo (deus da razão, da clareza, da ordem) e Dioniso (deus da aventura, da música, da fantasia, da desordem).
Para Nietzsche, esses dois princípios ou dimensões complementares da realidade – o apolíneo e o dionisíaco – foram separados na Grécia socrática, que, optando pelo culto à razão, secou a seiva criadora da filosofia, contida na dimensão dionisíaca.
A transvaloração dos valores.
O pensamento de Nietzsche (1844-1900) orienta-se no sentido de recuperar as forças vitais, instintivas, subjugadas pela razão durante séculos. Para tanto, critica Sócrates por ter sido o primeiro a encaminhar a reflexão moral em direção ao controle racional das paixões. Segundo Nietzsche, a tendência de desconfiança nos instintos culmina com o cristianismo, que acelera a domesticação do ser humano. Em diversas obras, como Sobre a genealogia da moral, Para além do bem e do mal e Crepúsculo dos ídolos, em estilo apaixonado e mordaz, Nietzsche faz a análise histórica da moral e denuncia a incompatibilidade entre esta e a vida. Em outras palavras, sob o domínio da moral, o ser humano se enfraquece, tornando-se doentio e culpado.
Nietzsche relembra a Grécia homérica, do tempo das epopéias e das tragédias, momento em que predominavam o que para ele eram os verdadeiros valores aristocráticos, quando a virtude reside na força e na potência, como atributo do guerreiro belo e bom, amado dos deuses. Segundo Homero, entre inimigos não há bom ou mau, porque ambos são valorosos.
Ao fazer a crítica da moral tradicional, Nietzsche preconiza a “transvaloração de todos os valores”. Diz Scarlett Marton:
A noção nietzschiana de valor opera uma subversão crítica: ela põe de imediato a questão do valor dos valores e esta, ao ser coloca, levanta a pergunta pela criação dos valores. Se até agora não se pôs em causa o valor dos valores “bem” e “mal”, é porque se supôs que existiram desde sempre; instituídos num além, encontravam legitimidade num mundo suprassensível. No entanto, uma vez questionados, revelam-se apenas “humanos, demasiado humanos”; em algum momento e em algum lugar, simplesmente foram criados”.
A genealogia da moral.
Se os valores não existiram desde sempre, mas foram criados, Nietzsche propõe a genealogia como método de investigação sobre a origem deles. Mostra assim as lacunas, o que não foi dito ou foi recalcado, permitindo que alguns valores predominassem sobre outros, tornando-se conceitos abstratos e inquestionáveis.
Pela genealogia Nietzsche descobre que os instintos vitais foram submetidos e degeneraram. Procura então ressaltar aqueles valores comprometidos com o “querer-viver”. Denuncia a falsa moral, “decadente”, “de rebanho”, “de escravos”, cujos valores seriam a bondade, a humildade, a piedade e o amor ao próximo. Distingue então a moral de escravos e a moral de senhores.
a) A moral de escravos.
A moral de escravos é herdeira do pensamento socrático-platônico – que provoca a ruptura entre o trágico e o racional – e da tradição judaico-cristã, da qual deriva a moral decadente, porque baseada na tentativa de subjugação dos instintos pela razão. O homem-fera, animal de rapina, é transformado em animal doméstico ou cordeiro. A moral plebéia estabelece um sistema de juízos que considera o bem e o mal valores metafísicos transcendentes, isto é, independentes da situação concreta (histórica) vivida.
A moral de escravos nega os valores vitais e resulta na passividade, na procura da paz e do repouso. O indivíduo se enfraquece e tem diminuída sua potência. A alegria é transformada em ódio à vida, o ódio dos impotentes. A conduta humana, orientada pelo ideal ascético, torna-se vítima do ressentimento e da má consciência – o sentimento de culpa.
O ressentimento nasce da fraqueza e é nocivo ao fraco. O indivíduo ressentido, incapaz de esquecer, é como o dispéptico (que digere mal os alimentos – no texto significa o ressentido “remói” o seu fracasso): fica “envenenado” pela sua inveja e impotência de vingança. Ao contrário, o indivíduo nobre sabe “digerir” suas experiências, e esquecer é uma das condições de manter-se saudável.
O sentimento de culpa é o ressentimento voltado contra si mesmo, daí fazendo nascer a noção de pecado, que inibe a ação. O ideal ascético nega a alegria da vida e coloca a mortificação como meio para alcançar a outra vida num mundo superior, do além. As práticas de altruísmo destroem o amor de si, domesticando os instintos e produzindo gerações de fracos.
b) A moral de senhores.
A moral “de senhores” é a moral positiva que visa à conservação da vida e dos seus instintos fundamentais. É positiva porque baseada no sim à vida, e configura-se sob o signo da plenitude, do acréscimo. Funda-se na capacidade de criação, de invenção, cujo resultado é a alegria, consequência da afirmação da potência. O indivíduo que consegue se superar é o que atingiu o além-do-homem.
O sujeito além-do-homem é aquele que consegue reavaliar os valores, desprezar os que o diminuem e criar outros que estejam comprometidos com a vida. Assim diz Roberto Machado:
É por isso que contra o enfraquecimento do homem, contra a transformação de fortes em fracos – tema constante da reflexão nietzschiana – é necessário assumir uma perspectiva além de bem e mal, isto é, “além da moral”. Mas, por outro lado, para além de bem e mal não significa para além de bom e mau. A dimensão das forças, dos instintos, da vontade de potência permanece fundamental. “O que é bom? Tudo que intensifica no homem o sentimento de potência, a vontade de potência, a própria potência. O que é mau? Tudo que provém da fraqueza”.
A vontade de potência.
Com o que foi exposto, talvez se pense que Nietzsche chega ao extremo individualismo e amoralismo. Muitos inclusive o chamaram de niilista, para acusá-lo de não acreditar em nada e negar os valores, o que não faz jus ao seu pensamento. Ao contrário, o filósofo atribuía o niilismo (significa nada) à moral decadente dos valores tradicionais, que acomodaram o ser humano na mediocridade que tudo uniformiza.
Destruir esses valores é a condição para que possam nascer os valores novos do além–do-homem, o que só pode ser alcançado pela “vontade de poder”. Também essa expressão leva a confusões: não se trata de poder que domina os outros, mas das forças vitais recuperadas pelo indivíduo dentro de si “num dionisíaco dizer-sim ao mundo” e que se encontravam entorpecidas.
Nesse sentido, o poder é virtude no sentido de força, vigor, capacidade. Portanto, virtude é autorrealização. Se essa moral valoriza a individualidade, o faz tanto para si como para os outros, pois cada um pode ser ele mesmo.
Niilismo.
Segundo a análise de Nietzsche, no momento em que o cristianismo deixou de ser a “única verdade” para se tornar uma das interpretações possíveis do mundo, toda a civilização ocidental e seus valores absolutos também foram postos em xeque. Nesse contexto, ocorre uma escalada do niilismo, que “deve ser entendido como um sentimento opressivo e difuso, próprio às fases agudas de ocaso de uma cultura. O niilismo seria a expressão afetiva e intelectual da decadência.
O niilismo moderno apontado por Nietzsche assenta-se, em grande parte, na ideia da “morte de Deus”. Em sua obra Gaia ciência, o filósofo decreta que “Deus está morto”, mas esclarece que quem o matou fomos nós mesmos, ou seja, trata-se de um acontecimento cultural. Desse modo, teríamos destruído os fundamentos transcendentais (assentados em Deus) dos valores mais caros de nossas vidas.
Assim, por meio do niilismo:
[...] o homem moderno vivencia a perda de sentido dos valores superiores de nossa cultura. Por essa ótica, niilismo seria o sentimento coletivo de que nossos sistemas tradicionais de valoração, tanto no plano do conhecimento quanto no ético-religioso, ou sociopolítico, ficaram sem consistência e já não podem mais atuar como instâncias doadores de sentido e fundamento para o conhecimento e a ação.
Apesar desse niilismo em relação aos valores consagrados da civilização, Nietzsche defendeu também valores afirmativos da vida, capazes de expandir as energias latentes em nós.
“Ouse conquistar a si mesmo” talvez seja a grande indicação nietzschiana àqueles que buscam viver a “liberdade da razão”, sem conformismo, resignação ou submissão.
Fonte: Filosofando: introdução à Filosofia e Fundamentos de Filosofia.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Hobbes versus Aristóteles: a socialização como problema.


Desde os primórdios da humanidade, a vida em sociedade é marcada por contradições e conflitos. Na atualidade, este fato está cada vez mais visível, na medida em que assistimos, atônitos, ao alto grau de violência nos grandes centros urbanos. A todo instante, somos conduzidos a crer que a violência faz parte da condição humana, ou seja, que somos naturalmente seres violentos. Com efeito, acreditar nesta premissa torna-se argumentativamente onerosa, pois, como se sabe, nada pode justificar de forma plausível que a violência nos é verdadeiramente inerente.
De fato, no contexto do sistema que emerge na atualidade, as relações humanas encontram-se cada vez mais imersas em atitudes de intolerância, deflagrando assim um empobrecimento das condições de vida. A “boa vida” que Aristóteles apregoa não nos cabe mais? Em nosso cotidiano, não cabe mais pensar na solidariedade? Vivemos numa época de transformações em todos os níveis. Não obstante, estas transformações refletem inexoravelmente na nossa própria capacidade de lidarmos com o semelhante ou o outro. O outro é cada vez mais estranho para nós, ele está mais distante de nossa própria capacidade de compreendermo-nos enquanto indivíduos e cidadãos. Somos mesmo um animal político? Nossa condição natural é sermos hostis, intolerantes, egoístas e desleais? Como definir o gênero humano?
As respostas a estas indagações devem necessariamente perpassar pelo questionamento das condições e particularidades da natureza humana. Neste viés argumentativo, o problema acerca da natureza humana emerge na História da Filosofia como uma reflexão sobre a própria animalidade do homem. Afinal, o objetivo de uma reflexão sobre a essência da natureza humana não é identificar aquilo que é próprio do homem??
Com o propósito de nos guiar neste assunto tão complexo e rico de argumentos e contra-argumentos torna-se absolutamente necessário um solo firme para que se possa apoiar em vista a alcançar a significação plena da nossa própria natureza e, consequentemente, das explicações para nossos atos e dilemas atuais. Desse modo, a contradição de ideias de Aristóteles e Hobbes nos será fundamental neste objetivo.
A natureza egoísta dos homens.
A dificuldade em aceitar outras ideias, como as advindas da Religião, é mostra de que o homem é, essencialmente, egoísta e intolerante? Como é possível viver em sociedade desta forma?
O exame proposto pelo filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) acerca da natureza humana ocorre em dois planos que, de certa forma, se complementam. Assim, o Filósofo parte dos primeiros indícios de movimento do homem, em vistas ao conhecimento das paixões e outras faculdades humanas, com o objetivo maior de demonstrar, em um segundo momento, como estas paixões e faculdades determinam o comportamento inevitável do homem em relação aos outros homens, quando removida a obrigação do cumprimento da lei e dos contratos, o estado de natureza.
Desse modo, por meio da descrição do comportamento dos homens neste estado, Hobbes caracterizará a natureza do “homem natural” no plano de interação a partir de dois predicados fundamentais: (a) o primeiro, decorrente da igualdade de condições, é a cobiça natural dos homens proveniente das suas paixões; (b) o segundo, é o desejo que cada homem possui de evitar a morte como o maior dos males da natureza. O primeiro predicado que caracteriza o homem natural “abarca o uso desregrado que faz do seu derredor”, procurando decidir a ferro e fogo a questão do “meu” e do “teu” a seu favor, ignorando, acima de tudo, qualquer prescrição normativa. De acordo com Hobbes, a cobiça humana não conhece limites naturais, de modo que a pergunta acerca do que pertence a um ou a outro homem é decidida pelo poder que cada homem consegue exercer sobre os semelhantes. O segundo predicado explicita a racionalidade da conduta dos homens no estado de natureza, ao passo que os homens violam a palavra dada, quebram acordos ocasionais e “se agridem reciprocamente na medida em que não são capazes de descobrir como irão agir e reagir os seus semelhantes em cada momento, razão pela qual é melhor o ataque do que ser atacado”.
Tal caracterização da natureza humana já é suficiente para inferir que, por natureza, o homem hobbesiano tende para a associabilidade no lugar da sociabilidade. Esta pressuposição é perfeitamente justificável pelo fato de que, sendo os homens naturalmente iguais e detentores dos mesmos direitos, dificilmente os homens poderiam estabelecer naturalmente uma sociabilidade estável de maneira a garantir uma convivência pacífica sem causar danos uns aos outros. Citemos Hobbes no Leviatã: “(...) os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de manter a todos em respeito. Porque cada um pretende que seu companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele se atribui a si próprio e, na presença de todos os sinais de desprezo ou subestimação, naturalmente se esforça, na medida em que tal se atreva (o que, entre os que não têm um poder comum capaz de submeter a todos, vai suficientemente longe para levá-los a destruírem-se uns aos outros), por arrancar de seus contendores a atribuição de maior valor, causando-lhes dano e dos outros também, através do exemplo”.
Dessa forma, é possível conceber que Hobbes empreende uma caracterização da natureza humana em oposição à concepção clássica ou aristotélica, segundo o qual o homem é, devido à sua natureza singular, um “animal político” (zóon politikón) determinado por um instinto gregário que o conduziria espontaneamente a conviver com seus semelhantes. Vejamos, portanto, como Aristóteles apresenta esta concepção para, a partir desta, mostrar como Hobbes desenvolve a sua crítica ao modelo de homem, tal como é concebido pela tradição aristotélica.
Aristóteles e a política.
Em sua obra Política, o filósofo grego Aristóteles (384 a.C.- 322 a.C.) afirma ser a pólis (a cidade-estado grega) resultante de uma série de associações naturais, ou seja, como resultado de um processo natural de desenvolvimento, “tão natural como a união de homem e da mulher – com fim de preservar a espécie”. Uma associação humana qualquer é, segundo o filósofo em questão, um todo composto por pelo menos mais de um indivíduo, que tem como fim um determinado bem. Como afirma Émile Boutroux, “em Aristóteles, segundo a ordem do tempo, a primeira destas associações corresponderia à família (oikía), que é, portanto, a união natural do homem e da mulher em vista de satisfazer a necessidades cotidianas”.
No Brasil, uma antiga propaganda de cigarro com um jogador da seleção brasileira da época propiciou a famosa “Lei de Gérson”. Ela é usada hoje para determinar um certo estereótipo nacional, daquele que quer levar vantagem em tudo e, por isso, não respeita regras de convivência
Em seguida, tendo em vista a natureza processual no que concerne as associações humanas, Aristóteles concebe outra forma de associação, esta, portanto, proveniente da união de diversas famílias para suprir necessidades que não se limitam à vida cotidiana, o qual denomina de aldeia (kóme), cuja forma mais natural parece ser a de uma “colônia da família”. Por fim, Aristóteles caracteriza a maior de todas as associações, que “inclui em si todas as demais”, tendo em vista o maior de todos os bens. Esta associação, que resulta na cidade, Aristóteles a denomina de “associação (ou comunidade) política”.
Vejamos como o filósofo expõe essa perspectiva: “(...) A comunidade formada por muitas aldeias é a cidade (pólis) definitiva; da qual se pode dizer que atinge desde então a completa autossuficiência (autarkéias). Surgindo para permitir viver (tôu zên), ela existe para permitir viver bem (tôu êu zên). Portanto, se as primeiras comunidades são um fato da natureza, também o é a cidade, porque ela é o fim daquelas comunidades, e a natureza de uma coisa é o seu fim: aquilo que cada coisa se torna quanto atinge seu completo desenvolvimento, nós chamamos de natureza daquela coisa, quer se trate de um homem, de um cavalo ou de uma família”.
De fato, Aristóteles define a cidade como a forma última do processo natural concernente à associação humana, pois é aquela que pode permitir aos homens uma vida melhor, isto é, uma vida com qualidade. Disto resultam duas consequências quase imediatas sobre esta questão: a cidade existe naturalmente e o homem vive por natureza em cidades. Tais considerações ficam patentes na seguinte passagem da Política: “Estas considerações deixam claro que a cidade é uma criação natural, e que o homem é por natureza um animal social, e um homem que por natureza, e não por mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade (...), e se poderia compará-lo a uma peça isolada do jogo de gamão”.
Tal conclusão que caracteriza a cidade (pólis) como uma associação que possui por finalidade o soberano bem, fundamenta-se, como se pode observar, em três premissas: a) que a cidade é certo tipo de associação; b) que toda associação é constituída em vista de certo bem; c) que de todas as associações, a cidade é a mais importante ou a “soberana comunidade” é aquela que inclui todas as outras. Disto se depreende facilmente que o bem próprio visado por esta associação soberana é o “bem soberano”.
Na perspectiva de Francis Wolff , esta tese é fundamental, pois ela distingue a argumentação de Aristóteles de todos seus predecessores, na medida em que, no lugar de justificar a cidade por razões gerais comuns a qualquer associação, atribui a cada tipo de associação uma razão de ser própria e confere assim à Política uma esfera singular. No lugar de atribuir à cidade a mais baixa das finalidades, ou, ao menos, a justificação mínima (a associação política é necessária porque é necessário afinal viver, no sentido de sobreviver, isto é, ajudar-se mutuamente), Aristóteles confere-lhe, desde logo, a finalidade mais elevada: se os homens vivem em cidades, não o fazem somente por não poderem evitá-lo, mas para atingir o mais alto, “o maior dos bens”.
Desse argumento advém o elemento fundamental da ontologia aristotélica que Wolff caracteriza da seguinte forma: “um homem, uma comunidade, um ser qualquer serão felizes somente se puderem se bastar a si mesmos, isto é, se encontrarem em si mesmo aquilo com que sejam eles mesmos, serem sem ter necessidade de nada. Ninguém é plenamente, se lhe faltar alguma coisa, se não for plenamente. Um homem sozinho é carente. Não pode ser. Carece dos outros, porque carece de tudo. Os homens, seres “de carência”, podem juntos se completar com aquilo que lhes falta. O homem não pode ser, e portanto não pode ser homem, se não for pela e na comunidade. A comunidade política sendo aquela que não carece de nada, é a única a plenamente ser. Portanto, é somente por ela que o homem é plenamente: é na cidade e pela cidade que o homem é homem”.
Ainda que a cidade seja constituída na naturalmente, isto não significa que a natureza a produza espontaneamente. As associações humanas possuem como fim um determinado bem, pois, segundo Aristóteles, todas as ações humanas são realizadas em vistas a algo que lhes parece ser realmente bom. Logo, aquele que se associa a outro possui em vista um bem para si com essa associação. No entanto, esta associação é, segundo Aristóteles, consequência de um impulso natural, um instinto, que naturalmente conduzem os homens a este fim tendo em vista a uma “boa vida”. 
É nesse sentido que a cidade é considerada para ele como resultante de um processo último das associações humanas no qual os homens atingiriam a realização do fim maior que perseguem, que é a “boa vida”. Ou seja, não apenas uma mera vida, mas uma vida com “qualidade”, ou seja, uma “boa vida”. Não obstante, o fim de cada homem na cidade que é a manutenção da qualidade de sua própria vida depende, portanto, que os homens atinjam seu próprio fim, que é o seu bem principal, a saber, a sua autossuficiência, ou seja, ao contrário do homem, a cidade tem que ser um fim em si mesmo.
Essas considerações tornam manifesto que a cidade é uma realidade natural e que o homem é, por natureza, um animal político (politikón zôon). Aquele que, por natureza e não por mero acidente, não faz parte de uma cidade é ou um ser degradado ou um ser superior ao homem. Ele é como aquele a quem Homero censura por ser “sem clã, sem lei e sem lar”; um tal homem é, por natureza, ávido de combates, e é como uma peça isolada no jogo de damas. É evidente, assim, a razão pela qual o homem é um animal político em grau maior que as abelhas ou todos os outros animais que vivem reunidos.
Apesar disso, o naturalismo desse processo descrito por Aristóteles assenta, antes de tudo, na espontaneidade da gênese da cidade a partir dos agrupamentos que a integram, movidos pelo objetivo de obter o que se lhes apresenta como bem. Dessa forma, o naturalismo subjacente à formação da pólis explica-se, ainda, pela realidade desta enquanto comunidade de cidadãos, de modo que a respectiva natureza se confunde com a dos seus membros. Com efeito, neste sentido os homens não se definem como meros “animais gregários”, mas são por natureza animais políticos. Isto significa que, para realizar as suas potencialidades específicas, os homens necessitam viver com os seus semelhantes numa comunidade ordenada ou submetida às leis e à justiça
Transhumanismo:
Nanotecnologia para pessoas “imortais”.
O transhumanismo é um movimento que defende o uso da Ciência e Tecnologia para aumentar a inteligência, a longevidade e o bem-estar dos seres humanos, bem como para eliminar o sofrimento de todos os seres conscientes. Seguidores do movimento transhumanista acreditam que aspectos, considerados negativos da natureza humana, são desnecessários e indesejáveis.
Deficiências físicas e mentais, o sofrimento, a doença, o envelhecimento e a morte involuntária estão na lista de atributos da natureza humana considerados desnecessários pelo transhumanismo.
Ray Kurzweil, o cientista por trás do conceito, é chamado de “apóstolo do transhumanismo”, e autor de livros sobre o tema, tal como: “When Humans Transcend Biology” (Quando os Humanos Transcendem a Biologia) e “The Age of Spiritual Machines” (A era das máquinas espirituais).
Kurzweil é muito respeitado pela comunidade científica e tem oito doutorados honorários. Conhecido como Cyber- Nostradamus e chamado de futurista por nunca ter errado uma previsão, ele afirma que, a partir de 2045, o ser humano poderá estar totalmente integrado a uma Inteligência Artificial e que surgirá uma nova raça, que desconhecerá o envelhecimento e a morte.
De acordo com a teoria, pessoas receberão “nano chips” no cérebro, o que aumentará sua capacidade intelectual um bilhão de vezes.
Segundo a revista Exame, o chamado “apóstolo do transhumanismo” tem hoje 62 anos e toma 250 comprimidos por dia para alcançar o ano 2029, data em que ele diz ter certeza de que, a partir dali, os seres humanos poderão viver para sempre.
Veja no site "noticias.gospelmais.com.br/transhumanismo-seita-quer-transformar-pessoas-em-deuses-imortais-30227. html" a explanação de um dos defensores do transhumanismo, Michio Kaku, sobre sua crença de que todos os seres humanos se tornarão deuses
O conflito entre as posições.
Diante desses referenciais conceituais sobre a argumentação política aristotélica, pode-se, portanto, explorar a crítica hobbesiana ao modelo de homem, tal como é compreendido por Aristóteles. No entanto, a explicação deve ser entendida no contexto de uma discussão que remeta diretamente a argumentação de Hobbes acerca da necessidade do contrato social. Desse modo, primeiramente, é preciso ressaltar que, segundo este, Aristóteles parte de um axioma falso para deduzir a necessidade do Estado, pois este se sustenta teoricamente na medida em que não está de acordo com a realidade: “A maioria dos homens que escreveram sobre o Estado (Commonwealth)”, observa o filósofo, “supõe ou exige ou nos pede que acreditemos que o homem seja uma criatura por natureza apta à vida em sociedade”. Na visão de Hobbes, o erro de Aristóteles consiste numa contemplação superficial da natureza humana. Esta contemplação superficial impede, de certa forma, afirma Ribeiro, “de identificar onde está o conflito, e de contê-lo”.
Sobre isto, vejamos a seguinte passagem: “Apesar de muito difundida, é ainda assim falso; trata-se de um erro resultante de uma análise muito superficial da natureza humana, pois, ao analisarmos mais apuradamente as razões que levam os homens a se agregarem em sociedade e a se deleitarem na companhia uns dos outros, descobriremos que isso não ocorre necessariamente, mas sim por causalidade”. Avesso a esta pressuposição, Hobbes fornece uma prova contrária quando argumenta: “se os homens se amassem reciprocamente graças à sua natureza, isto é, devido ao fato de serem homens, seria inexplicável por que não amam cada semelhante de forma igual, já que todos são igualmente homens”.
Desse modo, para o filósofo, “as razões pelas quais os homens se associam uns com os outros só se tornam claras ao observar o que fazem depois de se haverem congregados em sociedade”. Hobbes, logo após explicitar que há seres vivos como as abelhas e as formigas que, vivendo socialmente umas com as outras, possuem seus juízos e desejos particulares e dispõem de outro meio afora sua linguagem, por meio da qual indicam às outras o que consideram adequado para o bem comum, no Leviatã, fornece seis razões pelas quais esses animais não servem como modelo para o convívio humano.
Diante dos argumentos de Hobbes, no qual ele contrasta a sociabilidade humana da sociabilidade animal, podemos inferir, por sua demonstração, que a sociabilidade humana é bastante diferente da sociabilidade natural aristotélica, pois mesmo os desvios do comportamento animal, este não deixam de perseguir um fim comum, enquanto que a conduta humana tende naturalmente para a desagregação. Por outro lado, os desvios dos homens, ao contrário dos animais, adquirem rapidamente o caráter de lutas e querelas que acabam por determinar em uma “guerra de todos contra todos”, colocando, portanto, em questão a própria sociabilidade humana.
Portanto, em Hobbes, a sociabilidade humana não é natural, mas sim política, na medida em que a associação entre os homens ocorre por acidente, e não por uma disposição necessária da natureza.
Embora ambos os filósofos considerem os homens em relações uns com os outros, a perspectiva hobbesiana avalia a natureza do homem natural de forma absolutamente negativa, na medida em que atribui a sua natureza atributos que os caracterizam em um formato de ferocidade e egoísmo, evidenciando que o que há de mais universal nestes advém, sobretudo, da cobiça natural de cada um proveniente de suas paixões naturais.
A leitura de Hobbes acerca da natureza humana repercute até hoje sendo motivo de muitas discussões. Polêmico, ousado, e talvez, inconsequente, não se pode negar a originalidade do seu pensamento. O que fica patente das suas conclusões é que nas condições em que predomina uma perpétua disposição para a violência generalizada, a conservação da vida torna-se inviável, tendo em vista que a competição pelo poder como estratégia de sobrevivência resulta em uma situação de insegurança absoluta, através do medo constante, por parte de cada homem, da morte violenta imposta pelos demais.
Portanto, diante do apresentado, podemos refletir: será possível os homens conviverem pacificamente pela simples leitura do princípio do respeito à dignidade da pessoa humana? Neste viés, Norbert Elias crê que o cidadão, enquanto indivíduo ligado “à sociedade, possui seus temores a partir de ações violentas, pelo qual quanto mais os indivíduos se inserem na vida dos semelhantes com atitudes de perigo, maiores serão os temores sentidos e sofridos”.
Trata-se, portanto, de uma de guerra no interior da sociedade de todos contra todos, cujos valores humanos começam a arruinar-se pela inadequação da ausência de respeito e, respectivamente da ausência do senso de justiça. Por sua vez, tal inadequação explica perfeitamente a exacerbação da violência que assola o homem contemporâneo e, por consequência, a sociedade como um todo. Pensando assim, enfrentamos o estágio da negação da regra social, em que a insegurança passa a ser a orientação básica dos homens, cuja liquidez das relações desencadeia a exclusão e a desintegração social e, por outro lado, a solidariedade cede cada vez mais espaço para o egoísmo desenfreado.
Fonte: Revista Filosofia, Delmo Mattos.

A aprovação pelo parlamento holandês da eutanásia está provocando acaloradas discussões também entre nós. A questão é polêmica e permite múltiplas posições. Queremos apresentar uma das posições, compartilhada por significativo grupo de teólogos cristãos. Embora não gozem de unanimidade, representam uma contribuição a ser considerada.
Há de se partir do fato de que a morte pertence à vida. E a vida pertence à eternidade que é a realização plena das virtualidades da vida. Como somos responsáveis pela nossa vida assim devemos ser responsáveis também pela nossa morte.
Temos direito a uma vida digna e também o direito de uma morte digna. Esse direito muitas vezes nos é negado pelo fato de sermos obrigados a ficar atrelados a aparelhos e a medicamentos que nos prolongam a vida no sentido meramente vegetativo (chamamos a isso distanásia), o que é insuficiente para a integralidade da vida minimamente humana.
A vida como auto-organização da matéria comparece como o fruto mais elevado da evolução e, numa perspectiva espiritual, representa o maior dom de Deus. Mesmo assim, como seres éticos, somos responsáveis pelo começo da vida e também responsáveis pelo fim da vida.
Outrora, as Igrejas relutavam em acolher o planejamento familiar, pois imaginavam, erroneamente, que seria interferir no desígnio de Deus de introduzir vidas no mundo. Hoje, as mesmas igrejas ensinam o planejamento familiar responsável. Ensinam, outrossim, que todo ser humano tem o direito de morrer humanamente. Cabe ao próprio ser humano, mortalmente doente, decidir de forma qualificada sobre o prolongamento ou não de seu estado irreversível. Na sua impossibilidade, ocupam o seu lugar os familiares e os médicos.
Isso implica que o médico fará tudo para curar o paciente e proporcionar os remédios para aliviar-lhe a dor. Não significa que deva recorrer a tratamentos extraordinários para prolongar a vida ou postergar a morte, sobretudo, em situações limite. Uma terapia só tem sentido quando se ordena à reabilitação e à restituição das funções essenciais e vitais e não simplesmente garantir uma vida vegetativa. Importa “deixar morrer”, o que não é a mesma coisa que “fazer morrer”.
O cuidado pelo doente não deve ser apenas coisa dos médicos e enfermeiros, mas também dos familiares, dos conselheiros espirituais (sacerdotes, pastores, rabinos, pais ou mães de santo etc) e dos amigos próximos.
Devem ser respeitadas as convicções e as crenças religiosas do paciente, especialmente ao sentido que dá à vida e à morte. Caso contrário, lhe fazemos violência, sempre, entretanto, no pressuposto de que a vida é o bem supremo em nome do qual nenhuma visão, ideologia ou convicção religiosa contrária, possa prevalecer.
Para o cristianismo - a religião da maioria do povo brasileiro - a morte não é um fim, mas um peregrinar para a Fonte originária de toda vida. Não é um diluir-se na poeira cósmica mas um cair nos braços do Pai e Mãe eternos que têm infinita saudade de seus filhos e filhas peregrinantes. Estamos sempre nascendo e com a morte acabamos de nascer. Destarte, a morte perde seu caráter de brutal interrupção do ciclo da vida para se transfigurar numa passagem bem aventurada para a plenitude da vida.
São Francisco, o primeiro depois do Único, morreu cantando, agradecendo a vida por tudo o que ela lhe proporcionara. Morrer é então fechar os olhos para ver melhor, como disse José Marti, o maior dos cubanos. Ver o sentido do universo e o nosso lugar no conjunto de todos os seres, carregados pelo Mistério no qual mergulharemos.
Tais visões ajudam a humanizar a morte e a desdramatizar os casos terminais. Pois não vivemos para morrer, como dizem os existencialistas, mas morremos para ressuscitar, para viver mais e melhor, como crêem os cristãos.
Fonte: www.leonardoboff.com

A guerra dos fundamentalismos.


Hoje se fala muito de fundamentalismo. Fundamentalismo do mercado e do projeto neo-liberal, fundamentalismo cristão, fundamentalismo islâmico, principal responsável pelos atentados de 11 de setembro do corrente ano, fundamentalismo das posturas políticas e bélicas do Presidente Bush. Tentemos esclarecer o leitor o que seja fundamentalismo e o risco que representa para a pacífica convivência humana e para o futuro da humanidade.
1) Como surgiu o fundamentalismo.
O nicho do fundamentalismo se encontra no protestantismo norte-americano, surgido nos meados do século XIX e formalizado, posteriormente, numa pequena coleção de livros que vinha sob esse título:Fundamentals. A Testimony of the Truth (1909-1915). Trata-se de uma tendência de fiéis com seus pregadores e teólogos que tomavam as palavras da Bíblia ao pé da letra (o fundamento de tudo para a fé protestante é a Bíblia). Se Deus consignou sua revelação no Livro Sagrado, então tudo, cada palavra e cada sentença, devem ser verdadeiras e imutáveis. Em nome do literalismo, esses fiéis opunham-se às interpretações da assim chamada teologia liberal. Esta usava e usa os métodos histórico-críticos e hermenêuticos para interpretar textos escritos há 2-3 mil anos. Supõe-se que a história e as palavras não ficaram congeladas. Precisam ser interpretadas para resgatar-lhes o sentido original. Esse procedimento para os fundamentalistas é ofensivo a Deus. Por razões semelhantes se opõem aos conhecimentos contemporâneos da história, das ciências, da geografia e especialmente da biologia que possam questionar a verdade bíblica.
Para o fundamentalista a criação se realizou mesmo em sete dias. O cristianismo detém o monopólio da verdade revelada. Jesus é o único caminho para a salvação. Fora dele há somente perdição. Daí o caráter militante e missionário de todo fundamentalista. Face aos demais caminhos espirituais ele é intolerante, pois significam simplesmente errância. Na moral é especialmente rigoroso, particularmente no que concerne à sexualidade e à família. É contra os homossexuais, o movimento feminista e os movimentos libertários em geral. Na economia é conservador e na política sempre exalta a ordem e a segurança a qualquer custo.
O fundamentalismo protestante ganhou relevância social a partir dos anos 50 com as Electronic Churc". Pregadores nacionalmente famosos usam o rádio e a televisão em cadeia para suas pregações e campanhas conservadoras. Sob Ronald Reagan significaram um fator político determinante. Combatem abertamente o Conselho Mundial de Igrejas em Genebra (que reúne mais de duas centenas de denominações cristãs) e todo tipo de ecumenismo, tidos como coisa do diabo.
O catolicismo possui também seu tipo de fundamentalismo. Ele vem sob o nome de Restauração e Integrismo. Procura-se restaurar a antiga ordem, fundada no casamento (incestuoso) do poder político com o poder clerical. Visa-se uma integração de todos os elementos da sociedade e da história sob a hegemonia do espiritual representado,interpretado e proposto pela Igreja Católica (seu corpo hierárquico encabeçado pelo Papa). O inimigo a combater é a Modernidade, com suas liberdades e seu processo secularização. Expressões do Integrismo é modernamente o Card. Josef Ratzinger, Presidente da antiga Inquisição, que sustenta ainda a tese de que a Igreja Católica é a única Igreja de Cristo, também a única religião verdadeira, fora da qual não todos correm risco de perdição. Ou o Arcebispo Marcel Lefebvre que fundou sua Igreja paralela, considerada a fiel detentora da Tradição e da fé verdadeiras. Características fundamentalistas se encontram também em setores importantes do pentecostismo, também católico e nas Igrejas evangelicais populares.
2) Que é o fundamentalismo?
Não é uma doutrina. Mas uma forma de interpretar e viver a doutrina. É a atitude daquele que confere caráter absoluto ao seu ponto de vista. Sendo assim, imediatamente surge um problema de graves consequências: quem se sente portador de uma verdade absoluta não pode tolerar outra verdade e seu destino é a intolerância. E a intolerância gera o desprezo do outro e o desprezo, a agressividade e a agressividade, a guerra contra o erro a ser combatido e exterminado. Irrompem guerras religiosas, violentíssimas, com incontáveis vítimas.
Não há nenhuma religião mais guerreira que a tradição dos filhos de Abraão: judeus, cristãos e muçulmanos. Cada qual vive da convicção tribalista de ser povo escolhido e portador exclusivo da revelação do Deus único e verdadeiro. Essa fé deve ser difundida em todo o mundo, normalmente, com articulação com o poder colonialista e imperial como historicamente ocorreu na América Latina, África e Ásia.
O fundamentalismo, como atitude e tendência, se encontra em setores de todas as religiões e caminhos espirituais. Hoje em dia, o fundamentalismo judeu se centra na construção do Estado de Israel segundo o tamanho que lhe atribui a Bíblia hebraica. O fundamentalismo islâmico quer fazer do Alcorão a única forma de vida, de moral, de política e de organização do Estado entre os islâmicos e em todo o mundo. Todos os que se opõem a essa visão de mundo são obstáculos à instauração "da cidade de Deus" e consequentemente são infiéis e merecem ser perseguidos e eventualmente eliminados.
3) O fundamentalismo neo-liberal e o técnico-científico.
O fundamentalismo não possui apenas um rosto religioso. Todos os sistemas sejam culturais, científicos, políticos, econômicos e artísticos que se apresentam como portadores exclusivos de verdade e de solução única para os problemas devem ser considerados fundamentalistas. Vivemos atualmente sob o império feroz de vários fundamentalismos.
O primeiro e mais visível de todos é o fundamentalismo da ideologia política do neo-liberalismo, do modo de produção capitalista e de sua melhor expressão, o mercado mundialmente integrado. Ele se apresenta como a solução única para todos os países e para todas as carências da humanidade (todos precisam de um necessário choque de capitalismo, diz-se fundamentalisticamente). A lógica interna deste sistema, entretanto, é ser acumulador de bens e serviços, por isso, criador de grandes desigualdades (injustiças), explorador ou dispensador da força de trabalho e predador da natureza. Ele é apenas competitivo e nada cooperativo. Politicamente é democrático, economicamente é ditatorial. Por isso a economia capitalista destrói continuamente a democracia participativa. Onde se implanta, a cultura capitalista cria uma cosmovisão materialista, individualista e sem qualquer freio ético. Há teóricos que apresentam essa etapa como o fim da história. Para ela não haveria alternativa. Urge inserir-se nela. Caso contrário perde-se o ritmo da história. A condenação é a marginalidade ou a exclusão. Eis o pensamento único e a ditadura da globalização especialmente econômico-financeira (considero esta etapa como a idade de ferro da globalização), hegemonizada pelas potências ocidentais.
Outro tipo de fundamentalismo comparece no paradigma científico moderno. Ele está assentado sobre a violência contra a natureza. Bem dizia Francis Bacon, pai da moderna metodologia científica: há de se torturar a natureza como o faz o inquisidor com seu inquirido, até que ela entregue todos os seus segredos. Impõe-se esse método, fundado no corte e na compartimentação da realidade una e diversa, como a única forma aceitável de acesso ao real. Desmoralizam-se outras formas de conhecimento que vão além ou ficam aquém dos caminhos da razão instrumental-analítica. Ocorre que o projeto da tecnociência gestou o princípio da autodestruição da vida. A máquina de morte já construída pode pôr fim à biosfera e impossibilitar o projeto planetário humano. Na guerra bacteriológica, basta meio quilo de toxina do botulismo para matar um bilhão de pessoas.
4) O fundamentalismo político de Bush e de Bin Laden.
Nos dias atuais assistimos, estarrecidos, a dois tipos de fundamentalismo político. Um representado pelo presidente dos USA George W. Bush.e outro por Osama Bin Laden. O Presidente norte-americano urde seus discursos no melhor código fundamentalista: A luta é do bem (América) contra o mal (terrorismo islâmico). Ou se é contra o terrorismo e pela América ou se é a favor do terrorismo e contra a América. Não há matizes nem alternativas. O ataque terrorista não foi contra os USA mas sim contra a humanidade, na suposição que eles são a própria humanidade. O projeto inicial de guerra se chamava Justiça Infinita, termo que usurpa a dimensão do Divino. Depois com menor arrogância, mas na linguagem da utopia, chamou-se de Liberdade Duradoura. Termina suas intervenções com "God saves America". Há dezenas de anos que a política exterior dos USA maltrata as nações árabes fazendo pacto com governantes despóticos (alguns emirados árabes nem constituição possuem) em razão da garantia do suprimento de petróleo. A partir de 1991 por ocasião da guerra contra o Iraque já morreram naquele pais cerca de um milhão de crianças por causa do embargo que atinge os suprimentos medicinais e 5% da população foi morta em sistemáticos bombardeios. A atuação no conflito entre Israel e os palestinos é a posição dos USA visivelmente unilateral, em favor dos ataques devastadores que a máquina de guerra israelense move contra a população palestina que usa pedras(intifada). A Arábia Saudita é ocupada por uma poderosa base militar norte-americana, território sagrado do islamismo onde se situam as duas cidades santas Meca e Medina. Tal fato é para a fé islâmica tão vergonhoso quanto um católico tolerar a Máfia no governo do Vaticano. Tais fatos acumulam amargura, ressentimento, revolta e vontade de vindita. É o fermento do terrorismo muçulmano cujos efeitos nefastos todos assistimos e condenamos.
Não menos fundamentalista é a retórica dos Talibans e de Osama Bin Laden Este também coloca a guerra entre o bem (islamismo) e o mal (a América). Em seu famoso discurso após o atentado, divide o mundo entre dois campos: o campo dos fiéis e o campo dos infiéis. "O chefe dos infiéis internacionais, o símbolo mundial moderno do paganismo, é a América e seus aliados". O atentado terrorista significa que "a América foi atacada por Deus em um dos seus órgãos vitais…Graça e gratidão a Deus". A cultura ocidental como um todo é vista como materialista, atéia, secularista, antiética e belicista. Daí a recusa em dialogar com ela e a vontade de estrangulá-la em nome do próprio Allah.
Em nome de que Deus ambos fala? Não é seguramente em nome do Deus da vida, de Allah, o Grande e Misericordioso, nem em nome do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, da ternura dos humildes e da opção pelos oprimidos. Falam em nome de ídolos que produzem mortes e vivem de sangue.
É próprio do fundamentalismo responder terror com terror, pois se trata de conferir vitória à única verdade e ao bem e destruir a falsa "verdade" e o mal. Foi o que ambos, Bush e Bin Laden fizeram. Enquanto predominarem tais fundamentalismos seremos condenados à intolerância, à violência e à guerra e, no termo, à ameaça de dizimação da biosfera.
5) Como conviver com o fundamentalismo?
Não se há de sorrir nem de chorar. Mas de procurar entender. Todos os fundamentalismos, não obstante os vários matizes possuem as mesmas constantes. Trata-se sempre de um sistema fechado, feito de claro e de escuro, inimigo de toda diferenciação e cego face à lógica do arco-íris, onde a pluralidade convive com a unidade. Cada verdade se encontra indissoluvelmente concatenada à outra. Questionada uma, desaba todo o edifício. Daí a intolerância e a lógica linear. Daí sua força de atração para espíritos sedentos de orientações claras e de contornos precisos. Para o fundamentalista militante a morte é doce, pois transporta o mártir diretamente ao seio materno de "Deus" enquanto a vida é vivida como oportunidade de cumprir a missão divina de converter ou exterminar os infiéis. O grupo é o lar da identidade, o porto da plena segurança e a confirmação de estar do lado certo.
Como enfrentar os fundamentalistas? Estes são praticamente inacessíveis à argumentação racional. Nem por isso deve-se renunciar ao diálogo, à tolerância e o uso da razão para mostrar as contradições internas, subjacentes ao discurso e à prática fundamentalista. Por detrás do fundamentalismo político vigora uma experiência dolorosa de humilhação e de prolongado sofrimento. E procura-se infligir a mesma coisa ao outro, o que é manifestamente contraditório. Trazer o fundamentalista à realidade concreta, cheia de contradições, claro-escuros e nuances pode introduzir nele a dúvida e a insegurança. Estas possuem uma função terapêutica. Podem abrir uma brecha para a luz no muro das convicções cerradas e excludentes. Dialogar até a exaustão, negociar até o limite intransponível da razoabilidade, pode levar o fundamentalista a reconhecer o outro, seu direito de existir e a contribuição que poderá dar para uma convergência mínima na diversidade.
Estamos numa encruzilhada da história humana. Ou criar-se-ão relações multipolares de poder, equitativas e inclusivas com pesados investimentos na qualidade total da vida para que todos possam comer, morar com mínima dignidade e apropriar-se de cultura com a qual se possam comunicar com seus semelhantes, preservando a integridade e beleza da natureza ou iremos ao encontro do pior, quem sabe, ao mesmo destino dos dinossauros. Armas para isso existem e sobra demência. Faz-se urgente mais sabedoria que poder e mais espiritualidade que acúmulo de bens materiais. Então os povos poderão se abraçar como irmãos na mesma Casa Comum, a Terra, e irradiaremos como filhos da alegria e não como condenados ao vale de lágrimas.
Fonte: www.leonardoboff.com

Da interrogação socrática à fundamentação da ciência em Aristóteles.

Quando buscamos os fundamentos da filosofia ocidental, três filósofos ocupam o lugar mais elevado: Sócrates, Platão e Aristóteles. Dificilmente poderíamos estabelecer alguma hierarquia de valor entre eles, afirmar qual deles é maior ou teve maior relevância para nós. O que parece claro é que, tendo vivido em épocas bastante próximas, cada qual galgou degraus a partir do caminho aberto pelo anterior. Assim, Sócrates teria sido um precursor, apontando paisagens até então desconhecidas no horizonte filosófico. Platão, considerado seu discípulo, bem viu as indicações do mestre e foi além. Aristóteles, aluno por mais de vinte anos na escola fundada por Platão, a Academia, afasta-se do mestre e trilha seus próprios caminhos. Não há como mostrar em poucas linhas todos os pontos centrais nestes filósofos, e menos ainda precisar as diferenças entre eles. No entanto, é possível, se escolhermos um ponto de vista determinado, observar as diferenças de enfoque propostas por cada um deles. Aqui, vamos observar como cada um se aproximou daquilo que talvez seja o centro da Filosofia: o conhecimento. Vamos ver de que modo cada filósofo procura dar conta da possibilidade de ciência (epistéme).
A figura emblemática da Filosofia é, sem dúvida, Sócrates. Torna-se o signo marcante da divisão do mundo filosófico em eras: pré e pós Sócrates. Antes dele não havia, então, Filosofia? Sem dúvida que sim. Tudo parece ter começado com Tales, tido como um dos sete sábios da Grécia. Vieram outros tantos: Anaximandro, Heráclito, Parmênides, Empédocles, Anaxágoras... E, contudo, Sócrates é o grande marco: seus precursores ganharam o rótulo de pré-socráticos, e o mundo ocidental nunca mais seria o mesmo depois de sua vinda. Mas que teria ele feito para ganhar tamanho destaque? Quem foi, afinal, Sócrates?
Dizer quem foi exatamente Sócrates talvez não seja possível. Estima-se que tenha nascido por volta de 470 a.C. e morrido em 399 a.C., condenado à morte pelos juízes de Atenas, mas como não deixou obras escritas, tudo que sabemos a seu respeito tem origem nos trabalhos de outros. Como fontes principais, temos as “apologias de Sócrates”, um gênero literário bastante em voga na época, escritas por admiradores e seguidores de Sócrates. Há, porém, um importante comediógrafo contemporâneo de Sócrates, Aristófanes, que nos deixou em sua peça As nuvens um retrato bastante irônico de Sócrates, onde este é apresentado de maneira ridícula e é equiparado aos sofistas. Sócrates é figura controversa em Atenas: amado por uns, por discípulos e amigos fiéis que o seguem até a morte, mas odiado por muitos, a tal ponto de ser condenado à morte.
Comecemos pelo Sócrates que aparece em As nuvens, comédia apresentada em 423 a.C., mais de 20 anos antes de sua morte. O Sócrates apresentado ali é um físico, voltado a indagações sobre a natureza, como, por exemplo, quantas vezes uma pulga salta o tamanho de seus próprios pés. E é também um sofista, alguém que ensina a transformar um discurso fraco em forte, de modo a ganhar qualquer causa num tribunal, ou seja, alguém muito pouco preocupado com a verdade e a justiça. Nada tão distante do Sócrates oferecido por Platão, inimigo dos sofistas e amante da verdade! Entretanto, talvez haja aí algo historicamente plausível, pois uma boa comédia deveria ter, dentro dos padrões da poesia grega, uma certa verossimilhança. Os gregos, afinal, não tinham a nossa noção de ficção, mas operavam com o conceito de mímesis, de imitação. O que talvez possamos supor é que, ao menos para os olhos do povo, Sócrates era um filósofo da natureza, tal qual seus antecessores “pré-socráticos” e, além disso, era tido como um sofista, um homem empenhado nos debates.
Se levarmos isso em conta, fica mais fácil entender o processo e o julgamento de Sócrates. Vejamos como se passam as coisas na obra de Platão, a Apologia de Sócrates. Quem se encarrega da defesa é o próprio Sócrates, apresentando-se não como um grande orador, mas como alguém que diz o justo, o verdadeiro. Ao caracterizar seus adversários, reconhece dois tipos: os mais antigos – numa clara alusão a Aristófanes – e os mais jovens. Seus primeiros adversários seriam, assim, todos aqueles que compactuam com uma mentalidade profundamente arraigada na cidade, para quem Sócrates seria acusado de “investigar indevidamente o que se passa embaixo da terra e no céu, deixar bons os argumentos ruins, e induzir os outros a fazerem o mesmo”. Ora, nada mais falso, alega Sócrates, afirmando não ter jamais procurado ensinar alguém, nem ter recebido dinheiro em pagamento – ao contrário dos sofistas, que cobram para ensinar. Por que, então, as calúnias? Aqui vem o trecho mais famoso, e por onde Sócrates tornou- se imortal: se os sofistas são grandes sábios, portadores de um conhecimento sobre-humano, Sócrates nada mais é que homem, mas, dentre estes, é portador da mais alta sabedoria, da única propriamente humana. Que sabedoria é esta?
Sócrates conta que seu amigo de infância Querefonte consultou certa vez o oráculo de Delfos para saber se haveria alguém mais sábio do que Sócrates. Não há, é a resposta da divindade. Ora, Sócrates não podia atinar com o significado destas palavras, pois não se considerava sábio. No entanto, não é da natureza divina mentir; que significaria, então? Começou a buscar incessantemente um homem que fosse considerado sábio. Primeiro interrogou um político, mas percebeu que este se considerava sábio sem, de fato, sê-lo. Procurou demonstrar ao seu interlocutor que ele não era realmente sábio, mas foi em vão, o homem mantinha- se seguro de sua sabedoria. Tudo que Sócrates obteve foi o ódio por parte desse político. Tirou, porém, para si, um resultado: percebeu ser mais sábio que o homem, pois, se aquele acreditava saber, ele ao menos, sabia não saber.
E assim foi repetindo o processo com outros políticos, depois com outros homens considerados sábios pela cidade, os poetas. Percebeu que não era por possuírem sabedoria que faziam seus poemas, mas por inspiração; tal como os adivinhos, dizem coisas belas, mas não sabem o que dizem. Passou, então, para a classe dos artesãos, que ao menos tinham um conhecimento sobre sua arte. Estes, porém, assim como os anteriores, julgavam que, por terem conhecimento acerca de sua profissão, também saberiam sobre outros assuntos. Todos, enfim, julgavamse sábios e não reconheciam não saber. Ora, o que é preferível: saber que nada sabe ou enganar-se achando saber aquilo que não sabe? Sócrates opta por sua sabedoria e reconhece-se sábio: sabe que não sabe. Põe-se, a partir daí, numa verdadeira missão a serviço da divindade. É sua tarefa examinar qualquer pessoa que pareça sábia e mostrar-lhe sua ignorância. Eis como Sócrates angariou o ódio da cidade em geral e preparou o caminho para sua execução.
A ciência deve procurar reconhecer a “qüididade”, isto é, a definição de todos os seres, investigar o que faz com que “um isto” seja isto e não aquilo.
A Apologia de Sócrates não termina aqui. Sua defesa continua, agora, dirigindo- se aos mais jovens, que o acusaram de corromper os moços e de não acreditar nos deuses da cidade. Sócrates não se arrepende de seus atos e explica por quê. Sempre praticou a justiça, apesar dos perigos de morte que corria, pois seus inimigos certamente acabariam por levá-lo a um processo fatal. Um homem não deve pesar as possibilidades de vida ou de morte, mas pesar se age com justiça ou não. Quanto à morte, não temos elementos para decidir se será um bem ou um mal. Só nos cabe julgar nossos próprios atos. “Temer a morte é o mesmo que supor-se sábio quem não o é, porque é supor que sabe o que não sabe. Ninguém sabe o que é a morte, nem se, porventura, será para o homem o maior dos bens; todos a temem, como se soubessem ser ela o maior dos males.(...) Sei, porém, que é mau e vergonhoso praticar o mal, desobedecer a um melhor do que eu, seja deus, seja homem; por isso, na alternativa com males que conheço como tais, jamais fugirei de medo do que não sei se será um bem. (29a)”. É essa integridade de Sócrates que acabará por condená-lo à morte. Não pode aceitar uma absolvição que exija o abandono de sua tarefa. Não poderá viver se não for perambulando pela cidade, fazendo perguntas e persuadindo todos a se preocupar não com as riquezas, mas com o aperfeiçoamento da alma. Sua condenação é um mal, não para ele, mas para a cidade, ingrata com uma dádiva da divindade.
Para Aristóteles, há formas universais existentes nas coisas. Com o pensamento fazemos generalizações e
apreendemos algo universal nos vários objetos corporais.
Mas a fama de Sócrates não vem apenas da lendária frase “Só sei que nada sei”. Ele é também a principal personagem da maioria dos diálogos de Platão. Em sua juventude, Platão escreveu vários diálogos que apresentam este Sócrates interrogador. Conversando com as mais variadas figuras de Atenas, ora um general, ora um sofista, ora um poeta, Sócrates vai sempre interrogando, buscando responder à pergunta socrática: “O que é?”, por exemplo, no Hípias maior, pergunta a um sofista o que é a beleza, ou melhor, o que é o próprio belo, o belo em si. O que Sócrates busca é o belo pelo qual as coisas belas são belas. Seu interlocutor, porém, incapaz de compreender a pergunta, responde sempre mostrando coisas belas: o belo é uma linda jovem, o belo é o ouro, o belo é uma vida feliz. O mesmo acontece em outro diálogo, o Laques, em que um general é incapaz de responder o que é a coragem, não percebe o que é que, estando em todos os atos corajosos, é o mesmo. Também no Protágoras, novamente o interlocutor é incapaz de dizer o que é a virtude, ou no Eutífrão, um sacerdote é incapaz de responder o que é a piedade. Todos os diálogos socráticos são aporéticos. Não há resposta, não chegamos ao que seja a virtude, a piedade, a beleza ou a coragem. De algum modo, ainda que possam trazer consigo uma doutrina não de Sócrates, mas platônica, os diálogos socráticos preservam um pouco da imagem histórica de Sócrates, um homem sempre interrogando, sempre mostrando aos interlocutores que estes no fundo não sabem. Um homem que também não sabe, mas sabe que não sabe, e por isso pergunta.
Qual é então sua filosofia?
O que é que prega o Sócrates dos diálogos de juventude de Platão? Não se trata de uma filosofia positiva, mas de uma exigência. Sócrates exige que seu interlocutor encontre um certo caráter genérico capaz de explicar a multiplicidade de exemplares. É preciso encontrar, por exemplo, o caráter genérico comum a todos os atos piedosos, e mais, esse caráter genérico deve explicar por que os atos piedosos são piedosos. É preciso encontrar a própria piedade, o próprio belo, etc. Seus interlocutores têm muita dificuldade para compreendê-lo. Hípias responde-lhe que o próprio belo é uma jovem bela. Não consegue perceber que o próprio belo é aquilo que está presente numa jovem bela e que a faz ser bela. Em resumo, é dupla a exigência socrática: encontrar uma certa unidade na multiplicidade (o Belo presente nos muitos belos) e encontrar nessa unidade a causa da multiplicidade (o Belo como causa dos belos).
Não é pouco. Essa exigência socrática levará Platão a desenvolver sua teoria das Formas. Aristóteles também não a perde de vista e louva Sócrates (Metafísica, XIII, 1078 b27-30) por ter buscado a presença do universal na definição. Sem esse “próprio”, dirá Platão, sem a definição universal, dirá Aristóteles, não há possibilidade de epistéme, de ciência. Platão tentará satisfazer a exigência socrática. Mas é árdua sua tarefa, pois não pode deixar de lado as conseqüências extraídas de duas filosofias anteriores, pré-socráticas: de Heráclito e de Parmênides. Para Heráclito, o mundo está em perpétuo estado de fluxo, nunca entramos duas vezes no mesmo rio (são sempre novas águas), “somos e não somos”. Se a noção de ser em Heráclito é bastante fraca, Parmênides, ao contrário, funda o conceito de ser: é ou não é; se algo é, é. O Ser de Parmênides é eterno, uno, indivisível, imóvel. E Platão extrai algumas conseqüências destas doutrinas e terá que dar conta delas. Concorda com Heráclito: é fato que este mundo visível, sensível, está sempre mudando; não há como encontrar um certo “mesmo” em tudo isso. Por outro lado, é preciso concordar com Parmênides quando se examina determinados tipos de seres: a coragem, por exemplo, é um certo ser que jamais será não corajoso; se a coragem é, ela é sempre coragem.
Qual é o grande problema que surge do confronto entre Heráclito e Parmênides? Se Heráclito for levado às últimas conseqüências, não há possibilidade de ciência. No Teeteto, Platão expõe isso: o sofista Protágoras expressa um relativismo derivado de uma leitura extremada de Heráclito: o ser se reduz ao que aparece para alguém. Para Protágoras, “o homem é a medida de todas as coisas, das que são, que são, das que não são, que não são” (152 a). O que é o vento? Se, para mim, ele aparece como frio, então ele é frio para mim. O homem é a medida para si do que lhe aparece. Não há, dentro desse quadro, a possibilidade de algo em si mesmo, algo que seja ele próprio, independente de outrem. Outra conseqüência dramática da fi- losofia de Heráclito seria a impossibilidade de linguagem: se tudo está em perpétuo fluxo, as próprias coisas não possuem um ser que permaneça estável e do qual eu possa dizer algo. Platão reconhece todos esses problemas. Se o conhecimento for o conhecimento do mundo sensível, então é preciso extrair todas as conseqüências da doutrina de Heráclito: não há mais ser (pois o ser seria algo em constante mutação) e nem haveria mais como dizer o ser (pois como dizer algo que nesse instante é, mas já em seguida não é?).
Uma conseqüência dramática da filosofia de Heráclito seria a impossibilidade de linguagem: se tudo está em perpétuo fluxo, as próprias coisas não possuem um ser que permaneça estável e do qual eu possa dizer algo. Platão reconhece todos esses problemas.
Parmênides usa artifícios poéticos e da lógica numa época em que esta ainda não tinha a força argumentativa que terá a seguir.
Da Natureza, de Parmênides.
Os corcéis que me transportam, tanto quanto o ânimo me impele, conduzem-me, depois de me terem dirigido pelo caminho famoso da divindade, que leva o homem sabedor por todas as cidades.
Por aí me levaram, por aí mesmo me levaram os habilíssimos corcéis, puxando o carro, enquanto as jovens mostravam o caminho. O eixo silvava nos cubos como uma siringe, incandescendo (ao ser movido pelas duas rodas que vertiginosamente o impeliam de um lado e de outro), quando se apressaram as jovens filhas do sol a levar-me, abandonando a região da Noite para a luz, libertando com as mãos a cabeça dos véus que a escondiam. Aí está o portal que separa os caminhos da Noite e do Dia, encimado por um dintel e um umbral de pedra; o portal, etéreo, fechado por enormes batentes, dos quais a Justiça vingadora detém as chaves que os abrem e fecham. A ela se dirigiram as jovens, com doces palavras, persuadindo-a habilmente a erguer para elas por um instante a barra do portal. E ele abriu-se, revelando um abismo hiante, enquanto fazia girar, um atrás do outro, os estridentes gonzos de bronze, fixados com pregos e cavilhas. Por aí, através do portal, as jovens guiaram com celeridade o carro e os corcéis. E a deusa acolheu-me de bom grado, mão na mão
direita tomando, e com estas palavras se me dirigiu: “Ó jovem, acompanhante de aurigas imortais,
tu, que chegas até nós transportado pelos corcéis, Salve! Não foi um mau destino que te induziu a viajar por este caminho – tão fora do trilho dos homens – mas o Direito e a Justiça. Terás, pois, de tudo aprender: o coração inabalável da realidade fidedigna e as crenças dos mortais, em que não há confiança genuína. Mas também isso aprenderás: como as aparências têm de aparentemente ser, passando através de t
Mas, do ser imutável de Parmênides, Platão extrai outras conseqüências: se há algo realmente imutável, é somente este que pode ser conhecido. Para Platão, o conhecimento deve ser algo absolutamente imutável, ou não será mais conhecimento e sim simples opinião. Mas se o mundo sensível é o mundo da mutabilidade, onde nada permanece sendo sempre o que é, não é possível mesmo haver conhecimento deste mundo. Como resolver o impasse? Não haverá algo que seja eterno, imutável, e que viabilize assim a possibilidade de conhecimento? É dentro desse quadro problemático que Platão elabora sua teoria das Formas ou Idéias, apresentada principalmente em seus diálogos de maturidade: o Fédon, a República, o Banquete e o Fedro. Procurará, por meio das Formas, dar conta da possibilidade de existência de um certo ser imutável que permita um conhecimento imutável.
Se é preciso explicar por que as coisas belas são belas, a participação nas Formas é a resposta de Platão: a razão de algo ser belo é porque participa do Belo em si. Há um Belo em si, uma Forma que não é visível pelos sentidos, mas que se faz presente em cada uma das coisas belas. As coisas belas participam da Forma do Belo. Esta é a verdadeira causa da beleza sensível. Platão concede assim o máximo de ser, de “essência” (ousía, em grego) às coisas que são em si mesmas, àquilo que existe em si. Não são coisas deste mundo visível, mas são seres aos quais é possível aceder pela via do pensamento. Estes seres em si, as Formas ou Idéias, são a causa da existência das coisas visíveis. Com isso, satisfaz a dupla exigência socrática: a Forma é aquela tão procurada unidade na multidão de exemplares e é também a causa de existência dos múltiplos seres. As Formas (do Belo, do Bom, do Grande, etc.) explicam por que os milhares de entes do mundo sensível podem ser belos, bons, grandes, etc. A Forma em si é eterna, não está sujeita ao perpétuo fluxo das coisas visíveis. O Belo é e será sempre belo. E assim, Platão resolve o problema derivado da filosofia de Heráclito: as coisas belas podem deixar de ser belas; há até mesmo uma relatividade entre os conceitos de belo, já que algo pode ser belo para mim e não para outro. Mas o Belo em si é absoluto e eterno. As coisas belas participam dele e é só nessa medida que são belas. Por isso, não pode haver ciência das coisas sujeitas ao perpétuo fluxo; ora elas são, ora não são. Não há como conhecer o ser próprio das coisas sensíveis. Só as Formas, por serem imutáveis, podem ser conhecidas.
Como conceber as Formas? Somente pela via do pensamento, já que os órgãos dos sentidos são falíveis e, portanto, fonte de erro. É preciso, diz Platão, afastar-se do corpo para que se possa contemplar a imutabilidade das Formas. Nosso filósofo cria uma marcante dualidade entre corpo e alma que vingará na filosofia ocidental e influenciará fortemente o cristianismo. O corpo é inferior em ser à alma, que em muitos momentos é identificada ao próprio homem. Quem somos? A alma. E é pela alma que acedemos às realidades superiores. “Nesta vida, o que faz com que cada um de nós seja o que é nada mais é do que a alma, enquanto o corpo é para nós a imagem concomitante. Está certo quem diz que o corpo sem vida não é senão a imagem do morto e que o eu real de cada um de nós, que chamamos de alma imortal parte para prestar contas perante outros deuses, uma perspectiva a ser encarada com coragem pelos bons, mas com supremo terror pelos maus”. (Leis, XII, 959 b).
Como somos a alma, e não o corpo, a morte é bem-vinda, já que desvencilhados do corpo, estaremos em melhores condições de acesso às Formas, ao que é em si. Estes são os ensinamentos de Sócrates – agora um Sócrates absolutamente platônico, não mais histórico –no Fédon. Ali, em seu último dia de vida, na prisão, ensina os amigos presentes a não temer a morte; aspirar à contemplação de realidades mais elevadas é um desejo natural de quem tem um temperamento filosófico. Tampouco devem prantear-lhe o corpo morto, pois ele mesmo, Sócrates, não estará mais ali, mas em outro lugar.
Aristóteles apontará uma série de problemas e mesmo erros na doutrina platônica. Mas não seríamos justos com Platão se não mencionássemos que o próprio filósofo já havia detectado algumas aporias em sua filosofia, que foram apresentadas no diálogo Parmênides. Vamos, porém, saltar esse passo e observar o que Aristóteles tem contra Platão. Para Aristóteles, uma boa explicação deve ser simples, econômica. Ora, a teoria das Formas complica o conhecimento das causas. Para explicar “estes seres aqui”, este mundo que nos cerca, Platão teria recorrido a entidades supra-sensíveis. A diferença básica entre os dois filósofos reside no ponto de vista de cada um em relação à “essência”, à ousía. Segundo Platão, as coisas deste mundo sensível têm pouco ser, são inferiores na escala hierárquica do ser. Ora, para Aristóteles, as coisas deste mundo aqui é que têm de fato ser. Ele inverte a ordem proposta por Platão. Se antes as coisas sensíveis tinham ser porque participavam do ser mais elevado das Formas, agora, com Aristóteles, o ser mais elevado encontra-se nas próprias coisas.
Na sua Metafísica, I, 9, Aristóteles apresenta diversos argumentos contra a doutrina das Formas. Diz ele: as Formas “chegam a eliminar justamente os princípios cuja existência nos importa mais do que a própria existência das Idéias”. O que importa, então, é “isto aqui”. São “estas coisas daqui” que não podem ter seu ser suprimido, como quer a teoria das Formas. Além disso, se as Formas são a própria essência das coisas, como é possível que existam separadas das coisas? Têm que estar nas próprias coisas. Com as Formas platônicas, estaria eliminada toda possibilidade de conhecimento das coisas sensíveis, pois o que se poderia conhecer não seriam as coisas mesmas, mas as Formas separadas, transcendentes à própria coisa. A doutrina de Platão teria ainda falhado ao não dar conta dos diversos modos com que dizemos que uma coisa é. Por isso, acabou concedendo mais ser a algo que teria menos ser. Por exemplo, se dissermos “Maria é bela”, devemos notar que o ser “Maria” é mais ser do que “bela”. É Maria que existe antes de ser bela. Já o ser “bela” é um certo tipo de ser que deve sua existência a Maria. Bela é um predicado de Maria, essa sim a verdadeira ousía, a “substância”, para usar um termo consagrado na terminologia aristotélica.
Os tópicos, de Aristóteles.
Nosso tratado se propõe encontrar um método de investigação graças ao qual possamos raciocinar, partindo de opiniões geralmente aceitas, sobre qualquer problema que nos seja proposto, e sejamos também capazes, quando replicamos a um argumento, de evitar dizer alguma coisa que nos cause embaraços. Em primeiro lugar, pois, devemos explicar o que é o raciocínio e quais são as suas variedades, a fim de entender o raciocínio dialético: pois tal é o objeto de nossa pesquisa no tratado que temos diante de nós.
Ora, o raciocínio é um argumento em que, estabelecidas certas coisas, outras coisas diferentes se deduzem necessariamente das primeiras. (a) O raciocínio é uma “demonstração” quando as premissas das quais parte são verdadeiras e primeiras, ou quando o conhecimento que delas temos provém originariamente de premissas primeiras e verdadeiras: e, por outro lado (b), o raciocínio é “dialético” quando parte de opiniões geralmente aceitas. São “verdadeiras” e “primeiras” aquelas coisas nas quais acreditamos em virtude de nenhuma outra coisa que não seja elas próprias; pois, no tocante aos primeiros princípios da ciência, é descabido buscar mais além o porquê e as razões dos mesmos; cada um dos primeiros princípios deve impor a convicção da sua verdade em si mesmo e por si mesmo. São, por outro lado, opiniões “geralmente aceitas” aquelas que todo mundo admite, ou a maioria das pessoas, ou os filósofos em outras palavras: todos, ou a maioria, ou os mais notáveis e eminentes.
É grande a lista de problemas observados por Aristóteles, mas a ruptura entre os dois filósofos é de base. O ser que importa é o ser das coisas sensíveis, e são estas coisas que, na hierarquia dos seres, são mais elevadas. Mas, de alguma maneira, Aristóteles concorda com Platão. O conhecimento deve ser de conteúdos imutáveis. Como, então, conhecer o mundo sensível, que é o reino do mutável? Será preciso dar alguma estabilidade para o mundo sensível para que este possa, afinal, ser conhecido. Se for possível encontrar um certo ser estável nas coisas, será possível haver ciência dos corpos sensíveis.
O conceito de epistéme, ciência, é fundado por Platão. Contudo, do ponto de vista do platonismo, se as coisas sensíveis estão em perpétuo estado de fluxo, a ciência deve vir de algo que não seja o sensível. Por isso, para fundamentar a possibilidade da epistéme, Platão elabora o conceito de Forma, com o qual seria possível apreender-se as coisas que são, de maneira imutável e necessária. Há seres não sensíveis, acredita Platão, que podem ser objeto de conhecimento num sentido rigoroso. Assim, responde à exigência socrática acerca de “o que é”, acerca da universalidade.
Aristóteles herda de Platão esse anseio por satisfazer a noção de epistéme, que deve tratar sempre de conteúdos imutáveis de conhecimento. Afasta-se, porém, do mestre ao rejeitar a existência de idéias ou formas apartadas da matéria, existentes por si. Confere ousía às próprias coisas, não às formas platônicas. É impossível aceitar que as formas tenham existência separada da coisa, se elas são a ousía das coisas, entende Aristóteles. Ousía aplica-se às coisas sensíveis, ao domínio da natureza.
Mas Aristóteles concorda com a existência dos universais – razão, aliás, do elogio que faz a Sócrates, que teria se empenhado pela busca desses universais. Esses, porém, não existem por si, de modo imaterial, mas encontram-se nas coisas, e tomamos conhecimento deles através do intelecto, por um processo de abstração. Desse modo, Aristóteles considera que as coisas sensíveis são compostas de matéria e forma. As formas aristotélicas, ainda que possam ser abstraídas da matéria e pensadas à parte, só existem de fato quando unidas à matéria. Matéria e forma estão indissoluvelmente ligadas na constituição da substância e só podem ser separadas no pensamento. Ao contrário de Platão, Aristóteles não considera possível “reduzir todas as coisas às Formas e eliminar a matéria” (Met. VII, 1036 b23), pois “tudo que seja algo determinado possui matéria” (Met. VII, 11, 1037 a2). Entretanto, Aristóteles exclui a matéria da definição de substância, pois a matéria é algo indeterminado. Somente a forma pode ser definida e é por meio dela que será possível a ciência. Assim, a ciência aristotélica é dos objetos sensíveis, mas daquilo que neles é eterno, imutável: a forma. A epistéme deve capturar predicados universais, eternos e imutáveis.
Aristóteles satisfaz a exigência socrática de buscar o universal nos vários particulares – coisa que Platão,
de alguma maneira, também já havia conseguido.
Há, pois, para Aristóteles, formas universais existentes nas coisas. Com o pensamento fazemos generalizações e apreendemos algo universal nos vários objetos corporais. As substâncias físicas são sempre individuais, mas o pensamento é capaz, por um processo de abstração, de apreender o universal nelas, apreender sua definição. Há várias árvores, cada qual diferente das outras, mas a forma “árvore” pode ser apreendida a partir de uma abstração e com isso pode ser dada uma definição de árvore, pode-se estabelecer “o que é” árvore. A forma “árvore” não é algo exterior, transcendente às várias árvores da natureza, mas é imanente a cada árvore e causa de ser de cada uma delas.
As substâncias físicas são individuais, mas o pensamento é capaz, por meio da abstração, de apreender o universal nelas. Por exemplo, há várias árvores, cada qual diferente das outras, mas a forma “árvore” pode ser apreendida a partir de uma abstração e com isso pode ser dada uma definição de árvore, pode-se estabelecer “o que é” uma árvore.
A ciência deve, então, procurar reconhecer a “qüididade” (“o que é”) e a definição de todos os seres, investigar o que faz com que “um isto” seja isto e não aquilo. Deste modo, finalmente, será possível responder à pergunta “o que é” em termos particulares, mas, ao mesmo tempo, dando uma resposta universal, da qual seja possível haver ciência. Assim, Aristóteles satisfaz a exigência socrática de buscar o universal nos vários particulares – coisa que Platão, de alguma maneira, também já havia conseguido –, mas vai além e consegue fundamentar a ciência das coisas sensíveis, a ciência da natureza.
Fonte: Revista Filosofia, Maria Eduarda Martins de Oliveira.